A fome voltou a assolar o país, e mais da metade dos brasileiros vive em situação de insegurança alimentar. Veja o artigo do dr. Drauzio.
A fome nos envergonha há décadas.
Cinquenta anos atrás, ela afligia as populações do Norte, do Nordeste e dos grotões espalhados pelo país, gente castigada pelas endemias rurais. As migrações internas trouxeram crianças e adultos subnutridos para as periferias das cidades grandes.
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Quando fiz o internato no Hospital das Clínicas, chegavam crianças magrinhas, pele e osso, desidratadas, ao lado de outras inchadas, cabelinho fino e desbotado, desnutridas pela falta de proteínas na dieta. Na Pediatria, havia uma enfermaria exclusiva para elas. A morte de um filho era encarada com resignação.
Nós nos revoltávamos contra a ordem social causadora de tanta miséria. Imaginávamos que seríamos capazes de eliminá-la em pouco tempo com políticas públicas, democracia e a solidariedade dos que viviam em condições melhores.
Trinta anos atrás, Herbert de Souza, o Betinho, lançou a “Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida”, para assistir aos 32 milhões de brasileiros mal alimentados, daquela época. Foi a primeira grande campanha da sociedade civil para levar comida aos mais pobres.
Semana passada, em entrevista à jornalista Fernanda Mena, Kiko Afonso, diretor-executivo da Ação, declarou: “A gente regrediu literalmente 30 anos. Mas, o sentimento de indignação da sociedade de hoje, diante da fome de 33 milhões de brasileiros, está muito aquém da indignação de 1993. Estamos inertes, como sociedade”.
Hoje, mais da metade dos brasileiros vive em situação de insegurança alimentar, seja leve, moderada ou grave. Se considerarmos grave aquela em que há escassez de alimentos para todos os indivíduos de uma família, chegando até mesmo à condição de fome igual, a média nacional é de 15,5 %.
Acima dessa média, estão os que moram no Norte e no Nordeste, os que ganham menos de dois salários mínimos, as mulheres e os pretos e pardos. Desde 2018, o número dos que passam fome aumentou 2,5 vezes.
Desde que estejam seguros de que os recursos chegarão à mesa dos mais necessitados, os que vivem em condições melhores não se negarão a contribuir. O que não dá mais para aceitar é continuarmos de braços cruzados diante dessa tragédia.
Essa realidade deveria sensibilizar o governo federal para a urgência da criação de um gabinete de crise que coordenasse um programa nacional para a distribuição de alimentos aos que correm risco de desnutrição. Se é verdade que a nossa agricultura alimenta 1 bilhão de pessoas no mundo, o que nos impede de dar de comer para todos os brasileiros?
O recrudescimento da epidemia de fome está associado ao desemprego, ao empobrecimento da população, à crise econômica, à inflação, à pandemia, ao clima, à guerra no Leste Europeu e ao desmonte de políticas sociais.
Não há perspectiva de resolvermos esses problemas nos próximos meses, nem de esperarmos solidariedade humana por parte de governantes que já provaram desconhecer o significado dessa palavra. Se a realidade é essa, cabe a nós a tarefa de acabar com a fome.
No início da pandemia do coronavírus, o Itaú-Unibanco doou mais de R$ 1 bilhão para ajudar a combatê-la. Para tanto convidou sete especialistas voluntários que se reuniram pela internet todos os dias, por mais de um ano, para analisar com liberdade total, os pedidos de ajuda que chegavam dos quatro cantos. A logística de compra e distribuição do material ficou por conta da estrutura interna do banco que, em nenhum momento, interferiu em nossas decisões. Nenhum beneficiário recebeu dinheiro vivo.
Nunca imaginei que pudéssemos fazer tanto com tão pouco (o SUS investe em Saúde 240 bilhões por ano). Foram aviões de carga, inúmeras carretas com respiradores, medicamentos, máscaras, gorros, aventais, que cruzaram o país, de Roraima ao Sul, compra de ambulâncias para atender ribeirinhos, financiamentos de pesquisas para entender o comportamento do vírus e ajuda direta a comunidades carentes.
Quando Betinho fundou o Ação da Cidadania Contra a Fome, a sociedade não dispunha de organizações sociais para dar suporte ao programa criado por ele. A realidade agora é outra, a própria Ação faz esse trabalho há 30 anos; no último Natal, distribuiu 1.700 toneladas de alimentos que chegaram a 700 mil famílias. A CUFA e outras associações fazem trabalhos semelhantes.
Se esses esforços forem reunidos será possível sensibilizar a sociedade a fazer doações. Desde que estejam seguros de que os recursos chegarão à mesa dos mais necessitados, os que vivem em condições melhores não se negarão a contribuir. O que não dá mais para aceitar é continuarmos de braços cruzados diante dessa tragédia.