O principal sintoma da miastenia é fraqueza muscular e fadiga extrema, muito superior ao cansaço que qualquer pessoa saudável pode sentir depois de dias de muita agitação e trabalho. Veja entrevista sobre miastenia.
* Edição revista e atualizada.
Miastenia é uma doença neuromuscular autoimune, ou seja, uma doença em que o organismo produz anticorpos contra determinados componentes que lhe são próprios e para os quais deveria desenvolver tolerância. No caso específico da miastenia, essa resposta imunológica vira-se contra componentes da placa motora existente entre o nervo e o músculo, responsável pela transmissão de estímulo nervoso que faz o músculo contrair.
Não se conhece a causa da doença. Sabe-se que ela acomete mais as mulheres do que os homens a partir dos 20 anos. Depois da sexta década de vida, a relação se inverte.
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O principal sintoma da miastenia é fraqueza muscular e fadiga extrema, exagerada, muito superior ao cansaço que qualquer pessoa saudável pode sentir depois de dias de muita agitação e trabalho. Esforço físico, exposição ao calor, estados infecciosos e uso de alguns medicamentos podem piorar a sintomatologia.
Atualmente, o tratamento para controlar os sintomas e a evolução dessa doença crônica pode assegurar aos pacientes vida praticamente normal.
CARACTERÍSTICAS
Drauzio – Quais as características da miastenia?
Acary Oliveira – Fraqueza muscular decorrente de um distúrbio nos receptores de acetilcolina localizados na placa existente entre o nervo e o músculo que interfere na transmissão do impulso nervoso é a principal característica da miastenia. Há duas formas da doença: a autoimune, adquirida, e a congênita, que é muito menos comum.
Para entender o que acontece nessa doença, é bom explicar o funcionamento do sistema motor. A execução do movimento voluntário depende de que um estímulo elétrico parta de determinada região do cérebro, caminhe por vias específicas e chegue à medula situada na coluna vertebral, de onde sai um nervo que alcança o músculo esquelético.
Como nervo e músculo não estão em contato direto (entre eles, há um espaço, uma fenda sináptica), o nervo libera um neurotransmissor chamado acetilcolina, uma espécie de combustível para o músculo, que nele encontra dois sítios receptores para fixar-se. A fixação abre um canal para que o estímulo elétrico passe para o músculo e atinja os filamentos responsáveis por sua contração. Esse processo tem de ser realizado de forma harmônica, organizada e muito rápida. Caso contrário, surge a fraqueza muscular.
Drauzio – O que acontece quando há um distúrbio envolvendo a acetilcolina?
Acary Oliveira — A produção de anticorpos que aderem ao sítio ativo do receptor onde a acetilcolina deveria fixar-se impede que ela atue como deveria, pois não abre a porta do receptor para a passagem do estímulo nervoso e, consequentemente, não há contração muscular. Surge, então, um tipo de fraqueza com características próprias, que se manifesta muito antes do que seria razoável.
Na verdade, nós só utilizamos 1% dos receptores de acetilcolina, ou seja, 1% do combustível necessário para o movimento. Se perdermos, 10%, 50%, 90% deles, continuamos dentro da faixa de normalidade. Se a perda for de 98%, 99%, porém, o quadro começa a mudar e os sintomas aparecem primeiro no final do dia. Veja por quê. A pessoa libera acetilcolina que vai procurar um sítio ativo. Quando o encontra, gruda nele e ocorre a contração muscular. Caso contrário, uma enzima quebra a acetilcolina que não foi utilizada e vai entrando na corrente sanguínea até não existir mais combustível para realizar a contração do músculo e vem a fadiga, um cansaço extremo antes do tempo que seria esperado.
SINTOMAS
Drauzio – É muito comum as pessoas procurarem o médico queixando-se de cansaço. Como se distingue o cansaço da miastenia do cansaço provocado por outras situações?
Acary Oliveira – É fácil estabelecer a diferença. Todos nós nos sentimos cansados se não tivermos a oportunidade de recuperar as energias gastas nas atividades diárias. Esse cansaço é contínuo e não piora de uma hora para outra. O que caracteriza a miastenia é a fadigabilidade anormal. De repente, as forças se exaurem, a fraqueza toma conta dos músculos dos braços e das pernas, a pálpebra começa a cair (ptose palpebral) e a visão fica dupla, porque o movimento de um dos olhos é mais lento.
Outros sintomas são voz anasalada, dificuldade para mastigar e engolir até mesmo a própria saliva, falta de ar. Uma das características da miastenia é que os sintomas melhoram quando a pessoa descansa e, em geral, ela se sente melhor pela manhã porque a acetilcolina decomposta no sangue é refeita e volta para o nervo.
O termo latino gravis foi empregado para definir esse quadro da miastenia.
Miastenia gravis, ou grave, por quê? Porque não existiam remédios para tratamento e a pessoa morria, pois não conseguia engolir nem respirar. Apesar da fortuna que possuía, o armador grego Onassis morreu de miastenia em 1975, em virtude dos parcos recursos terapêuticos disponíveis na época.
Hoje, porém, podemos contar com tratamento para controlar as manifestações da doença.
FORMAS DA DOENÇA
Drauzio – Existem duas formas de miastenia: a congênita e a adquirida, que surge no decorrer da vida. Qual é a historia natural dessas doenças?
Acary Oliveira – Na miastenia congênita, o defeito está no contato entre o nervo e o músculo. A causa pode ser a falta de uma proteína no nervo que não deixa liberar acetilcolina, ou um defeito na proteína do receptor da acetilcolina no músculo ou na enzima que retira o excesso desse neurotransmissor. A manifestação clínica geralmente ocorre desde o nascimento. Se sobreviver, a criança não chora, não suga, não deglute direito, fica cianótica quando mama e tem dificuldade para andar.
A adquirida ou auto-imune acomete geralmente mais as mulheres ao redor dos 20 anos, pessoas que até então eram absolutamente normais. Não se sabe por que, elas desenvolvem anticorpos contra o mecanismo da acetilcolina na região da fenda neuromuscular, que vão aderindo aos sítios receptores até que 98%, 99% se desestruturam e surgem os sintomas da doença: fraqueza nos braços e pernas, ptose palpebral (queda da pálpebra), diplopia (visão dupla), disfagia (dificuldade para mastigar e engolir), dispneia (falta de ar), disfonia (voz anasalada).
Drauzio – Em geral, as mulheres manifestam a doença por volta dos 20 anos. E os homens?
Acary Oliveira – Em geral, ao redor da sexta década de vida, os homens manifestam mais a doença do que as mulheres.
Drauzio – Há alguma explicação para isso?
Acary Oliveira – Não há. Eventualmente a miastenia pode estar associada a outras doenças, por exemplo, doenças da tireoide como o hipotireoidismo e, nos homens, à ocorrência de alguns tumores.
Drauzio – Existe transmissão vertical da doença?
Acary Oliveira – A miastenia é uma doença autoimune e os anticorpos, que estão na circulação, passam pela placenta e alcançam o feto no útero da mãe. O interessante é que mesmo que sejam muitos os anticorpos circulantes, o feto não tem miastenia. Entretanto, ao nascer, a criança desenvolve uma forma da doença chamada miastenia grave neonatal ou transitória, que dura de alguns dias a duas semanas. Nessa fase, pode apresentar dificuldade para sugar, deglutir e respirar e chegar ao óbito, se não receber o suporte terapêutico necessário.
Às vezes, a mãe “teve” miastenia no passado e acha que ficou curada com o tratamento. Está enganada: a miastenia é uma condição definitiva. Ela tem anticorpos circulantes e, se engravidar, a criança corre o risco de desenvolver a forma neonatal da doença. Se for convenientemente atendida, porém, depois de duas semanas, o problema desaparece em definitivo.
EVOLUÇÃO
Drauzio – Como se comportam os portadores de miastenia no dia a dia? Os sintomas se instalam gradativamente ou a instalação é abrupta?
Acary Oliveira – A história clássica é mais ou menos assim. As pessoas se referem à queda palpebral seguida tempos depois pela visão dupla e mais tarde pela fraqueza nos braços e pernas. Entretanto, alguns indivíduos podem desenvolver uma forma abrupta da doença, desencadeada por infecção. Uma gripe, por exemplo, pode acelerar o metabolismo, consumir acetilcolina e provocar uma crise miastênica com insuficiência respiratória que exige suporte na Unidade de Terapia Intensiva, entubação orotraqueal, respirador e medicamentos especiais para controlá-la. O usual, porém, é a instalação ser insidiosa, sub-aguda. Não se pode esquecer de que a miastenia é uma doença crônica.
Drauzio – A forma aguda de miastenia com grande déficit muscular e complicações graves é rara. O mais comum é a doença instalar-se em dois ou três meses. Existem formas mais arrastadas da doença, que levam anos produzindo as alterações no organismo?
Acary Oliveira – Isso acontece. Muitas vezes, a pessoa começa procurando um ortopedista por causa da fraqueza nas pernas. Depois vai ao otorrinolaringologista, porque sua voz está ficando fanhosa no final do dia. Mais tarde, marca consulta com o oftalmologista, queixando-se de cansaço visual ou de queda das pálpebras e o diagnóstico de miastenia custa a ser feito. Embora não seja difícil fazê-lo, ele só é levado a termo se pensarmos na possibilidade de estarmos diante de um caso de miastenia.
DIAGNÓSTICO
Drauzio – Além da história clínica, existe algum exame que ajuda a fazer o diagnóstico?
Acary Oliveira – Existe um exame importantíssimo chamado eletroneuromiografia com estimulação repetitiva. Por meio de um eletrodo, estimula-se o nervo debaixo da clavícula com choques e faz-se a captação do estímulo elétrico no antebraço, por exemplo. Repete-se a operação duas, três, quatro, cinco vezes. Na pessoa normal, o resultado do quinto estímulo é igual ao do primeiro. No miastênico, a fadiga aparece rápido. O quinto choque é captado com 15%, 20%, 30%, 40% de diminuição.
Existem duas outras formas de fazer o diagnóstico. Uma é dosar a quantidade de anticorpos contra a acetilcolina. Infelizmente, no Brasil, não existem laboratórios capacitados para realizar esse exame. Por isso, colhe-se o material que é enviado para laboratórios no exterior, o que aumenta muito seu preço. Níveis altos do anticorpo são indicativos de que a doença está instalada.
A outra consiste em inibir a ação da acetilcolinesterase, uma enzima que destrói ou quebra a acetilcolina.
Drauzio – Há remédio com esse poder?
Acary Oliveira – Há e é barato. Uma caixa custa por volta de R$8,00. A pessoa toma um comprimido e a ptose palpebral, a visão dupla e a fala fanhosa melhoram bastante e rapidamente, mas o efeito é passageiro.
TRATAMENTO
Drauzio – Você disse que de nada adiantou o armador grego Onassis ser riquíssimo, porque não havia tratamento para a miastenia nos anos de 1970. Essa situação mudou?
Acary Oliveira – Com o decorrer das investigações sobre a doença, descobriu-se que, em alguns pacientes, havia relação entre a miastenia e o timo, uma glândula situada na área superior do tórax, próximo ao coração, cuja função é produzir anticorpos. Em teoria, a retirada dessa glândula faria com que as pessoas produzissem menos anticorpos capazes de alterar a contração muscular. Aquelas que tinham tumor no timo melhoraram da miastenia depois que fizeram a timectomia.
Atualmente, esse recurso terapêutico é menos empregado do que o uso do remédio que quebra a ação da acetilcolinesterase e favorece a permanência da acetilcolina na junção neuromuscular. Só que seu efeito é sintomático e passageiro. A pessoa toma o medicamento por via oral, às vezes por via endovenosa, os sintomas melhoram, mas algumas horas depois a fraqueza muscular reaparece.
Drauzio – Quantas vezes por dia ela deve tomar esse medicamento?
Acary Oliveira – Depende do indivíduo. Duas, três, quatro, cinco, até oito tomadas por dia. A preocupação é evitar doses em excesso, porque a região precisa funcionar perfeitamente e excesso de acetilcolina pode provocar crise colinérgica, uma crise miastênica.
Drauzio – Isso quer dizer que o remédio em dose certa regula a função da acetilcolina, em dose exagerada, prejudica.
Acary Oliveira – Exatamente. Outro recurso farmacológico para tratamento são os corticosteróides, administrados em dosagem maior ou menor de acordo com as necessidades do paciente. Se esse esquema não produzir resposta favorável, existem os imunossupressores, medicamentos mais potentes para diminuir a fabricação de anticorpos.
Nas situações críticas, pessoa com fraqueza muscular e respiratória precisa ser internada na UTI para a retirada dos anticorpos circulantes pela técnica da plasmaferese ou para introduzir um medicamento chamado imunoglobulina hiperimune. O problema é que essa droga custa R$200 o grama. Um indivíduo que pese 75 kg precisa de 150 g, portanto, de R$30.000,00 para sair da crise.
Drauzio – Uma pessoa com miastenia consegue levar vida normal?
Acary Oliveira – No ambulatório da Escola Paulista de Medicina, às terças-feiras, acompanhamos 30 pacientes, todos eles com vida praticamente normal, mas que precisam ser orientados para que isso se torne possível. A pessoa foi convidada para uma festa? Nada impede que vá, mas antes tem de descansar e receber as medicações certas nas doses adequadas.
PERGUNTAS ENVIADAS POR E-MAIL
Ivandra Ramalho de Oliveira – Rio de Janeiro/RJ – Como se pode reverter a queda das pálpebras?
Acary Oliveira – Uma das formas para melhorar a ptose palpebral é utilizar a medicação de forma correta, seja a que inibe a enzima acetilcolinesterase (neostigmina ou piridostigmina) ou, eventualmente, um corticoide (prednisona) ou imunossupressor (azatripina). É preciso muito cuidado, porém, com a cirurgia corretiva da elevação das pálpebras. Se impedir a oclusão palpebral, haverá ressecamento da córnea, o que favorece a formação de úlceras.
Ligia Martins Soares de Brito – Pessoa com miastenia pode dirigir veículos?
Acary Oliveira – Pode, se não tiver visão dupla e fadigabilidade muscular. No entanto, especialmente no período noturno, recomenda-se que não dirija.
Lourdes Barros de Almeida – Maceió/AL – Onde se pode encontrar tratamento pelo serviço público para miastenia?
Acary Oliveira – Em geral, os hospitais públicos oferecem esse tipo de serviço. Em São Paulo/SP, por exemplo, existe tratamento público de altíssima qualidade na Escola Paulista de Medicina, no Hospital das Clínicas, na Santa Casa, no Hospital Santa Marcelina e na Faculdade de Medicina de Santo Amaro.