A reunião de usuários de crack na Cracolândia não é um corpo estranho que despencou do espaço em São Paulo.
Domingo, assim que o dia clareia, gosto de correr pelo centro velho. Desço a Consolação, entro na Ipiranga, passo pela agitação na porta da Love Story, viro à direita na Barão de Itapetininga e já estou no meio dos prédios mais encantadores da cidade.
Excluído o entra-e-sai da boate, as ruas se recuperam das extravagâncias do sábado à noite, silenciosas e desertas.
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Na Praça da Sé, dou a volta na catedral, cruzo com os moradores da praça que formam fila para receber o café da manhã que os voluntários lhes servem, com o pregador que fala das armadilhas de Satanás para meia dúzia de gatos pingados, passo pelo casarão da Marquesa de Santos junto ao Pátio do Colégio, Largo São Bento e Viaduto Santa Efigênia.
Toda vez que atravesso o viaduto me vêm à cabeça, repetitivos como mantras, os versos trôpegos de Adoniran Barbosa: “Venha ver, venha ver Eugênia, como ficou bonito o Viaduto Santa Efigênia”.
Sigo pela rua do mesmo nome, paraíso dos compradores de eletrônicos, na direção da Duque de Caxias e da antiga Estação Sorocabana, que hoje abriga a Sala São Paulo e a Osesp, nossa orquestra sinfônica, expressão máxima da cultura paulista.
Em poucos minutos chego à Cracolândia, denominação abjeta, forjada para nos dar a impressão de que se trata de uma excrescência incrustada na cidade sem fazer parte dela, como um tumor maligno que a polícia não consegue extirpar.
A assim chamada Cracolândia não é um corpo estranho que despencou do espaço sideral, numa vizinhança degradada. Os que ali passam a vida vieram ao mundo e foram criados dentro de nossa ordem social.
No último domingo, na esquina da Alameda Cleveland com a rua Helvetia, homens e mulheres se aglomeravam maltrapilhos, encardidos, com os cabelos desgrenhados e o cachimbo inseparável, seu bem maior. Alguns fumavam crack, outros vagavam feito baratas tontas, inquietos, falando sozinhos, no meio da rua e do lixo acumulado. Outros, agachados entre os companheiros, vasculhavam o chão atrás de migalhas das pedras que eventualmente saltam dos cachimbos incandescentes.
Dei a volta no Largo Coração de Jesus, com a igreja e o colégio do mesmo nome, onde estudaram meu pai, meus tios e primos, hoje sitiado pelo crack, e virei na Dino Bueno, paralela à Alameda Cleveland. Um pouco à frente, uma fila maior do que a da Praça da Sé levava a uma porta em que distribuíam café com leite e pão com manteiga.
Na esquina seguinte, um homem descalço, tão alto quanto esquálido, de barba grisalha e rosto encarquilhado, atirava pedaços de pão para os pombos que o rodeavam. Um deles pousou meio desequilibrado em seu ombro. Parecia São Francisco.
Depois do programa que a Prefeitura implantou na região, diminuiu o número de habitantes naquela esquina. Domingo passado, no entanto, tive a impressão de que voltamos ao que era antes.
Há meses não via tantos usuários reunidos. Entre eles, contei cinco meninas em fase avançada de gravidez. Certamente haveria outras, em estágios mais precoces.
Não consigo me conformar, como a cidade mais rica do país não se dá ao trabalho de armar uma barraca na esquina, para oferecer anticoncepcionais para essas meninas. Tenho certeza de que formariam fila. Elas não decidem ficar grávidas para viver os mistérios da maternidade.
Existem anticoncepcionais administrados por via intramuscular que previnem gravidez por três meses. Há outros que conseguem fazê-lo por mais tempo, quando implantados sob a pele.
É uma iniquidade assistirmos impassíveis ao nascimento dessas crianças e ao sofrimento das mães escravizadas pela dependência de cocaína, que engravidam porque precisam vender o último bem que lhes restou. Que futuro aguarda bebês nascidos em condições tão trágicas?
A assim chamada Cracolândia não é um corpo estranho que despencou do espaço sideral, numa vizinhança degradada. Os que ali passam a vida vieram ao mundo e foram criados dentro de nossa ordem social. Na maioria das vezes, não foi o crack que lhes desgraçou a existência; a pobreza, a falta de perspectivas e as iniquidades do ambiente em que cresceram é que os conduziu à sarjeta.
Negar às usuárias de crack o acesso aos métodos anticoncepcionais – direito garantido por lei federal a todas as brasileiras -, é uma ignomínia que expõe a face mais perversa do moralismo hipócrita de nossa sociedade.