Infelizmente, crimes relacionados à raça e à cor são muito comuns nos serviços de saúde, seja contra pacientes ou profissionais da área. A advogada Fayda Belo explica como agir nesses casos.
Um médico que tem sua competência constantemente questionada, uma mulher que recebe menos anestesia, um enfermeiro que ouve comentários agressivos ao tentar fazer seu trabalho, um paciente que aguarda horas por atendimento enquanto outras pessoas passam na frente… Essas situações podem parecer isoladas. Menos para quem é negro.
Por questões sociais e econômicas, a população negra sofre diariamente com a maior incidência de doenças associadas à dificuldade de acesso aos atendimentos em saúde. A grande maioria depende exclusivamente do SUS, o Sistema Único de Saúde, um direito teoricamente universal e igualitário.
Mas, mesmo quando conseguem ser atendidos, os negros enfrentam mais um obstáculo: o racismo.
Números que falam por si só
De forma geral, faltam dados sobre a experiência da população negra com os atendimentos em saúde. Os que existem, porém, são alarmantes.
Quando a vítima é o paciente
De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) publicada em 2015, 12,6% das pessoas que já passaram por situações de discriminação nos serviços de saúde apontam o fator racial como motivação. Não à toa, 23,3% dos negros se sentem ou já se sentiram discriminados durante o atendimento.
Na prática, isso quer dizer ofensas, falta de escuta às queixas do paciente, diagnóstico ou tratamento equivocado, pedidos desnecessários de medicamentos e por aí vai.
Durante a gestação, o cenário só piora. As mulheres negras são as mais suscetíveis a sofrer violência obstétrica ao longo da gravidez, o que significa que são vítimas de práticas que causam dor física ou psicológica, como agressões verbais, recusa de anestesia, aplicação não autorizada de medicamentos, entre outras.
De acordo com a pesquisa “A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil”, mães negras correm mais risco de ter pré-natal inadequado (67,9%), de receber menos orientações sobre as complicações do parto (41,4%), de não serem autorizadas a ter um acompanhante (33,8%) e de receber menos anestesia durante o corte no períneo (10,7%).
“A essa mulher não é dado o zelo e o cuidado que acontece com as outras. A mulher preta não é vista como frágil, mas como um ser que aguenta a dor. Por isso, ainda hoje, é a maior vítima da violência obstétrica”, afirma Fayda Belo, advogada especialista em crimes de gênero, direito antidiscriminatório e feminicídio.
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Quando a vítima é o profissional de saúde
No caso dos negros que ingressam na área da saúde, os relatos de racismo também são recorrentes.
Um levantamento do Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo e da Articulação Nacional da Enfermagem Negra mostrou que, entre os enfermeiros e técnicos de enfermagem do estado de São Paulo, 64% já perceberam uma situação de racismo no ambiente de trabalho. Delas, 55,9% haviam sido cometidas pelo paciente e 46,6% por outros colegas de equipe.
Entre os exemplos apontados, estão:
- desconfiança dos seguranças na unidade;
- falta de promoção de funcionários negros para cargos de chefia;
- designação das piores escalas ou lugares de trabalho para os profissionais negros;
- diferença nas relações interpessoais;
- e toucas de equipamento de proteção individual (EPI) pequenas para o cabelo negro.
Quando há a discriminação contra esses profissionais, o desafio é dar continuidade ao atendimento. No entanto, para não ser acusado de omissão de socorro, a recomendação dos conselhos que representam esses trabalhadores é realizar o atendimento normalmente, registrar o ocorrido no prontuário e, então, tomar as medidas cabíveis.
O que eu posso fazer em caso de racismo?
Para buscar os seus direitos ao passar por situações como essas, Fayda dá as seguintes dicas:
1. Entenda a diferença entre injúria racial e racismo
Registrada no artigo 140 do Código Penal, a injúria racial é a ofensa e discriminação dirigida a um único indivíduo a partir de sua raça e cor. Já o crime de racismo, definido pela Lei 7.716/89, é quando essa ofensa e discriminação é contra a população negra em geral.
“Se eu digo que a Fayda é uma macaca, o meu ódio e discriminação é contra ela. Aí eu cometo crime de injúria racial. Mas se eu digo para a Fayda que o nariz de preto é horroroso, eu pratico racismo, porque a minha discriminação não é contra a Fayda apenas, mas a toda a população negra”, exemplifica a advogada.
No crime de racismo, a pena pode chegar a até 5 anos de reclusão, sendo imprescritível e inafiançável. A injúria racial, por sua vez, tem como pena 1 a 3 anos de prisão e multa, mas já existe um projeto de lei que pretende equipará-lo ao de racismo.
Veja também: O que há por trás da desigualdade racial em saúde no Brasil?
2. Disque 190 imediatamente
Seja qual for a tipificação, ao se deparar com a prática racista, Fayda indica que não espere para fazer o boletim de ocorrência. O ideal é ligar para a Polícia Militar através do Disque 190 na mesma hora a fim de garantir a prisão em flagrante.
“Se for pego em flagrante o racista vai ser preso, e depois o juiz decide se responderá em liberdade ou não. Mas se o B.O. é feito depois, não existe flagrante. Então, o racista vai aguardar o processo no livre conforto da sua casa”, explica.
Se os policiais recomendarem registrar o B.O. depois, bata o pé e insista.
“A pessoa que sofre racismo é revitimizada, porque, muitas vezes, o policial que atende a ocorrência entende que aquilo não é nada. Então, exerça o seu direito: se ele está sendo pego no ato ou após realizar o ato, a lei diz que deve ser preso em flagrante”, ressalta Fayda.
Também é possível registrar o Boletim de Ocorrência em delegacias comuns ou especializadas, como a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), ou ainda denunciar pelo Disque 100 – Disque Direitos Humanos.
3. Grave tudo e sempre tenha alguém por perto
No entanto, além do menosprezo, às vezes, das autoridades em relação a esses crimes, o racismo e a injúria racial têm um caráter velado no Brasil. Às vezes, a ofensa não é dita explicitamente, mas a pessoa negra sabe que está sendo discriminada.
“Muita gente fala: ‘Como eu provo que o branco entrou, o médico atendeu e eu fiquei esperando? Como eu vou dizer que isso é racismo?’. É simples. Se a sua ficha era antes dele e ele não tinha urgência, algo está errado. Isso já é uma prova”, aponta Fayda.
Outra forma de se proteger é gravar tudo e ter sempre alguém por perto. Leve ou chame uma pessoa para presenciar a situação, faça vídeos e perceba se o lugar onde você está tem câmeras. Fique atento a tudo que possa ser utilizado como evidência depois.
“E aqui tem outro ponto relevante: no caso de crime de racismo, qualquer pessoa pode ligar 190 e fazer a denúncia. Diferentemente da injúria, em que a própria vítima precisa dar andamento”, destaca.
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4. Procure auxílio jurídico
Nos processos de racismo, considerado um crime de ação pública, a vítima pode recorrer ao Ministério Público para garantir a sua defesa. Ela não precisa, se não quiser, ir em busca de um advogado.
Já nos processos de injúria racial, como a ação é condicionada à representação da vítima, após o registro do Boletim de Ocorrência, deve-se procurar um profissional. Se a pessoa não tiver honorários para isso, ela pode procurar um Defensor Público na Defesa Pública.
É importante destacar que, se o crime foi cometido por um profissional de saúde e ele se recusou a prestar atendimento, poderá responder ainda por omissão. E as consequências dessa omissão – se o paciente passou mal ou até se veio a óbito – também podem ser colocadas sob responsabilidade do réu.
Como acabar com o racismo dentro e fora das unidades de saúde?
Para Fayda, é urgente que os hospitais e os profissionais de saúde sejam antirracistas. Mais uma vez, os dados sobre a quantidade de médicos negros atuando no Brasil são escassos, mas basta se perguntar: quantas vezes você já foi atendido por um médico negro na sua vida?
“A gente precisa de mais corpo técnico que entenda que preto é gente, que preto é igual e que preto tem o direito constitucional à vida e o acesso à saúde como qualquer outro indivíduo”, pontua a advogada.
Conteúdo produzido em parceria com a Afrosaúde.
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