Permanecer sem comer por muitas horas pode deixar algumas pessoas irritadas. Entenda o que acontece no cérebro durante o período de jejum.
Já ouviu a frase “cara feia pra mim é fome”? A expressão é antiga, mas tem certo sentido. Quando ficamos sem comer por muito tempo, é comum nos sentirmos irritados, de mau humor e até com mais dificuldade de concentração. Comer é uma necessidade fisiológica do organismo, e, quando deixamos de atender a essa necessidade, o nosso corpo entra em estado de alerta.
Segundo Maria Carolina Doyle Maia, psiquiatra, professora de psiquiatria e coordenadora do Ambulatório de Comportamento Alimentar e Obesidade da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), existe uma parte do cérebro chamada córtex pré-frontal – que é a região da frente da cabeça, próxima à testa –, responsável pelo planejamento de ações como decidir comer ou não um alimento ou fazer ou não determinada tarefa.
“Depois de um certo tempo sem comer, o córtex pré-frontal começa a perder um pouco a capacidade de tomar decisão, porque o corpo entra em um estado de jejum, aumenta a liberação de cortisol [o hormônio do estresse] para poder mobilizar a glicose e conseguir manter as taxas de glicose do corpo funcionantes”, explica a médica.
Se esse estado de jejum for breve, não haverá grandes repercussões. “Mas se a pessoa continuar sem se alimentar por muitas horas, o corpo vai entrando nesse estado de estresse, de alerta, sinalizando que você precisa se alimentar e dificultando até a sua capacidade de se concentrar em outras coisas, porque está faltando glicose. O corpo precisa se mobilizar para conseguir isso, então ele diminui o metabolismo e tenta poupar energia até a sua próxima refeição”, completa.
Quando você finalmente come, a comida é absorvida mais rapidamente e o prazer de comer é maior. Com o córtex pré-frontal mais vulnerável e a capacidade de tomada de decisão comprometida após o estado prolongado de fome, também é maior a chance de comer mais do que você comeria normalmente, principalmente alimentos muito gordurosos ou açucarados.
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Escolha dos alimentos faz diferença
A médica reforça que comer é um ato biológico e, por isso, prazeroso. “A comida é algo prazeroso para nos manter vivos. Quando a gente come, a gente tem uma sensação de prazer imediata, principalmente se for uma comida altamente palatável – doce, com mais sal ou com mais gordura. A sensação de comer dá um alívio imediato porque isso é para nossa sobrevivência. Se comer fosse desagradável, a gente não ia sentir prazer e não ia comer a quantidade necessária para se manter vivo”, afirma.
Mas os alimentos que comemos fazem diferença na nossa saúde física, obviamente, e também nesse estado de mau humor ou bem-estar que vamos ter ao longo do dia. O ideal é optar por alimentos que dão maior sensação de saciedade.
“Eu falo que toda refeição deveria ter, para melhora da saciedade, um alimento regulador e um alimento construtor. O que é isso? Uma proteína e uma fibra, para diminuir um pouco a rapidez da digestão, trazendo saciedade por mais tempo e fazendo com que você não tenha fome rapidamente. Por exemplo, se você só come um pão com manteiga, sem um ovo, sem um queijo branco, a chance de ter fome mais rapidamente é maior, porque o corpo degrada rapidamente o carboidrato”, explica a dra. Maria Carolina.
Se a pessoa opta frequentemente por biscoitos, balas, salgadinhos, etc., ela não vai se sentir saciada por muito tempo e vai ter muita oscilação de glicose no sangue e, com isso, maior oscilação de humor.
“Quanto mais alimentos que me dão prazer e ao mesmo tempo saciedade eu planejo para comer ao longo do dia, maior o tempo de bem-estar emocional, maior o tempo de bom humor que eu vou ficar. Essa questão da escolha alimentar faz diferença no meu bem-estar e na regulação hormonal. Então, a gente vai ter uma regulação neuroendócrina melhor de acordo com o tipo de alimento que a gente escolhe”, esclarece.
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Fatores externos
O mau humor causado pela fome pode ser mais ou menos intenso a depender do contexto em que a pessoa está inserida. Ou seja, existem fatores externos que podem estar relacionados a esse estado de irritabilidade. A especialista explica que o corpo humano é todo integrado e todo estresse a que somos submetidos vai se somar ao estresse do jejum. “Quanto mais estresse você está passando, mais difícil vai ser lidar emocionalmente com aquele momento de ausência de comida.”
Vamos a um exemplo comum: você saiu para trabalhar e esqueceu a marmita em casa, está tendo uma reunião atrás da outra e quando se dá conta, já se passaram 6 ou 7 horas sem comer. O nível de estresse e mau humor que você estará ao final desse período será muito maior do que se você estivesse há horas sem comer passeando durante as suas férias, com outras fontes de prazer que, de certa forma, “mascaram” a fome.
O organismo vai tentar buscar um equilíbrio hormonal para lidar com o jejum, porque o corpo é feito para ficar em jejum em caso de necessidade. Porém, sem nenhuma outra fonte de distração para a fome, a tendência é ficar “de cara feia” mesmo.
“O cortisol por si só não é ruim, porque ele vai avisar o organismo de que é preciso se mobilizar para a gente ter glicose. Mas no contexto prolongado do estresse – e o jejum prolongado poderia ser considerado um estresse –, você soma vários estresses ao mesmo tempo, você vai ter um nível de cortisol muito elevado mantido por muito tempo, sem contrabalancear com outras coisas”, diz a psiquiatra.
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Como evitar o mau humor?
A resposta mais óbvia e simples seria: comendo. Mas existem algumas orientações para além disso. A primeira é se planejar no dia a dia para não ficar muitas horas em jejum, por exemplo, deixando refeições pré-prontas ou levando alimentos para o trabalho para não ficar com fome, se passar muito tempo fora de casa, ou mesmo comer algo entre as refeições principais, caso sinta fome.
Vale destacar que as pessoas têm metabolismos diferentes. Algumas têm necessidade de comer mais vezes ao dia e outras menos. “Existe uma região chamada hipotálamo, que está relacionada ao controle homeostático, ou seja, o balanço energético de cada um. Essa homeostase vai depender do peso da pessoa, da quantidade de comida que ela ingere ao longo do dia. Então, se a pessoa ingere geralmente poucos alimentos ao longo dia, a fome noturna vai ser maior. Se é uma pessoa que já come mais vezes ao dia, o corpo dela entende que não há necessidade de reserva, e não aumenta a fome noturna. Essa fome natural para deixar o corpo com equilíbrio de energia e de glicose vai depender do equilíbrio homeostático de cada pessoa”, informa a médica.
O outro ponto é relacionado ao tipo de alimento que se consome, conforme falamos no início do texto. Optar por refeições que contenham proteínas e fibras é o mais indicado para manter a sensação de saciedade por mais tempo, evitar ter fome muito rapidamente e, consequentemente, prevenir o estado de mau humor que pode ocorrer quando estamos há muito tempo de barriga vazia.