A disseminação do Mpox - Portal Drauzio Varella
mão de médico com luva segurando tubo de exame com sangue para teste de mpox
Publicado em 16/09/2024
Revisado em 16/09/2024

Como explicar que o vírus mpox tenha se mantido por mais de 50 anos causando surtos ocasionais, para chegar ao padrão de disseminação atual, em que os casos duplicam a cada dois anos? Leia no artigo do dr. Drauzio.

 

A lesão ulcerada era tão profunda que a médica teve a impressão de que o pênis do rapaz estava para cair.

Esse paciente foi atendido em 2017 pela doutora Polaji Otika-Odibi, numa clínica em Port Harcourt, no sul da Nigéria. Pouco depois, surgiriam mais três pacientes com o mesmo tipo de lesão, com a diferença de que também estavam infectados pelo HIV.

Em setembro de 2017, vários jovens procuraram assistência médica com lesões genitais semelhantes – a maioria deles convivia com o HIV. Os exames laboratoriais foram positivos para mpox, doença viral até então encontrada no país apenas três vezes, a última delas havia 39 anos.

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Em 2022, a mpox acometeu tantos homens que fazem sexo com homens que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou-a Emergência em Saúde Pública de Preocupação Internacional.

No entanto, depois de 100 mil pessoas­ terem sido atingidas, em 116 países, o número de casos, misteriosamente, diminuiu tão depressa que a OMS deixou de considerá-la emergência.

Estudos realizados na Nigéria mostraram que o vírus havia se disseminado silenciosamente pelo país durante dois anos, antes do aparecimento do paciente da clínica de Port Harcourt.

Neste ano de 2024, foram descritos, na República Democrática do Congo, pacientes infectados por uma variante mais agressiva do que as anteriores. Quase todos eram homens que praticavam sexo pago com mulheres.

A doença se espalhou pelos países vizinhos: Uganda, Burundi, Ruanda e Quênia, lugares até então virgens da infecção pelo vírus. Um cidadão sueco que viajou para a África voltou com os sinais característicos de mpox. Em agosto de 2024, a OMS voltou a considerar a doença uma Emergência em Saúde Pública.

A pedido da revista “Science”, John Cohen e Abdullahi Tsunni viajaram para a Nigéria em busca das origens da doença, no país.

Esse poxvírus foi descoberto num laboratório na Dinamarca, em 1958. A identificação dos hospedeiros intermediários veio em seguida: roedores silvestres, como ratos e esquilos.

O primeiro paciente da Nigéria foi diagnosticado em 1970. Era um menino de nove meses. No ano seguinte, houve mais dois casos; em 1978, mais um. Até recentemente todos os doentes eram crianças.

Em 1978, a OMS comunicou: “É uma doença esporádica, rara, que não parece constituir problema de saúde pública”.

No ano histórico de 1980, a OMS declarou extinta a varíola, virose muito contagiosa, com mortalidade de 30%, que deixava marcas no rosto dos sobreviventes. Foi a primeira doença infecciosa ­eliminada­­ da face da Terra pela vacinação (inacreditável ainda existirem tantos antivacina). Mais tarde, a vacina antivariólica seria indicada para a prevenção da mpox.

Diversos surtos de mpox se espalharam pelo mundo: 455 casos até 1980 nos países da África Central; 338 entre 1981 e 1986 no Congo; e 76 num surto nos Estados Unidos em 2003.

Em 2010, um estudo documentou 760 casos num só distrito do Congo. Todos eram meninos da zona rural ou caçadores que se embrenharam na floresta. Menos de 10% eram vacinados contra a varíola.

No período de 2018 a 2021, foram diagnosticados, no total, nove pacientes nos Estados Unidos, Reino Unido, Israel e Cingapura. Todos haviam viajado para a Nigéria, país que já soma 4,5 mil casos.

A duração limitada desses surtos fez supor que a transmissão inter-humana não seria sustentável.

Como explicar que o vírus tenha se mantido por mais de 50 anos causando surtos ocasionais, de duração limitada, na África, para chegar ao padrão de disseminação atual, em que os casos duplicam a cada dois anos?

Até os anos 2000, na África sub-saariana não havia estradas para ligar regiões distantes nem aeroportos internacionais movimentados. O aumento populacional, a construção de estradas, de aeroportos e o vaivém de viajantes criaram condições para o vírus se espalhar pelo mundo.

É possível também que os hábitos dos roedores hospedeiros tenham se modificado, por causa da devastação das florestas e das mudanças climáticas ou que o vírus tenha infectado outras espécies.

Certamente, a redução dos níveis da vacinação antivariólica ao redor do mundo é outro fator de risco para a mpox.

Será uma nova pandemia que se anuncia?

Impossível saber: depende das mutações que o vírus sofrerá. Como nos ensinaram Alfred Wallace e Charles Darwin, a evolução é imprevisível.

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