Seletividade alimentar vai muito além do “não comer”. É preciso estar atento a alguns sinais presentes na rotina da criança.
Quando nasce um bebê, um dos primeiros contatos que ele tem com a mãe é através da amamentação, e ali ele conhece o primeiro alimento necessário para o seu desenvolvimento.
Mas ao longo do crescimento, começam as novas etapas, dentre elas, a temida introdução alimentar, que deixa diversas famílias ansiosas, afinal, elas precisam descobrir a melhor forma de apresentar novos alimentos, ainda levando em consideração a dinâmica familiar, acesso e o núcleo social em que estão inseridas.
E quando, além desses questionamentos, a criança apresenta dificuldade na alimentação? É aí que tudo se torna mais angustiante. Muitas crianças, durante esse período, já começam a apresentar sinais de distúrbios alimentares.
“Através do DSM-V [Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais] e da CID-11 [11ª edição da Classificação Internacional de Doenças], é considerado distúrbio alimentar as alterações persistentes na alimentação ou no comportamento relacionado aos alimentos. Como consequência, a criança também apresenta alteração no consumo e absorção desses alimentos”, complementa Caroline da Costa Sousa, pós-graduada em Psicologia da Infância e especialista em Saúde pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Caroline explica, ainda, que os primeiros mil dias de vida interferem na saúde futura do adulto, e que a nutrição tem um papel muito importante para o desenvolvimento neuropsicomotor, que vai afetar não apenas o desenvolvimento físico, motor, intelectual e cognitivo, mas também social e emocional.
Por isso, é recomendado que as consultas com o pediatra estejam em dia e que os cuidadores conheçam os marcos de desenvolvimento para saber reconhecer os sintomas apresentados e procurar ajuda especializada ainda na infância.
O que desencadeia um transtorno alimentar?
O transtorno pode se manifestar devido a causas orgânicas, psicoemocionais e dietéticas, mas sempre levando em consideração a avaliação clínica e o histórico da criança.
- Causas orgânicas: podem estar relacionados aos distúrbios do metabolismo, desnutrição, problemas respiratórios, transtornos do neurodesenvolvimento, alterações sensoriais, disfagia, entre outros;
- Causas psicoemocionais: relacionadas a falta de rotina, introdução alimentar inadequada, problemas no núcleo familiar – como separação dos cuidadores e mudança de rotina repentina, traumas provenientes de uma situação desagradável, ansiedade etc;
- Causas dietéticas: como intolerância à lactose, intolerância alimentar, monotonia alimentar, alergias, entre outros.
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Quais são os distúrbios alimentares mais comuns na infância?
- Anorexia fisiológica: é identificada entre 6 e 12 meses, em que o bebê pode apresentar uma desaceleração no crescimento e menor apetite. Pode durar cerca de 4 a 5 anos. Apesar dessa diminuição no interesse em se alimentar, a criança não apresenta alteração do estado nutricional.
- Anorexia infantil ou anorexia verdadeira: é identificada quando a criança se recusa a comer espontaneamente. Os motivos podem ser de causa orgânica ou comportamental, influenciando na quantidade de nutrientes que o corpo precisa para se desenvolver de forma saudável.
- Falsa anorexia: quando os cuidadores entendem que a criança não está se alimentando de forma adequada, mas o desenvolvimento está dentro dos padrões esperados.
- Pseudo-anorexia: perda de apetite relacionada às características do alimento ou por dificuldade na alimentação, como: mastigação, deglutição, presença de aftas, estomatite, problemas dentários ou outras condições que provoquem dor e sofrimento.
- Anorexia seletiva ou seletividade alimentar: mais comum, é caracterizada quando a criança se recusa a comer uma variedade de alimentos e só aceita certos tipos (que podem ser determinados por cores, texturas, modo de preparo, quente, frio). Em alguns casos, pode desencadear problemas nutricionais. Em outros, apesar da seletividade, se a criança escolhe consumir alimentos considerados saudáveis, o desenvolvimento não é impactado.
Como os transtornos alimentares afetam o desenvolvimento?
Sabemos que todo o sistema do corpo humano trabalha em conjunto para que tudo funcione bem ao longo da vida. Durante o desenvolvimento infantil, o bom funcionamento do organismo é ainda mais importante.
“Os distúrbios alimentares impactam todas as áreas da vida de uma criança. Nós precisamos de energia para que o nosso corpo funcione, e essa energia vem através da alimentação, que não é só da comida em si, mas também do momento que gira em torno da refeição, todo o afeto que está ligado e também relacionado ao apetite”, explica a psicóloga Caroline.
Quando uma criança apresenta um desses transtornos e não é acompanhada e tratada corretamente, pode desenvolver outros problemas no futuro, como: baixa estatura, cabelos danificados, falta de disposição para realizar atividades, dificuldade no aprendizado escolar, doenças cardiovasculares. “Os distúrbios alimentares também estão muito associados a distúrbios de imagem corporal e autoestima”, completa.
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Como os tratamentos são realizados?
O tratamento é individual, clínico, nutricional e em alguns casos com acompanhamento comportamental e medicamentoso. “Quando a gente vai fazer uma avaliação em saúde, uma das primeiras coisas que a gente avalia é se há ou não alteração no sono ou do apetite, e também avaliamos rotina e histórico familiar”, diz Caroline.
Todas essas informações são importantes para que a equipe multidisciplinar da criança atue em conjunto. Isso porque é necessário sempre priorizar o seu bem-estar e as especificidades do diagnóstico.
Por exemplo, se o transtorno alimentar está associado ao transtorno do processamento sensorial (TPS), nutricionistas e terapeutas ocupacionais podem trabalhar em conjunto. Por outro lado, se o distúrbio está associado a uma causa psicoemocional, a equipe pode ser composta por nutricionistas e psicólogos especializados em terapias cognitivo-comportamentais. Cada caso é avaliado conforme o principal prejuízo no desenvolvimento infantil.
A participação da família, o acolhimento e o modelo de alimentação na rotina também são essenciais para a evolução da melhora da criança.
Como as famílias podem ajudar a melhorar a relação da criança com os alimentos?
Em muitos países, como o Brasil, a alimentação também está muito ligada ao social, ao emocional, à cultura e ao que a família trouxe de herança das gerações passadas. Basta conhecermos os costumes de outros estados para perceber isso na prática.
Por isso, incluir as crianças nesse contexto pode ser ainda mais benéfico para que a relação com o alimento se torne mais saudável. Veja algumas dicas:
- Inclua as crianças durante os preparos dos alimentos (comece com funções mais simples e vá aumentando conforme a idade: como lavar o arroz, lavar ou cortar os legumes, preparar algum tempero);
- Leve as crianças na feira para explorar os diferentes alimentos (além de ensiná-las a escolher frutas e legumes, elas têm acesso a uma grande variedade de cor, formas e texturas);
- Apresente os pratos através de historinhas, para aguçar a curiosidade e incentivar a experimentação;
- Não associe boa alimentação a um corpo bonito, mas sim à boa saúde;
- Exercite o comer compartilhado, ao redor da mesa, sem a distração de telas.
Além disso, é muito importante que todas essas ações sejam realizadas de forma sucessiva, sem forçar a criança a fazer algo que ela não se sinta à vontade. O respeito também faz parte da introdução alimentar na infância.
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