Miro vive na região conhecida como Cracolândia, em São Paulo, e é usuário de crack há mais de 20 anos. Leia no artigo do dr. Drauzio Varella.
Não existe bala de prata para acabar com a cracolândia. Vários prefeitos e governadores já prometeram extingui-la com o emprego de forças policiais e medidas de combate ao tráfico; em vão.
A tentativa mais bizarra foi a de colocar viaturas policiais atrás dos frequentadores, com o objetivo de fazê-los andar sem trégua pela cidade, para que se cansassem e aceitassem de bom grado a internação em clínicas para dependentes químicos. Outra foi a de dispersá-los com jatos de água e spray de pimenta. Outra, ainda, a de retirá-los do local duas vezes por dia, para a lavagem da sujeira nas calçadas, intervenção que os obrigava a sair e a voltar para a esquina das ruas Helvécia e Cleveland, nas proximidades da Sala São Paulo, sede da Orquestra Sinfônica, orgulho dos paulistanos.
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Há anos, tenho o hábito de correr pelo centro da cidade, aos domingos. Não me canso de admirar os prédios das ruas Boa Vista, 15 de Novembro, Direita, São Bento, entre outras que me trazem imagens da infância, quando ia com meu pai pagar as contas de luz, água e telefone, num tempo em que os bancos nem cogitavam prestar esse serviço.
Da igreja de São Bento, cruzo o Viaduto Santa Efigênia, percorro a rua do mesmo nome e atravesso a cracolândia na direção do Largo Coração de Jesus.
Ao passar correndo pelo Fluxo, volta e meia acontece de alguém me chamar pelo nome. Geralmente são homens que me conheceram numa das cadeias ou mulheres que tratei, nos13 anos em que atendi na Penitenciária Feminina.
A gente se espalha, mas volta assim que a repressão afrouxa. Eles dizem que vão acabar com os traficantes. Como, se o próprio usuário vende pra sustentar o vício?
Nessas ocasiões, paro para conversar. Em pouco tempo se forma uma rodinha. Numa dessas, outro dia estava Miro, um negro de cabelos brancos que disse ter assistido a uma das palestras sobre aids que fiz no antigo Carandiru.
Nascido no sertão do Ceará, Miro chegou em São Paulo nos anos 1990, para morar com os tios em Parelheiros, que lhe arranjaram emprego de carregador numa empresa de mudanças. Não se deu bem com a metrópole e seus habitantes, muito diferentes da cidadezinha acolhedora em que fora criado.
Contou que começou a beber para encontrar um pouco de alegria depois do trabalho pesado. Então, conheceu o crack. Entre experimentar e cair nas garras da cocaína, foram apenas três ou quatro meses. Em pouco tempo, estava na cracolândia, seu lar nos últimos 23 anos, interrompidos apenas por três prisões por furto.
Miro sobrevive com uma carrocinha para catar papelão pelas ruas do Bom Retiro. Trabalha duro de manhã ao fim da tarde, com o objetivo de ganhar R$ 50. Assim que coleta a quantidade de material suficiente, leva para o armazém, recebe o pagamento e volta para a cracolândia. Fuma quantas pedras consegue comprar e volta para o Bom Retiro com a carrocinha, atrás de tudo que puder ser reciclado.
“O Fluxo é a minha casa. Não é fácil: durmo em cima de um papelão, às vezes bebo a água que corre no meio fio, porque os comerciantes da redondeza não dão água da torneira pra nós; chego a catar comida velha no lixo, já passei um ano inteiro sem tomar banho. Anos atrás, um primo me achou e me internou contra a minha vontade. Fiquei três meses, ganhei dez quilos e fugi pra cracolândia, porque a Clínica era uma prisão pior do que a da cadeia.”
Dois anos atrás uma moça que morava no Fluxo, disse que tinha dado à luz um filho dele na Maternidade Leonor Mendes de Barros, no Belenzinho. Ele respondeu que não lembrava de ter estado com ela, mas que não se importava de assumir a paternidade, para que o bebê não ficasse sem o nome do pai na carteira de identidade, como foi o caso dele. Não adiantou, a criança estava sob a guarda do Conselho Tutelar.
Miro é contra a dispersão dos usuários, pela polícia.
“De que adianta? A gente se espalha, mas volta assim que a repressão afrouxa. Eles dizem que vão acabar com os traficantes. Como, se o próprio usuário vende pra sustentar o vício? Antes, no Fluxo, os caras pesavam na balança; hoje, com a repressão, o usuário vende de punhado na palma da mão. Você não compra mais por peso, compra pelo número de pedras. Tem pedra a dois reais.”
Quando perguntei o que ele achava das ações do governo para acabar com a cracolândia, sorriu: “Quando escuto uma autoridade falar isso, lembro das aulas de catecismo: Perdoai-os Senhor, eles não sabem o que dizem”.