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Artigo do Drauzio Varella

O Supremo e os aditivos

Ao acrescentar aditivos com sabor aos cigarros, a indústria segue promovendo o vício entre crianças e adolescentes. Leia no artigo de Drauzio Varella.

Lidar com vendedores de drogas ilícitas é tarefa complexa, como demonstraram os acontecimentos da semana passada, no Rio de Janeiro. Enquanto houver dependentes químicos dispostos a qualquer sacrifício para comprá-las, existirão traficantes decididos a correr riscos para vendê-las.

O mesmo acontece no comércio das drogas lícitas. O caso dos vendedores de nicotina, droga causadora de uma das dependências mais avassaladoras, é semelhante. A diferença é que os primeiros ficam sujeitos à repressão policial e às masmorras que chamamos de presídios, em nosso país, enquanto os outros podem andar de terno e gravata e fazer propaganda com liberalidade, para viciar nossas crianças e adolescentes.

Quando fiz dezessete anos acendi o primeiro cigarro e cai nas garras dos fornecedores, dependência química que me subjugou por dezenove anos, no ritmo de um maço por dia.

Por ridículo que possa parecer, naquele tempo começávamos a fumar sem saber sequer que fazia mal. Éramos estúpidos? Talvez, mas a indústria tabaqueira é quem dava as cartas nos meios de comunicação de massa. Pobre do jornal, da revista, da estação de rádio ou de TV que ousasse publicar ou levar ao ar uma notícia ou entrevista que explicasse a relação causal entre fumo, câncer, ataques cardíacos, AVCs e outras doenças graves. A insubordinação era punida com o corte imediato das verbas publicitárias.

A peso de ouro as propagandas exibiam mulheres encantadoras em poses sensuais, jovens praticando esportes e homens na maturidade em iates ou cavalgando corcéis fogosos. As marcas eram associadas ao sucesso, à liberdade, à força física e à saúde. Graças a essa estratégia perversa viciaram em nicotina milhões de crianças e adolescentes, em nosso país. Cerca de 90% dos usuários tinham menos de dezoito anos (proporção que se mantém até hoje). Não é à toa que a Organização Mundial da Saúde classifica o tabagismo como doença pediátrica.

Em combinação com essas armadilhas, os fabricantes implantaram a estratégia de acrescentar aditivos ao fumo, para disfarçar o sabor aversivo da fumaça. Misturar ao fumo produtos químicos com gosto de chocolate, sorvete de creme, framboesa e outros sabores ao gosto da criançada além do mentol para trazer sensação de frescor à garganta irritada pela fumaça é perversidade inominável.

As quantidades desses aditivos em cada cigarro são altas. Faltam estudos para avaliar os subprodutos resultantes de sua combustão. Alguns deles têm atividade carcinogênica documentada em sistemas experimentais. Certamente, fumar cigarros com aditivos é ainda mais perigoso.

Veja também: Sachês de nicotina: o que são e quais riscos representam para a saúde

Em 2012, com base numa infinidade de evidências científicas, a Anvisa proibiu o uso de saborizantes nos produtos de tabaco.

Desde então, a aplicação dessa norma da Agência tem sido adiada por conta de ações judiciais movidas pela indústria do fumo e seus asseclas. Atualmente, mais de 40 delas tramitam na Justiça, numa demonstração clara da participação dos fabricantes. A consequência do esforço para impedir que a norma da Anvisa seja obedecida, foi o registro de mais de 1.100 produtos de tabaco com aditivos para serem comercializados no mercado brasileiro.

Esse absurdo foi parar no Supremo Tribunal Federal, instância em que o ministro Cristiano Zanin pediu vistas do processo, há alguns meses. Como o prazo para a devolução está para se esgotar o julgamento será retomado.

Duvido que haja uma só leitora ou leitor da coluna de hoje que aprove um crime desses, cometido contra nossas crianças e adolescentes, com a única finalidade de torná-los dependentes químicos de uma droga legalizada que lhes trará sofrimentos pelo resto da vida e morte precoce. Os estudos mostram que o cigarro encurta em média dez anos a vida de uma mulher, e doze anos a de um homem.

Em trinta e sete anos de convívio com usuários de crack nas cadeias de São Paulo, aprendi que é mais difícil largar do cigarro do que do crack. Em cinquenta anos tratando de pacientes com câncer cansei de ver gente esclarecida morrer sem conseguir se livrar dessa praga. Como ex-fumante experimentei na pele o desespero que a abstinência de nicotina provoca no dependente.

A indústria do fumo comete crimes continuados contra a saúde pública há pelo menos um século. Caberá aos ministros do Supremo decidir se vão dar cobertura a mais este.

Veja também: Um crime chamado vape

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