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Incontinência fecal | Entrevista

Publicado em 19/09/2011
Revisado em 11/08/2020

Os portadores do distúrbio não costumam conversar nem mesmo com os médicos: o constrangimento é tanto que o problema evolui e vai comprometendo cada vez mais a qualidade de vida. Veja entrevista sobre incontinência fecal. 

 

Incontinência fecal, ou seja, a incapacidade de controlar a eliminação das fezes, é um assunto delicado sobre o qual os portadores do distúrbio não costumam conversar nem mesmo com os médicos. O constrangimento é tanto que o problema evolui e vai comprometendo cada vez mais a qualidade de vida desses pacientes que acabam sem coragem de sair de casa.

Para entender melhor como funciona o controle da evacuação é preciso conhecer a anatomia da pelve. Na parte de trás da pelve óssea, ou bacia como popularmente é chamada, situa-se o osso sacro formado pela fusão de cinco vértebras do finalzinho da coluna, e pelo cóccix, o ossinho pontudo que pode ser visto na imagem 1 . A parte inferior da cavidade pélvica é constituída pelo períneo onde se situam os órgãos genitais e o canal anal. A musculatura do períneo dá suporte ao ânus, a porção final do aparelho digestivo. O canal anal tem um esfíncter interno e outro externo e é enervado pelo nervo pudendo, que é fundamental para o funcionamento de toda a musculatura da base do períneo e pelo controle dos esfíncteres. Qualquer alteração anatômica nessa região pode ser responsável pela incontinência fecal.

 

CAUSAS

 

Drauzio – Quais são as causas da incontinência fecal, problema que compromete tanto a qualidade de vida das pessoas?

Angelita H. Gama – A causa pode ser congênita. Crianças que nascem com o ânus imperfurado e são submetidas à operação de abaixamento do intestino, com frequência se tornam incontinentes na idade adulta. Acredito, porém, que o interesse maior seja dar destaque à incontinência adquirida do adulto. Existem causas traumáticas como acidentes de trânsito, operações de períneo e determinadas fissurectomias que, às vezes, exigem a secção dos músculos do esfíncter para a cura da fístula. Algumas cirurgias para tratamento de câncer que obrigam a retirada parcial ou completa do reto também geram incontinência.

Outro fator importante a considerar é o envelhecimento que provoca diminuição das células da musculatura do períneo, denervação e fechamento insuficiente do canal anal. Nos adultos, numa faixa etária em que as pessoas ainda estão em atividade laboriosa, a incontinência fecal predomina nas mulheres. Predomina nas mulheres principalmente por causa do parto.

 

Drauzio – Qual o prejuízo que o parto determina?

Angelita H. Gama – O trabalho de parto determina a tração, o estiramento do nervo pudendo, que sofre uma degeneração parcial. Quando a mulher atinge os 40, 50 anos, o problema é agravado pela perda da enervação que ocorre com a idade e aparecem os sintomas da incontinência. Outra causa importante nas mulheres é a constipação intestinal.

A força necessária para conseguir evacuar acaba gerando o estiramento do nervo e acentua a denervação natural da idade. Portanto, esses dois fatores, trauma de parto e prisão de ventre, aumentam a incidência de incontinência fecal nas mulheres na fase adulta. Acima dos 70, 80 anos, porém, o problema se manifesta igualmente em homens e mulheres, porque a denervação ocorre de forma semelhante nos dois sexos.

 

Drauzio – Em que proporção a incontinência fecal acomete mais as mulheres na idade adulta do que os homens?

Angelita H. Gama – Eu diria que, em cada dez pessoas incontinentes na idade adulta, oito são mulheres e duas são homens. Na idade mais avançada, repito, os dois sexos se equiparam.

 

SINTOMAS

 

Drauzio – Nos casos em que a instalação da incontinência é gradativa, quais são os primeiros sinais que aparecem?

Angelita H. Gama – As pessoas começam a perceber que não seguram mais os gases intestinais. Vão tossir, perdem gases; têm flatulência, perdem gases. Progressivamente esse sintoma piora, o ânus vai ficando mais flácido, mais frouxo, e elas não contêm mais a diarreia, as fezes líquidas. Quando o quadro se agrava, deixam de reter também as fezes sólidas. Por causa disso, precisam usar um protetor nas vestes e, às vezes, deixam de sair de casa, de trabalhar e de viajar, porque têm medo de não chegar a tempo ao banheiro.

Como se pode imaginar, isso compromete profundamente a qualidade de vida e provoca um trauma psicológico muito grande, o que é uma pena porque há maneiras cirúrgicas e não cirúrgicas de tratar a incontinência. As pessoas precisam saber que podem procurar auxílio para resolver esse problema recorrendo a um médico especialista.

 

Drauzio – Sua experiência mostra que as pessoas demoram para procurar um médico quando estão incontinentes?

Angelita H. Gama – Demoram muito. Às vezes, as pessoas vão ao consultório por outros motivos que não a incontinência, mas durante a manobra do exame percebe-se a presença de fezes no ânus ou a perda de gases. Minucioso interrogatório clínico feito a seguir revela que a doença já estava instalada há algum tempo. Muitos pacientes, porém, nos procuram assim que manifestam um grau menor de incontinência.

 

REFLEXO NA QUALIDADE DE VIDA

 

Drauzio – Qual o impacto psicológico que a incontinência fecal provoca?

Angelita H. Gama – É enorme. Pessoas casadas têm medo até de manter relações sexuais porque perdem gases, perdem fezes líquidas. Às vezes, abandonam os exercícios físicos pelo mesmo motivo e precisam usar protetor nas roupas permanentemente. A sensação de desconforto é enorme. Além disso, a incontinência torna as pessoas mal cheirosas, situação que piora nos idosos que, em geral, acumulam os dois tipos de incontinência, a fecal e a urinária.

 

DIAGNÓSTICO

 

Drauzio – Como você encaminha uma pessoa que chega ao consultório com queixa de incontinência fecal?

Angelita H. Gama – A conversa com o cliente, o interrogatório clínico é muito importante no encaminhamento do caso, porque há pessoas que têm incontinência em virtude de alterações no tipo de evacuação. Muitas tomam laxantes e evacuam fezes líquidas sempre. Ora, fezes líquidas são difíceis de conter, mesmo considerando que a musculatura do ânus é mais eficiente do que a da mão. Fechando a mão, não conseguimos conter líquidos e muito menos gases. O ânus consegue porque possui musculatura diferenciada. O esfíncter interno está permanentemente contraído e o externo permanentemente com certo grau de relaxamento. Se a pessoa quer conter a evacuação, reforça a contração de repouso também do esfíncter externo.

No entanto, é o esfíncter interno que segura mesmo as fezes e os gases. Um grande anatomista já o comparou a um gorila numa jaula. Está sempre atento. Como estávamos dizendo, fezes líquidas são difíceis de conter especialmente se a pessoa já apresenta certo grau de laceamento da musculatura anal. Às vezes, porém, para o problema ser controlado, basta modificar a consistência fecal, fazendo-a passar de líquida para sólida.

 

Drauzio – Além da anamnese, algum exame ajuda no diagnóstico?

Angelita H. Gama – O exame proctológico é de grande importância para o diagnóstico e o tratamento que pode ser cirúrgico ou não cirúrgico. Por meio do toque retal se percebe a flacidez do ânus e o retossigmoidoscópio (aparelho em forma de tubo dotado de lentes que permitem visualizar a parte interna das porções mais baixas do intestino) possibilita a avaliação das condições gerais da região. Se a incontinência for mais acentuada, são necessários exames mais especializados como a eletromanometria, que mede as pressões do esfíncter, e a miografia.

 

Drauzio Como se realiza a miografia?

Angelita H. Gama – O nome completo desse exame é Medida do Tempo de Latência do Nervo Pudendo. É um exame importante e muito simples. Consiste em fazer um toque com um instrumento que se liga ao eletromiógrafo. A imagem 2 mostra o aparelho medindo o tempo de contração muscular na área enervada pelo nervo pudendo. Quando esse tempo é maior, significa que o músculo está denervado e funcionando mal. Exames especializados como a manometria, o tempo de latência do pudendo e o ultrassom intra-anal, que mostra se o esfíncter está integro ou com lesão, são indispensáveis para seleção e adequação do procedimento cirúrgico.

 

TRATAMENTO

 

Drauzio – Você disse que o tratamento da incontinência fecal pode ser cirúrgico ou clínico. Em que consiste o tratamento clínico?

Angelita H. Gama – O tratamento clínico consiste em corrigir o tipo de evacuação, o que se consegue com dieta e medicamentos. Vamos prescrever constipantes, se a pessoa tiver diarreia, e substâncias que aumentam o bolo fecal se as fezes forem endurecidas e exigirem muita força para evacuar. Além disso, o indivíduo aprende que pode recorrer a certas estratégias quando vai viajar ou sair de casa por mais tempo, como usar supositórios evacuadores ou fazer pequenas lavagens intestinais para esvaziar o reto. Isso evita o inconveniente da perda de fezes, o que acontece muitas vezes sem que ele perceba, pois, além do relaxamento dos músculos, a sensibilidade anal fica comprometida. Felizmente, existem pomadas com substâncias que melhoram a sensibilidade e facilitam a contração do ânus. Outras medidas conservadoras que facilitam o tratamento não cirúrgico da incontinência fecal são o uso de alguns medicamentos antidepressivos e o sistema de biofeedback, indicado para pessoas que não conseguem contrair a musculatura da região anal (o que é definido pelo exame de eletromanoterapia). O biofeedeback é um autotreinamento que ajuda o paciente a descobrir o nível de contração necessário para fechar o ânus. Em três ou quatro sessões, ele aprende como utilizar a musculatura que existe, mas não sabe usar.

 

Drauzio – Como se explica que as pessoas não saibam utilizar um mecanismo tão natural?

Angelita H. Gama – Vamos imaginar, por exemplo, uma pessoa que seja operada das hemorroidas, cirurgia em que o esfíncter é preservado, mas o paciente passa por um período de desconforto em que sente dor, toma laxantes e, às vezes, fica com medo de contrair o ânus. A incontinência de que se queixa não tem outra causa senão o fato de não estar usando a musculatura por temor ou ansiedade. Aliás, a ansiedade é causa de uma série de doenças, entre elas os distúrbios da defecação.

 

Drauzio – O que acontece com as pessoas que por ansiedade contraem excessiva e involuntariamente a musculatura?

Angelita H. Gama – Essa contração constante, que pode ser diagnosticada pelo exame de eletromanometria, vai gerando dificuldade para evacuação e pode chegar ao que chamamos de contração paradoxal do músculo que sustenta o períneo (músculo elevador do ânus).

 

DrauzioQual a conduta quando o defeito é mais grave, por exemplo, quando houve mesmo a ruptura dos músculos responsáveis pela continência do ânus?

Angelita H. Gama – Na imagem 3, o pontilhado indica o músculo que está por baixo da pele, o esfíncter do ânus, e que houve uma ruptura que pode ser vista melhor na imagem 4. É claro que, quando existe esse afastamento, o ânus fica frouxo e sem a possibilidade

de segurar as fezes. Corrigir esse problema é um procedimento razoavelmente simples. Sob anestesia, o cirurgião faz uma incisão na pele, identifica a extensibilidade do músculo que não fecha mais o ânus, aproxima as duas pontas, costura uma na outra (imagem 5) e a pessoa passa a evacuar bem de novo. No entanto, esse procedimento só pode ser feito quando o afastamento não é muito grande. Nas pessoas mais idosas, às vezes, a denervação é mais extensa como revelam os exames de eletromanometria e miografia. Nesses casos, somos obrigados a utilizar a transposição de outros músculos. Existe uma técnica antiga de operação que fizemos muito no Hospital das Clínicas e consiste na transposição de um músculo da coxa para o ânus, que passa a funcionar com esse novo músculo.

 

Drauzio – Como é feita essa cirurgia?

Angelita H. Gama – Descolamos o músculo da coxa que se insere no joelho e que não faz falta para a movimentação da perna. É um músculo longo, com um pedículo vascular próximo à espinha ilíaca, na bacia. Em seguida, dissecamos todo o músculo, fazemos um túnel entre a coxa e o ânus, passamos por ele o músculo com o qual circundamos o reto.

 

Drauzio Como costuma ser o resultado dessa cirurgia?

Angelita H. Gama – Não é perfeito, mas é melhor do que nada. É um procedimento de exceção. Hoje dispomos de outros artifícios que a população precisa conhecer para o tratamento de casos graves de incontinência fecal.

 

ESFÍNCTER ARTIFICIAL E NEUROESTIMULAÇÃO

 

Drauzio — Quais são os métodos para os casos graves de incontinência fecal?

Angelita H. Gama — Para casos muito graves de incontinência, quando a denervação e a rutura são grandes, podemos dispor do esfíncter artificial que funciona como se fosse um tubo comunicante. É uma peça feita com material plástico que circunda o ânus, um balão colocado pelo abdômen em cima do púbis e uma bomba que se fixa nos grandes lábios ou no escroto. A pessoa aperta o botão que existe na bomba, o líquido se movimenta e o ânus abre ou fecha.

 

DrauzioFunciona bem esse esfíncter artificial?

Angelita H. Gama – Funciona melhor que os demais artifícios de que dispúnhamos até agora. A pessoa não fica perfeita, porque perfeição em matéria de continência anal ou urinária, só Deus quando a gente nasce. A única dificuldade é o custo. Um aparelho desses custa dez mil dólares. Nos só conseguimos levar essa técnica para o HC com o apoio da Fapesp (bendita Fapesp!) que doou um número razoável de esfíncteres. Eles foram colocados especialmente em jovens com incontinência secundária e que tinham alterações congênitas. Os resultados foram animadores, pois muitos jovens, que eram totalmente incontinentes, até se casaram depois da colocação dos esfíncteres. Além do esfíncter artificial, podemos contar também com a neuroestimulação sacral que pode beneficiar um número significativo de doentes.

 

DrauzioComo é feita a neuroestimulação sacral?

Angelita H. Gama – Colocamos uma agulha na terceira vértebra sacral e fazemos um teste, porque existe ali um mecanismo reflexo integrado desencadeado por nervos que saem do forame sacral e comandam a musculatura esfincteriana. Se houver contração dessa musculatura, implantamos um marcapasso que vai permanentemente estimular esses nervos. São pequenos choques elétricos que a pessoa recebe sem sentir o menor incômodo, sem sentir dor alguma, e que contraem a musculatura.

 

Drauzio – Esses tratamentos para a incontinência fecal são aplicados com frequência?

Angelita H. Gama – Tanto o esfíncter artificial quanto a neuroestimulação são tratamentos de exceção para as formas mais graves de incontinência, para aquelas em que o procedimento de reparo muscular não dá resultado. Hoje, há médicos que desconhecem a existência de tratamentos cirúrgicos para incontinência fecal e a população jamais ouviu falar sobre eles. Tenho muitos anos de profissão e esta é a primeira vez que, na mídia, alguém me convida para abordar esse tema de tamanha importância social e tão cercado de preconceitos.

 

Drauzio – O que a correção da incontinência fecal muda na vida das pessoas?

Angelita H. Gama – Muda muito. Os pacientes levam outra vida. Levam uma vida digna, porque a incontinência os aproxima dos animais. Costumo dizer que a diferença entre o homem e o animal está no fato de que o homem evacua na hora que quiser e é capaz de segurar as fezes. O animal não tem controle definido. A incapacidade de segurar as fezes faz com que o ser humano se sinta rebaixado emocionalmente. Por isso, o tratamento clínico ou cirúrgico é fundamental e as pessoas com esse problema não devem resistir para procurar o médico.

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