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Genética

Doenças raras atingem mais de meio bilhão de pessoas

Publicado em 28/02/2014
Revisado em 11/08/2020

A incidência de doenças raras chega a mais de meio bilhão de pessoas. Enfermidades constituem desafio por falta de pesquisa e acesso a tratamento.

 

Imagine percorrer mais de dez médicos em busca de um diagnóstico e ao final da jornada ouvir que seu filho é portador de uma doença rara. Mais: que as opções de tratamento são escassas, ou até mesmo nulas. Não se engane pela designação de “raras”. Cerca de 13 milhões de brasileiros sofrem de alguma delas. Somente no estado de São Paulo são 2,5 milhões. No mundo, a incidência de doenças raras chega a 560 milhões de pessoas, segundo pesquisa recente da Interfarma (Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa).

“Rara” se aplica às doenças com cinco casos diagnosticados para cada grupo de dez mil habitantes. Cerca de 80% delas são de origem genética, o restante engloba tipos raros de tumor ou alterações imunológicas e reumatológicas.

A idade dos progenitores é um dos fatores que pode estar relacionada ao aparecimento de enfermidades raras. “A mulher nasce com o número de óvulos para a vida toda, ao contrário dos homens, que criam novos espermatozoides a cada três, quatro dias. Uma mulher de 40 anos tem óvulos de 40 anos. Isso a deixa mais suscetível a alterações cromossômicas ou erros de divisão nos cromossomos”, complementa Lourenço.

Se um casal nessas condições deseja ter filhos, o ideal é que seja indicado um exame pré-natal invasivo pelo qual se colhe o líquido amniótico. A amostra é encaminhada para uma análise de genética molecular e podem ser detectados problemas antecipadamente.

 

Veja também: O desafio das doenças raras

 

Diagnóstico tardio

 

Um dos grandes problemas em relação às doenças raras é o diagnóstico tardio e a grande quantidade de enfermidades descritas: sete a oito mil.

Segundo o médico João Gabriel Daher, especialista titular de doenças raras do Ministério da Saúde, muitas enfermidades começam a apresentar sintomas tardiamente. “Por isso, é extremamente comum os pais falarem que, quando pequenos, os filhos pareciam “normais”.

Ainda assim, algumas características podem ajudar na hora do diagnóstico. Fique atento, por exemplo, se a criança costuma ser muito “molinha”, demora mais para sentar, caminhar ou demonstra atraso marcante para começar a falar.

 

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A falta de especialistas e centros dedicados agrava os obstáculos na busca por diagnóstico. Muitos testes, inclusive, precisam ser enviados ao exterior. Segundo dados de 2014, existem 241 médicos com título de especialista em Genética Médica, sendo essa a especialidade reconhecida pela AMB com menos médicos com título de especialista dentre as 53 especialidades avaliadas.

Na opinião de Charles Lourenço, médicos que não são especialistas em genética não têm obrigação de fazer o diagnóstico, mas devem pelo menos orientar as famílias sobre a possibilidade de nascimento de um filho com o mesmo problema nas próximas gestações. Na prática, nem isso acontece.

Patrícia de Carvalho, de Poço Fundo, Minas Gerais, é mãe de Pâmela, de 12 anos. O primeiro sinal que chamou a atenção foi a demora para começar a sentar e falar. Os primeiros pediatras consultados diziam: “Calma, mãe! Isso é normal”. Mas o tempo foi passando e os problemas se agravando. Ainda assim, os médicos começaram a suspeitar de alguma paralisia cerebral, não de doença genética.

“Levamos três anos entre idas e vindas a diversos especialistas, até que encontramos a equipe do doutor Charles, que começou a investigar a parte genética. O exame foi mandado para a Suíça, porque aqui eles não tinham como descobrir, e aí, sim, confirmaram o diagnóstico. Nunca tinha ouvido falar em deficiência de BH4 na vida”, diz a mãe.

Enquanto corria de médico em médico, Patrícia engravidou novamente. Pâmela tinha cinco anos quando nasceu Natália, com a mesma doença. Ambas foram diagnosticadas quando tinham oito e três anos, respectivamente.

A deficiência de BH4 pode causar retardo mental e atraso no desenvolvimento da criança. Há um caso a cada milhão de nascidos vivos.

Apesar de não ter cura, a associação de alguns medicamentos pode fazer com que a doença não evolua. O problema é que eles são importados e o SUS (Sistema Único de Saúde) não os disponibiliza. “É um remédio de alto custo, quase R$ 30 mil uma quantidade que dura um mês. E o uso deve ser contínuo”, afirma Patrícia.

A família teve que entrar na Justiça para conseguir o remédio. Desde 2008, as irmãs fazem o uso do medicamento, que deve ser complementado com fisioterapia, hidroterapia e terapia funcional, procedimentos oferecidos pela prefeitura.

“Elas estão respondendo bem à medicação. Pâmela começou o tratamento com dez anos, a Natália com cinco. Natália, por ser mais nova e ter iniciado o tratamento mais cedo, consegue fazer pequenos movimentos com as mãos. Ela não fala, mas emite sons que conseguimos entender. É um progresso. Cada uma no seu ritmo”, diz Patrícia.

 

Medicamentos x SUS

 

Quando não existe tratamento farmacológico, a solução para praticamente a maioria dos portadores de doenças raras é entrar na Justiça com uma ação judicial. Entretanto, o processo é longo e pode demorar até mais de um ano para ser concluído, já que existem remédios que não são nem registrados na Anvisa e necessitam de protocolos específicos para serem importados.

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Dr. Charles Lourenço diz: ” O SUS já se esforça para tentar fornecer o básico, mas a genética é um pouco mais que o básico”.

Segundo o último levantamento, em 2017, o Ministério da Saúde destinou R$ 1 bilhão para a compra de produtos judicializados.

Somando estados e municípios, o valor chega a R$ 7 bi/ano. Apenas entre 2010 e 2017, houve um aumento de 1.010% nos gastos da Pasta com este tipo de aquisição. “A judicialização da medicina não é boa para o paciente, que sofre com a espera, nem para o Estado, que precisa comprar o medicamento imediatamente para não receber uma multa. Então ele acaba comprando pelo preço normal, não consegue negociar”, explica Lourenço.

Em tese, o SUS só fornece tratamento para dois tipos de raras: osteogênese imperfeita (doença dos ossos de vidro), que apresenta a fragilidade óssea como principal manifestação clínica, e doença de Gaucher, mal em que restos de células envelhecidas se acumulam sobre órgãos como fígado, baço e medula óssea, causando fadiga, sangramentos e desconforto abdominal.

Mas há uma perspectiva de melhora nesse cenário. Em 12/02/2014, o Ministério da Saúde publicou no Diário Oficial da União uma portaria que cria a Política Nacional de atenção integral aos portadores de distúrbios raros. O SUS deverá incorporar 15 novos exames de diagnóstico e credenciar hospitais e instituições para atendimento de pacientes portadores dessas enfermidades. “Podemos dizer que agora o Brasil está começando a se preocupar com essa questão, coisa que Estados Unidos, Japão e Europa vêm fazendo desde 1983. Acredito que a partir de agora haverá uma estruturação dos serviços e, de acordo com a demanda, serão solicitados protocolos para a incorporação de novos medicamentos e serviços”, prevê o médico João Gabriel.

 

Sem resposta

 

Marianna com sua Gabriela.
Marianna com a mãe Gabriela. Doença da menina ainda é incógnita para os médicos. Foto: Yrê Sales

Gabriela Mendes é mãe de Marianna, de seis anos. Ela já perdeu as contas de quantos médicos já procurou a fim de conseguir uma explicação para o problema da filha, e até hoje pairam dúvidas. Os médicos suspeitam que seja uma doença genética denominada miopatia mitocondrial, distúrbio que afeta as mitocôndrias, “fábricas de energia” presentes em quase todas as nossas células.

A queixa mais comum de portadores desse mal é fadiga muscular diante de pequenos esforços, além de dificuldade para respirar. Por causa da perda de força muscular que acomete alguns pacientes, muitos necessitam de cadeiras de rodas para se locomoverem. “Ela já fez biópsia muscular, que é uma forma de diagnóstico, mas não deu em nada. Então, os médicos acharam que, talvez, aquele músculo não tenha sido atingido pelo distúrbio. O próximo passo é realizar um sequenciamento do exoma, que vai analisar o DNA dela e descobrir quais são as deficiências genéticas. É a nossa esperança”, diz a mãe. “O exame custa aproximadamente R$12 mil. Nós vamos tentar pelo plano, mas se não der certo vamos ter que conseguir pela Justiça, mesmo”, conta.

Ela relata ainda que há dois anos iniciou pela internet uma campanha denominada “Vai pra China, Marianna”. A ideia era angariar fundos para que a menina pudesse fazer um tratamento à base de células-tronco no Oriente. Em agosto de 2012, porém, a mãe decidiu abolir o plano, pois pacientes que fizeram traqueostomia não são aceitos. Outro fator que a fez mudar de ideia é que a terapia é completamente experimental e não há garantia de melhoras. “Nenhum médico com que conversei apoiou esse tipo de tratamento, pois os resultados não são comprovados cientificamente”.

Enquanto o diagnóstico não vem, a solução é cuidar dos sintomas. Marianna faz diariamente sessões de fisioterapia, fono e terapia ocupacional. “Por mais que as pessoas de fora encarem isso como um sofrimento, eu digo que é uma experiência única. Eu sou muito grata por tê-la em minha vida e por tudo o que ela vem recebendo”, diz Gabriela.

Apoio aos portadores de raras

 

Quem tem um filho diagnosticado com alguma doença rara costuma dizer que sente uma grande solidão. Os próprios familiares acabam se afastando, já que não sabem como ajudar, há pouquíssimas informações disponíveis sobre a doença e nem os médicos sabem explicar direito o que é aquela enfermidade.

Marília Castelo Branco, aos 39 anos, teve um filho diagnosticado com Síndrome de Edwards, erro genético que consiste na trissomia do cromossomo 18, ou seja, o indivíduo nasce com três cópias do cromossomo 18, ao invés de duas. A doença acomete diversos órgãos, principalmente o coração, além de provocar nascimento prematuro e com baixo peso.

A percepção de que havia algo errado, nesse caso, não demorou. Logo depois do parto ela notou que o filho não chorou e que a equipe médica o levou para uma sala assim que nasceu. Foi feito um exame de cariótipo e o laudo saiu rápido. Naquele momento, os médicos deram somente 30 dias de vida para Thales, mas ele acabou vivendo um ano e cinco meses na UTI de um Hospital de Ribeirão Preto. “Essa situação que passamos é totalmente fora do padrão. Ninguém sabe explicar direito o que está acontecendo. Você fica desamparada”, desabafa Marília.

Para amenizar a angústia, ela conta que criou uma comunidade no Orkut e a partir daí começou a conhecer dezenas de pessoas que tinham alguém na família com a Síndrome de Edwards. A página foi crescendo e o número de participantes chegou a 2 mil, até que Marília resolveu criar uma associação, com sede em Ribeirão Preto: a Síndrome do Amor. “Nosso objetivo é dar carinho, apoio e amor a essas famílias. Compartilhei o que aprendi com a doença do Thales e decidi ajudar os outros. É uma maneira de mostrar que eles não estão sozinhos e que dá para encarar a doença por outro viés”.

Atualmente, a entidade possui 1430 famílias cadastradas. Ela promove parcerias com hotéis de Ribeirão para que as famílias que vêm dos mais diversos lugares possam ficar instaladas, já que o Hospital das Clínicas da cidade é referência em doenças genéticas.

DUDU
Regina Próspero com seu filho Dudu. Ele é portador da Mucopolissacaridose.
Foto: Arquivo Pessoal

A história de Regina Próspero é parecida. Ela teve dois filhos acometidos pela síndrome de Hunter (Mucopolissacaridose [MPS]) do tipo 6, enfermidade metabólica crônica e progressiva, que afeta quase exclusivamente os meninos.

A síndrome prejudica diversos órgãos e algumas das características notáveis são hérnia umbilical (causa fraqueza do tecido abdominal próximo à região do umbigo), nariz largo, além de dimorfismo facial.

Um dos filhos, Niltinho, morreu aos seis anos, vítima da doença. Já Dudu tem hoje 28 e completou a faculdade de Direito e, mesmo com deficiência visual e algumas limitações físicas, está na segunda graduação e é servidor concursado da Prefeitura de Itápolis, interior de SP. Tamanha diferença no curso da doença não é questão de sorte.

Em 2001, a família descobriu que um laboratório nos Estados Unidos estava recrutando pacientes para testar um remédio para MPS. Após diversas triagens, Dudu foi selecionado e um dos primeiros a receber o medicamento. “Era a única coisa que podia salvá-lo. Ele só está vivo por causa deste tratamento. Quando ele começou, era cadeirante, não conseguia nem respirar direito. Hoje se locomove sem nenhum aparelho. Um ano depois, ele também deixou de ser surdo”, relembra a mãe.

O tratamento é eficiente para os tipos 1, 2 e 6 dos sete catalogados. Desde 2003, o medicamento já está disponível em território brasileiro, mas, como para tantos outros portadores de doenças raras, ergue-se novamente o mesmo desafio: é necessário entrar na Justiça para consegui-lo.

Com o intuito de orientar os familiares em relação aos direitos que os filhos possuem sendo portadores de MPS, Regina junto a outros pais, criaram a Associação Paulista de Mucopolissacaridose e Doenças Raras, hoje Instituto Vidas Raras. Segundo informações da entidade, no Brasil existem 1050 pacientes vivos diagnosticados com MPS e cerca de 700 estão em tratamento. “Eu conheci a MPS quando ainda não havia tratamento e, infelizmente, o óbito era precoce. A medicação mudou esse panorama e agora nós temos novos desafios, porque os portadores estão chegando a uma idade que não chegavam antes”, afirma Lourenço.

Apesar de o Brasil ainda estar caminhando nesse quesito de raras, o médico sempre procura dizer para as famílias que possuem um ente com algum distúrbio o seguinte: “Hoje, nós não temos um medicamento específico. Mas, daqui a cinco, oito anos, isso pode mudar”.

Em comparação com a grande quantidade de enfermidades raras, os estudos sobre cada uma delas ainda são poucos. Portanto, àqueles que conseguem o diagnóstico, a principal dica é procurar associações como as citadas, pois elas podem ajudar a cortar um longo caminho de aprendizado sobre como lidar com o problema.

 

Com colaboração do Instituto Vidas Raras: vidasraras.org.br

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