A condição caracteriza-se por alterações da sensibilidade e desconforto nos membros inferiores. Veja entrevista sobre síndrome das pernas inquietas.
A síndrome das pernas inquietas foi descrita pela primeira vez pelo neurologista sueco Karl-Axel Ekbom, em 1947. Caracteriza-se por alterações da sensibilidade e desconforto nos membros inferiores, mas que podem acometer também os braços, e melhoram quando a pessoa se movimenta. Embora os sintomas apareçam quase sempre à noite, nos casos avançados, podem manifestar-se também durante o dia.
A síndrome das pernas inquietas compromete a qualidade de vida dos portadores e de seus parceiros. Primeiro, porque a agitação motora e os movimentos involuntários das pernas interferem no sono de ambos. Depois, porque muitos pacientes não conseguem assistir a uma simples sessão de cinema, ir ao teatro, ou permanecer sentados por mais tempo durante uma reunião social ou de negócios, nem dentro de um automóvel ou de um avião.
É preciso não confundir esse distúrbio com certos movimentos rítmicos e repetitivos que aparecem quando a pessoa está distraída ou muito tensa. Há quem balance as pernas enquanto lê, escreve ou vê televisão, mas isso nada tem a ver com a síndrome das pernas inquietas. São cacoetes que desaparecem assim que a pessoa se dá conta do que está fazendo.
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CARACTERÍSTICAS
Drauzio – Tiques, muita gente tem. Às vezes, a pessoa está sentada diante do computador, escrevendo, ou no cinema, distraída com o filme, e balança as pernas em movimentos rítmicos. Qual a diferença entre esses movimentos repetitivos e a síndrome das pernas inquietas?
Dalva Lucia Rollemberg Poyares – Muitas pessoas são inquietas e estão sempre se mexendo, mas os movimentos repetitivos que fazem com as mãos e os pés podem ser induzidos também pelo consumo excessivo da cafeína existente no café, nos refrigerantes à base de cola e no guaraná, por exemplo.
Na síndrome das pernas inquietas, o desconforto que predomina nas pernas, mas pode acometer também os braços nos casos mais graves, é menor durante o dia, maior à noite e obriga o paciente a mexer-se para aliviar os sintomas.
As pessoas descrevem a sensação da seguinte maneira: “Minhas pernas pinicam, sinto um comichão que vem de dentro para fora e, às vezes, lembra uma dor interna”.
Considerando todos os graus da doença, dos leves até os mais graves, nove em cada cem pessoas, portanto 9% da população, podem desenvolver a síndrome das pernas inquietas.
Drauzio – Como você descreveria o movimento que faz parte dessa síndrome?
Dalva Lucia Rollemberg Poyares – O portador da síndrome não está necessariamente sempre movimentando as pernas. Ele as movimenta ou massageia para aliviar a sensação ruim que o impede muitas vezes de pegar no sono.
PREVALÊNCIA
Drauzio – A síndrome acomete preferencialmente pessoas de que idade?
Dalva Lucia Rollemberg Poyares – A síndrome das pernas inquietas acomete preferencialmente os adultos e sua incidência aumenta com o envelhecimento. No entanto, sabe-se que pode ocorrer também em crianças e nos idosos com doença de Alzheimer e outras demências, pessoas que não conseguem relatar exatamente o que estão sentindo. No caso específico dos idosos, a agitação é atribuída a causas outras e a tendência é sedá-los, o que piora o quadro.
Embora seja mais rara a manifestação nas crianças, elas se mostram inquietas na hora de dormir, choram, resmungam, esticam e encolhem as pernas, e a mãe percebe que fazendo massagens, a criança se acalma. Na realidade, a massagem movimenta a perna e alivia os sintomas.
Teoricamente, portanto, a síndrome das pernas inquietas pode aparecer em qualquer fase da vida, mas ocorre com maior frequência no adulto do que na criança e no idoso e em determinadas famílias com predisposição genética para o problema.
Drauzio – Qual é a prevalência da síndrome?
Dalva Lucia Rollemberg Poyares – Considerando todos os graus da doença, dos leves até os mais graves, nove em cada cem pessoas, portanto 9% da população, podem desenvolver a síndrome das pernas inquietas.
CAUSAS
Drauzio – Que relação existe entre o movimento e o alívio dos sintomas?
Dalva Lucia Rollemberg Poyares – Essa relação é desconhecida, assim como é desconhecida a causa da síndrome das pernas inquietas. Entretanto, já sabemos que a deficiência de uma substância química, a dopamina, em determinadas regiões do cérebro faz com que os indivíduos não consigam controlar os movimentos. Já ficou provado que os sintomas melhoram, se aumentarmos os níveis de dopamina no cérebro.
O diagnóstico da síndrome é muito mais clínico do que laboratorial. Daí, a importância de levantar a história do paciente e pedir-lhe para descrever o desconforto que sente nas pernas. Um dos relatos é típico: o incômodo melhora quando ele se levanta e caminha, o que não acontece com os indivíduos diabéticos ou com problemas neurológicos.
Drauzio – Na verdade, a causa da agitação das pessoas com a síndrome das pernas inquietas, que também pode afetar os braços, não é um distúrbio psiquiátrico. É a alteração de um neurotransmissor, a dopamina, em áreas motoras do cérebro.
Dalva Lucia Rollemberg Poyares – Exatamente. E, há mais uma razão para justificar a presença da síndrome: a deficiência no aproveitamento de ferro pelo cérebro. Como se sabe, o ferro é um elemento importante na composição do sangue. Níveis alterados no sangue periférico podem ocorrer também em alguns tipos de anemia.
Às vezes, encontrar teores baixos de ferritina e transferrina, substâncias que transportam ferro no sangue periférico, facilita o diagnóstico da síndrome das pernas inquietas nos não anêmicos e repor ferro pode eventualmente resolver o problema.
INTENSIDADE DOS SINTOMAS
Drauzio – Os sintomas da síndrome das pernas inquietas não são permanentes. Sofrem flutuações no decorrer da doença. Por quê?
Dalva Lucia Rollemberg Poyares – Existem vários graus de apresentação da síndrome. Alguns são tão leves que o indivíduo nem os identifica como problema. Acha que fazem parte de sua maneira de ser. Acontece que nos dias em que tomam muito café (a cafeína é um estimulante) ou fumam muito, os sintomas ficam mais intensos.
Entretanto, há casos mais graves da doença. Tive uma paciente que chegou ao consultório em desespero. “Estou procurando a senhora como último recurso. Se não me curar, da próxima vez que tiver uma crise, pulo da janela”. E não era uma ameaça para chamar a atenção. A filha já a tinha surpreendido tentando fazê-lo para livrar-se do incômodo que há tantos anos não a deixava dormir e a transformara numa pessoa sem esperança de alívio. Por incrível que pareça, isso aconteceu com a mãe de um colega nosso, porque o ensino da medicina do sono não está suficientemente divulgado nas faculdades de medicina!
Drauzio – O que ela sentia que não a deixava dormir?
Dalva Lucia Rollemberg Poyares – O caso era muito grave e os sintomas tão intensos que ela chegou a pedir que lhe amputassem as pernas. Ela dizia: “Tento desesperadamente dormir, mas as pernas não deixam. Não adianta tomar remédio. Fico sonolenta, acordada, caio no chão quando tento levantar, porque as pernas continuam incomodando”. Na verdade, o remédio para dormir não é solução para a síndrome das pernas inquietas e o tratamento inadequado só piora o problema.
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EVOLUÇÃO
Drauzio – As manifestações sempre surgem à noite?
Dalva Lucia Rollemberg Poyares – As manifestações surgem geralmente à noite, no momento em que o indivíduo fica sonolento, decide dormir e vai para a cama. Entretanto, com a progressão da doença, os sintomas podem ocorrer também durante o dia. Por exemplo: a pessoa que está trabalhando diante do computador pode ser tomada por um leve estado de sonolência, o mal-estar nas pernas aparece e ela é obrigada a levantar-se e a andar.
Em estágios mais avançados da doença, os movimentos involuntários das pernas podem ocorrer enquanto a pessoa dorme, o que incomoda muito o/a parceiro/a.
Drauzio – Nesse caso, o portador da síndrome tem dificuldade para dormir, ou depois que dorme passa a movimentar as pernas e acorda?
Dalva Lucia Rollemberg Poyares – Ele pode ter dificuldade para dormir e geralmente não procura o médico se a intensidade da doença for leve. Entretanto, nos estágios em que os sintomas são mais intensos, é certo que irá procurar ajuda. Isso acontece quando não consegue dormir porque tem de ficar massageando as pernas, ou então é obrigado a sair da cama para andar um pouquinho, ou precisa levantar e baixar as pernas, ou ainda esticá-las e encolhê-las durante algum tempo para aliviar o desconforto, o que impede o início rápido do sono, como seria normal.
Estudo realizado em nosso departamento do sono mostrou que a atividade física moderada ajuda a melhorar os movimentos involuntários que ocorrem durante a noite.
Drauzio – Na maioria dos casos, a doença se instala apenas nas pernas ou acomete também os braços?
Dalva Lucia Rollemberg Poyares – Ela predomina nas pernas, mas pode evoluir e acometer também os braços. Quando isso acontece, pacientes que vão dormir no laboratório do sono e são monitorados por vídeo deixam claro que os movimentos são os mesmos nas pernas e nos braços.
Drauzio – Há casos leves em que o incomodo é discreto e casos graves como o da senhora mãe de um médico que você citou. Qual é a evolução natural da doença?
Dalva Lucia Rollemberg Poyares – Não existem estudos na literatura médica mostrando qual é a evolução natural da doença a longo prazo. Nesses anos de trabalho, acompanhei dois casos em que a doença praticamente desapareceu. Um deles era o de uma jovem senhora que consegui fazer o seguimento por cinco anos. Eventualmente, alguns sintomas leves reapareciam quando tomava café.
DIAGNÓSTICO
Drauzio – Existem exames laboratoriais que ajudam a respaldar o diagnóstico da síndrome das pernas inquietas?
Dalva Lucia Rollemberg Poyares – O diagnóstico da síndrome é muito mais clínico do que laboratorial. Daí, a importância de levantar a história do paciente e pedir-lhe para descrever o desconforto que sente nas pernas. Um dos relatos é típico: o incômodo melhora quando ele se levanta e caminha, o que não acontece com os indivíduos diabéticos ou com problemas neurológicos. Nestes casos, eles apresentam deficiência de enervação nas pernas (neuropatias ou polineuropatias), que também provoca sensação desagradável de dormência nas pernas, mas essa não desaparece quando caminham ou com massagem, nem surge quando se deitam para dormir. Raramente a síndrome das pernas inquietas é ocasionada por polineuropatia. Por isso é indispensável verificar os reflexos e a sensibilidade ao toque e à dor no exame clínico.
Em relação aos exames complementares para confirmar o diagnóstico, a polissonografia oferece um registro do sono durante a noite inteira e mostra que os movimentos das pernas e dos braços começam com os primeiros sinais de sonolência.
Existe um outro teste que consiste na restrição do paciente ao leito. Esse, não aplicamos no nosso laboratório do sono, porque os portadores da síndrome ficam literalmente enlouquecidos, quando se sentem impedidos de movimentar-se.
Drauzio – Existe um padrão definido de resposta desses pacientes?
Dalva Lucia Rollemberg Poyares – Existe. Nos casos mais graves, eles chamam o técnico ou o enfermeiro que os acompanham e pedem para desligar os monitores, a fim de que possam levantar-se e caminhar. Finalmente, quando conseguem dormir, observamos que 80% dos pacientes com pernas inquietas apresentam movimentos periódicos dos membros. Embora a amplitude do movimento não seja grande, na maioria dos casos provoca microdespertares que podem até passar despercebidos, mas são responsáveis pela fragmentação do sono. Como consequência, no dia seguinte, a sensação é de cansaço e de noite mal dormida.
Drauzio – Essa agitação compromete também o sono dos parceiros?
Dalva Lucia Rollemberg Poyares – Por causa da agitação dos membros durante o sono do paciente, os parceiros se queixam de levar pequenos chutes ou socos, enquanto o outro está dormindo, e da dificuldade de permanecerem cobertos. Muitos dizem que são obrigados a usar lençóis com elástico para prendê-lo no colchão e a ter seu próprio cobertor.
TRATAMENTO
Drauzio – Qual é o tratamento para a síndrome das pernas inquietas?
Dalva Lucia Rollemberg Poyares – O tratamento é indicado para os casos em que o incômodo das pernas é clinicamente significativo, isto é, impede o portador de dormir direito à noite e, por causa disso, ele passa o dia cansado e sonolento. Existem dois medicamentos, o pramipexole e o ropinerole, que estimulam os receptores de dopamina no cérebro, mas não provocam aumento dessa substância no sangue periférico. Nos casos mais leves, podem ser usados os benzodiazapínicos, com boa resposta em doses pequenas. É importante ressaltar que o tratamento inadequado piora o quadro.
Estudo realizado em nosso departamento do sono mostrou que a atividade física moderada ajuda a melhorar os movimentos involuntários que ocorrem durante a noite.