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Câncer

Leucemia mieloide crônica requer persistência durante o tratamento

Publicado em 08/04/2014
Revisado em 11/08/2020

Mesmo não sendo submetidos à quimioterapia, pacientes precisam realizar tratamento para leucemia mieloide crônica por toda a vida, com a administração diária de medicamentos. Mas há novas perspectivas para o tratamento da doença. 

 

Com o dia livre, Edmilson Vasconcelos, de 65 anos, aproveitou a calmaria prometida por uma manhã de clima ameno em meados de abril de 2010 para ir ao mercado perto de sua casa, no Bexiga, bairro de São Paulo. Mas durante o trajeto, uma impressão de estar fora de si veio anunciar que serenidade não passava de um engano: o dia seria estressante como outro qualquer.

O cearense teve de engarrafar a calmaria que costumava ter em Fortaleza para conseguir servir com agilidade na profissão de barman, que segue desde que chegou à capital paulistana, na década de 1970. Ao longo dos anos, a rotina de pedidos ininterruptos rendeu-lhe um dia a dia marcado por cansaço e falta de fôlego. Mais recentemente, começou também a se sentir aéreo e com a cabeça pesada. Edmilson achou que fosse uma progressão causada pelo acúmulo do estresse e pelo cigarro.

Não se sentia diferente naquela ida ao mercado, mas no caminho de volta, fazendo esforço para carregar as sacolas, a sensação ruim foi se agravando, trazendo junto tontura e fraqueza intensa. “A partir de um ponto, não consegui mais andar. Encostei em um poste para poder me manter em pé. Dei sorte que duas senhoras que me conheciam estavam passando por ali, viram que não estava bem e vieram me ajudar. Chamaram um táxi para me levar até um hospital.”

 

Veja também: Anemias

 

“Só me lembro do momento em que entrei no carro. Depois disso, apaguei.” Quando acordou já estava internado no Hospital do Servidor Público, onde passou por uma série de exames. Entre os rotineiros, um mais específico: um mielograma, espécie de hemograma feito com sangue da medula óssea.

No dia seguinte, os resultados saíram: Edmilson, assim como 1 em cada 100 mil adultos aos 50 anos, era portador de LMC (Leucemia Mieloide Crônica), um tipo de câncer que atinge as células do sangue e da medula óssea causado por alteração nos cromossomos 9 e 22. A anomalia provoca mutações no DNA das células mieloides (subtipos de glóbulos brancos chamados) e faz com que o organismo produza células de defesa doentes de maneira descontrolada.

 

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Veja o mecanismo que causa a LMC

 

“Por causas ainda não conhecidas, segmentos dos cromossomos 9 se destacam e se prendem às extremidades dos 22, e vice-versa. A combinação final no cromossomo 22 forma uma anormalidade genética denominada ‘cromossomo Ph’ (Philadelphia). Esse novo cromossomo envia sinais para a medula óssea produzir a proteína BCR-ABL, que dá ordem para o organismo aumentar a produção de leucócitos anormais. O normal é produzir entre 4 e 8 mil (índice normal). O portador de LMC passa a gerar 10 mil. Já cheguei a pegar um paciente com 600 mil leucócitos”, explica a dra. Carla Boquimpani, chefe do setor de Oncohematologia  do Hemorio.

Segundo a dra. Monika Conchon, médica responsável pelas mieloproliferações no Hospital Santa Marcelina, a priori, na primeira fase da doença os leucócitos doentes mantêm a mesma função dos saudáveis: combater e eliminar infecções. Por isso, muitas vezes o paciente não sente sintomas intensos e não se dá conta da doença. “Mas se essa anormalidade não for corrigida, as células vão ficando mais numerosas e a doença progride para fases avançadas caracterizadas pela possibilidade de sangramentos e infecções”, conclui a médica.

 

Assintomática

 

Como a LMC não provoca sintomas aparentes, geralmente a pessoa descobre a doença por acaso. “Ela passa a se sentir cansada, com falta de ar e resolve passar em um médico. Ou então a descoberta vem quando a pessoa está entrando em uma empresa e precisa fazer exames admissionais. Quando saem os resultados, o médico nota o aumento agressivo na quantidade de leucócitos no organismo”, explica a dra. Boquimpani

O aumento dos glóbulos brancos abre ao médico um leque de possibilidades: pode ser uma infecção, uma gravidez, uma leucemia comum, uma LMC ou outras inúmeras doenças. “Para termos certeza do que se trata, pedimos o mielograma, exame em que se aspira sangue direto da medula óssea com o intuito de analisá-lo”. Identificada a BCR-ABL na medula, é preciso então saber o nível em que essa proteína está presente. Para isso é necessário fazer um hemograma PCR qualitativo.

 

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Sintomas da LMC

 

Depois dessa bateria de exames, caso seja identificada a doença, o paciente passa a ser acompanhado com o PCR quantitativo, que calcula a taxa de leucócitos do sangue.

 

Tratamento dispensa quimioterapia

 

“Entraram um médico e uma médica para me dar a notícia. Na hora em que eu ouvi, senti o mundo acabar, meu coração quase parou. Só pensava: agora a vida não é mais a mesma coisa. Tinha certeza que iria morrer. Não porque me sentia mal; pelo contrário, os sintomas eram sutis e semelhantes a qualquer problema que temos no dia a dia, mas pelo fato de saber que estava com câncer. Como contaria isso para os meus familiares? Como a minha mãe, uma senhora de mais de 80 anos, iria suportar saber que poderia perder seu filho?”

O que ele não sabia, e poucas pessoas sabem, é que as complicações da LMC não são como as que estamos acostumados a ver em filmes e novelas. Por causa da evolução dos tratamentos nas últimas décadas, hoje em dia é possível controlar a evolução da doença apenas com medicação diária, sem ser necessário passar pelas tão temidas quimioterapias.

O transplante de medula óssea, que até 1988 era a melhor opção de tratamento e que ainda hoje é uma alternativa para as outras leucemias, é facilmente descartada nesses casos. Além de ser difícil encontrar um doador compatível, uma cirurgia é muito mais complicada do que usar comprimidos.

As respostas ao medicamento têm sido muito satisfatórias. Segundo dados da Abrale (Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia), em mais de 80% dos casos o paciente demonstra remissão completa da doença. As terapias-alvo agem especificadamente para inibir a ação da proteína BCR-ABL do cromossomo Ph. Apesar do choque inicial, ao longo dos 26 dias em que ficou internado Edmilson teve tempo suficiente para entender melhor como se desenvolvia sua doença e se sentir confiante em relação ao tratamento já iniciado.

Quando recebeu alta, Edmilson foi encaminhado a outro hospital para dar continuidade ao acompanhamento de sua doença. No processo, foi feita a troca de seu medicamento por um considerado de última geração. Apesar de mais avançado, não demorou para o remédio causar reações adversas intensas. “Sentia ânsia de vômito e diarreias quase que constantes. Apesar de sentir pequenos incômodos causados pela LMC no meu dia a dia, nada era comparado aos efeitos colaterais do medicamento.” Reações como essas, além de câimbras, náuseas e mialgia, são corriqueiras na vida do portador, mas em geral não são intensas,. No entanto,  é comum haver casos como o do barman. Diante da intensidade dos sintomas, o mais indicado é tentar outro medicamento. Depois de seis meses com fortes reações, Edmilson teve que voltar ao medicamento anterior.

 

Orientação gratuita aos pacientes

 

Quando teve de arcar com os remédios, Edmilson se deparou com uma terapia de alto custo. Com gastos que vão de R$6 mil a R$9 mil, ele recorreu ao SUS, que oferece gratuitamente o imatinibe e outras duas opções, o dasatinibe e o nilotinibe. O barman precisava do dasatinibe, mas como essa droga é considerada de 2ª linha (segunda opção de tratamento) e ainda caro, o trâmite para conseguir retirá-los gratuitamente era maior.

É preciso levar documentos originais e fotocopiados (CPF e RG), comprovante de residência (original e fotocópia), receita médica com identificação do paciente em duas vias (legível, com nome do princípio ativo e dosagem prescrita), laudo para Solicitação/Autorização de Medicamentos de Dispensação Excepcional emitida em quatro vias (desde que a assinatura e carimbo do médico que o atendeu sejam originais em todas as vias), laudo clínico resumido emitido pelo médico informando se foram tentados outros esquemas terapêuticos, especificando-os em caso positivo. Com orientação dos médicos, Edmilson conseguiu reunir toda a documentação.

Mesmo assim, o SUS negou o pedido. Não chega a ser uma surpresa. Muitas vezes o sistema público entende que não se faz necessária a troca do medicamento. Por sugestão de seu médico, a saída foi buscar ajuda da Abrale. A associação oferece gratuitamente ajuda jurídica e serviços de saúde (incluindo nutricionista, psicologia, odontologia) a pessoas com câncer no sangue. Desde 2002, a assistência já beneficiou diretamente mais de 25 mil pessoas e atualmente tem 22 mil cadastros. À frente da instituição está a empresária Merula Steagall, 47 anos. Portadora de uma doença rara (talassemia), ela também teve que enfrentar a dificuldade de encontrar ajuda para trâmites com medicamentos e, principalmente, tirar dúvidas a respeito da doença. Resolveu, então, fundar a instituição para dar apoio multidisciplinar àqueles que passam pelos mesmos problemas.

“O conhecimento é um poder. Informado, o paciente passa a saber dos direitos que muitas vezes não fazia ideia que tem. É nesse ponto que entramos, para atendê-lo,  intermediar o procedimento entre o paciente e o governo, e também para passar ao Estado as demandas dessas pessoas, do que elas precisam, do que seria interessante haver no rol do SUS. O problema é que muitas vezes eles não têm acesso nem a nós. Por isso é importante o papel dos médicos nessa hora e, principalmente, procurar mais informações sobre a doença em questão”.

A equipe da Abrale se pôs à frente do caso de Edmilson. Com a interferência da advogada da associação, Andréa Bento, não houve dificuldades. Ela fez o pedido formal à Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo e dentro de alguns dias o barman já estava com o medicamento em mãos. “Caso a secretaria negasse novamente, seria preciso entrar com uma liminar para intimá-la a cumprir o pedido. O deferimento do juiz ocorre dentro de 48h, é muito simples. Se eles não cumprirem o mandato judicial, pagam multa diária ao paciente, que vai de R$ 1 mil para mais, então são raras a vezes que se mantém a negativa”, explica Andréa.

Com remédios em mãos, Edmilson recomeçou a terapia, mas novamente os efeitos colaterais passaram a incomodar: inchaço abdominal, falta de ar e uma coceira muito forte em todo o corpo. “Lembro de um dia que não consegui dormir por causa da coceira. Passei a noite em claro e no dia seguinte tive que ir trabalhar, mas estava extremamente cansado e estressado. Cheguei a conversar com meu médico, mas ele disse que não havia muito o que fazer. Tive que conviver com isso por longos quatro meses, mas depois passou.”

“Muitos pacientes não reportam os pequenos efeitos colaterais por acreditarem ou já terem constatado que o médico os trata como detalhes sem relevância. Por isso, é importante ter conhecimento de que os efeitos colaterais existem, sim, mas podem ser remediados. O médico pode fazer pequenos ajustes na terapia, ou no mínimo reportar às farmacêuticas – o que pode servir para futuros testes com o medicamento”, afirma Merula.

 

Pacientes interrompem tratamento por conta própria

 

Os efeitos colaterais são um dos maiores obstáculos dos pacientes com LMC, que terão que conviver com os sintomas ao longo da vida para não correrem risco de descontrolar os níveis de BCR-ABL (gene do cromossomo Ph). Por causa do desconforto, muitos pacientes decidem, por conta própria, fazer uma pausa no tratamento. Como os resultados positivos dos remédios não demoram muito a aparecer e os índices de BCR-ABL ficam quase zerados em um ano (em 3 meses de tratamento, os índices chegam a menos de 10%, em 6 meses, 1%  e em um ano,  0,1%), os pacientes acreditam que estão curados. “Cheguei a ficar alguns dias sem a medicação para ver se os sintomas amenizavam. Por sorte, não houve interferência nos meus níveis de BCR-ABL; pelo contrário, a última vez que verifiquei estava 0,14, muito baixo”, diz Edmilson.

“Depois de um tempo que você convive com a doença, é inevitável se sentir mais seguro em relação a ela. Tomando o remédio e fazendo os exames, nota-se que os índices começaram a baixar. A qualidade de vida desses pacientes é excelente, eles conseguem praticar esportes e cumprir as tarefas do dia a dia poucas horas depois dos sintomas passarem. Aí vem sempre uma questão: ‘Vou continuar a sentir efeitos desagradáveis dos medicamentos para sempre sendo que meu índice está quase zerado e eu, praticamente curado?’ É nessa hora que o paciente passa a ser mais relapso com o tratamento, acaba esquecendo de tomar a medicação ou faz uma pausa por conta própria”, relata Merula.

Nem Edmilson nem nenhum dos pacientes com LMC gostaria de ficar atado ao tratamento. Segundo uma pesquisa feita pela Abrale, 24,4% dos pacientes confessaram que já pararam de tomar a medicação por conta própria. A atitude pode ser um tiro no escuro. “Ainda não se sabe definitivamente se a medicação pode ser suspendida e que não haverá retorno da doença. Por ora, a terapia deve ser seguida à risca. O exame de hemograma PCR quantitativo também deve ser feito a cada três meses. Só ele consegue contabilizar quantos glóbulos brancos existem no organismo e provar se a doença está ou não diminuindo”, ressalta Boquimpani.

Por segurança, vale a pena manter o tratamento. A intensidade dos sintomas que acometeram Edmilson é uma exceção. De fato, não há muita saída para evitar esses efeitos, mas existem remédios para dor de cabeça ou azia e pomadas para coceira que podem aliviar o desconforto. “Para os sintomas mais comuns costumamos receitar os remédios mais corriqueiros do dia a dia. Já para o inchaço, também bastante comum, indicamos algum diurético. Para as câimbras, água tônica é indicada”, afirma Boquimpani.

 

Novas esperanças

 

“Por mais que um paciente de LMC não tenha a rotina desgastante de pessoas com outros tipos de tumor, ele ainda é portador de uma doença que pode colocar sua vida em risco. Ninguém quer viver com esse risco para sempre”, diz a presidente da Abrale.

Uma pesquisa promovida pela Novartis Oncologia traz esperança aos que sofrem de LMC. O estudo apelidado de ENESTop pretende analisar a possibilidade de suspensão do medicamento após determinado período em que o paciente mantém a LMC controlada, com níveis indetectáveis de doença. Durante cinco anos, cerca de 2500 pacientes em 39 países serão acompanhados pelos centros médicos envolvidos na pesquisa para certificar que depois de um tempo utilizando o nilotinibe há remissão da doença. Aqui no Brasil, nove núcleos de referência em hematologia vão conduzir um dos braços do programa.

A dra. Monika Conchon, uma das coordenadoras do estudo, afirmou que os pacientes já estão sendo recrutados no Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Campinas, Goiânia, Curitiba e Porto Alegre para participarem do ENESTop. “Existem pré-requisitos para poder participar: 1º) é necessário ter tomado imatinibe por, pelo menos, um ano; e 2º) é preciso estar há dois anos tomando o nilotinibe. Ou seja, é preciso que o paciente tenha 3 anos de tratamento.”

Recrutado, o paciente terá que tomar o medicamento por um ano, fazendo exames a cada dois meses. “Se ele não apresentar variação nos níveis de BCR-ABL, faremos a suspensão. Em seguida, esses pacientes com aparente remissão devem ser acompanhado por mais 3 anos antes do parecer.”

Vale lembrar que, mesmo sendo usuário do nilotinibe, esse tipo de pausa não deve ser feita por conta própria. “Quando fazemos uma pesquisa, seguimos uma série de regras para que não se coloque a vida do paciente em risco, por isso acompanhamos de perto cada recrutado”, ressalta Conchon.

A esperança em torno do ENESTop é enorme, uma vez que o nilotinibe apresenta respostas mais rápidas para inibir a ação do BCR-ABL mesmo naqueles pacientes tolerantes à terapia. “Há um tempo houve uma pesquisa parecida com essa, na Europa, com imatinibe. Só que ele não apresentou as respostas esperadas. Metade dos participantes que pararam de tomar o medicamento apresentaram recaídas e foram detectados níveis de BCR-ABL no sangue. Desta vez  esperamos  uma resposta positiva, para que o paciente possa viver sem remédio e sem a doença”, explica Conchon.

Segundo Merula, uma conclusão positiva pelo estudo é esperada com ansiedade pelos pacientes. “Os portadores continuam levando a vida normalmente, mas no fundo, no seu psicológico, eles carregam o fardo de ainda serem pacientes. O sabor de se libertar desse ‘colete’ certamente será delicioso.”

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