Doenças desse tipo têm origem genética e provocam enfraquecimento progressivo de diferentes músculos. Leia a entrevista sobre distrofias musculares.
Distrofias musculares são doenças de origem genética que provocam enfraquecimento progressivo do tecido muscular por afetar a musculatura esquelética. A falta de substâncias essenciais para o crescimento e manutenção dos músculos faz com que os portadores desse distúrbio apresentem dificuldades locomotoras progressivas e, num estágio mais avançado, comprometimento da musculatura respiratória e cardíaca.
Segundo a Associação Brasileira de Distrofia Muscular (Abdim), criada na década de 1980 pela dra. Mayana Zatz, “até o presente momento, tem-se conhecimento de mais de 30 formas diferentes de distrofias musculares progressivas (DMP), algumas benignas e outras mais graves, que podem atingir crianças e adultos de ambos os sexos. Todas atacam a musculatura, mas os músculos atingidos podem ser diferentes de acordo com o tipo de DMP”.
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Atualmente, avanços na área da Genética e da Biologia Molecular tornaram possível identificar a causa dessas doenças e detectar se uma mulher assintomática é portadora ou não do gene alterado. Se não for, não há risco de recorrência para futuros filhos.
PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS
Drauzio – Quais as principais características da distrofia muscular?
Mayana Zatz – A distrofia muscular faz parte de um grupo de mais de 30 doenças diferentes que afetam primariamente o músculo. Por causa da alteração num gene, a pessoa deixa de produzir uma proteína essencial para o músculo, que degenera progressivamente.
Doenças neuromusculares também provocam fraqueza muscular progressiva. O defeito, porém, está num neurônio que não enerva o músculo adequadamente e, por falta desse estímulo elétrico (causa primária), a musculatura acaba degenerando (desordem secundária).
Se englobarmos todas essas doenças num grupo só, teremos mais de 50 tipos diferentes que acometem uma em cada mil pessoas. Isso significa que, no Brasil, mais de 200 mil pessoas são atingidas por essas moléstias graves e incapacitantes. O fato tem chamado tanto a atenção que, no mundo inteiro, pesquisadores estão debruçados sobre os problemas neuromusculares.
Drauzio – Todas essas doenças têm em comum um substrato genético, ou seja, a alteração em certos genes que condiciona o aparecimento da enfermidade. Como ocorre essa interação?
Mayana Zatz – Varia de uma doença para outra. É muito importante deixar muito claro que nem toda doença genética é hereditária. Quando se fala para um casal que o filho é portador de uma doença genética, é comum ouvir: “Mas como, se não temos nenhum caso desses em nossas famílias?”.
O fato de não haver história familiar não impede que, naquela criança, tenha ocorrido uma mutação nova e espontânea ou um erro genético quando foi gerada. O problema também pode ter aparecido por herança genética recessiva, isto é, o gene que sofreu mutação foi herdado do pai e da mãe simultaneamente. Nesse caso, se apenas um dos dois tivesse transmitido o gene defeituoso, nada aconteceria com a criança.
Drauzio –– Ocorre fato semelhante com o do casal que tem um filho de olhos azuis, apesar de os dois terem olhos castanhos.
Mayana Zatz – Exatamente. Na verdade, são inúmeras as doenças causadas por essa herança de caráter recessivo. Os pais não têm a doença, mas são portadores da mutação e o risco de transmitirem o gene defeituoso para um filho é de 25%, ou seja, um em cada quatro filhos está sujeito a desenvolver o problema.
DISTROFIA DE DUCHENNE
Drauzio – Você disse que a distrofia muscular faz parte de um grupo de mais de 30 doenças. Qual é a forma mais comum?
Mayana Zatz – A forma mais comum é a distrofia de Duchenne, uma herança genética ligada ao cromossomo X. A mulher tem dois cromossomos X. Se um deles estiver afetado pelo defeito, o outro compensa a alteração e a doença não se manifesta. O homem tem um cromossomo X, que recebe da mãe, e um cromossomo Y, herdado do pai. Portanto, se a mulher portadora assintomática da mutação transmitir o cromossomo X defeituoso para um filho, ele não terá o X normal para contrabalançar e garantir o bom funcionamento do músculo. Por isso, a distrofia muscular só acomete meninos. É o mesmo que acontece com a hemofilia. As mulheres são portadoras do gene defeituoso, mas são os homens que desenvolvem a doença.
Drauzio – Como evoluem as crianças que nasceram com distrofia de Duchenne?
Mayana Zatz – A criança nasce normal, mas é portadora de um defeito que vai determinar a ausência de uma proteína essencial para o músculo, chamada distrofina. Em geral, essa criança demora um pouco mais para andar, mas, quando começa, ninguém nota nada de diferente. No entanto, dos 2 aos 4 anos, o fato de cair muitas vezes chama a atenção e, em geral, a mãe procura um ortopedista para avaliação. Muitas vezes, os tombos são atribuídos ao pezinho chato, o que não seria motivo para maior preocupação.
Acontece que o quadro vai piorando progressivamente. Aos 6, 7 anos, a criança deixa de correr, de subir escadas e, aos 10, 12 anos, perde a capacidade de andar. Depois, o comprometimento atinge os braços e, nas fases mais adiantadas, surgem problemas cardíacos e respiratórios.
Felizmente, em 2001, o Ministério da Saúde lançou o Programa de Assistência Ventilatória Não Invasiva a Pacientes Portadores de Distrofia Muscular Progressiva e liberou o acesso aos aparelhos de BiPAP de ventilação assistida. É muito importante que todos os pacientes saibam que têm direito a esses equipamentos e que devem procurar a secretaria de saúde de seu estado para consegui-los.
Drauzio – Se não há produção de distrofina, uma proteína essencial para a integridade dos músculos, a criança acaba tendo um déficit muscular generalizado.
Mayana Zatz – De fato, os déficits aparecem em toda a musculatura esquelética. O problema respiratório, por exemplo, ocorre em virtude do comprometimento do diafragma, um dos músculos essenciais para fazer o ar entrar e sair dos pulmões, e não porque os pulmões estejam afetados.
Drauzio – Que benefícios a ventilação assistida traz para os portadores de distrofia muscular?
Mayana Zatz – A ventilação assistida trouxe melhoras não só para a qualidade de vida, como aumentou a expectativa de vida desses pacientes em pelo menos dez anos, o que pode representar o tempo necessário para chegarmos à cura da distrofia muscular e das doenças neuromusculares.
TRANSMISSÃO DO GENE
Drauzio – Qual o risco de a mãe portadora do gene transmiti-lo para seus descendentes?
Mayana Zatz – Do ponto de vista genético, na distrofia de Duchenne, se a mãe for portadora da mutação, metade dos filhos homens será afetada pela doença e metade das filhas será portadora do gene defeituoso, podendo transmiti-lo para a geração seguinte.
Embora se saiba que cerca de 2/3 de todos os casos de distrofia muscular progressiva sejam herdados da mãe, um terço ocorre por mutação nova, por um erro genético na formação da criança. Como a mãe não é portadora, não há risco para futuros filhos que possa ter. Mesmo quando tudo indica tratar-se um caso isolado, é fundamental estudar todas as mulheres da família para verificar se não há risco de recorrência.
Drauzio – Quer dizer que existem crianças com defeitos genéticos idênticos e quadros clínicos completamente distintos?
Mayana Zatz – Existem irmãos com a mesma mutação e carga genética muito semelhante que apresentam quadros clínicos distintos. Esses casos são importantíssimos para futuras pesquisas, pois podem ajudar a entender o que protege algumas pessoas portadoras do gene defeituoso.
Drauzio – Nas formas graves da doença, quais são as consequências dessas diferenças?
Mayana Zatz – Nas formas graves, congênitas, as crianças afetadas podem não chegar aos 2 anos de idade. No entanto, cada caso é um caso, porque o espectro de variabilidade dos quadros é enorme. A tendência é estabelecer comparações entre um paciente e outro, embora possam ser portadores de doenças diferentes e com evolução também diferente.
DIAGNÓSTICO
Drauzio – Se o quadro final de todas as distrofias musculares e neuromusculares é marcado pelo enfraquecimento dos músculos e pela perda dos movimentos, como é feito o diagnóstico de cada uma dessas doenças?
Mayana Zatz – Existem pelo menos 30 genes diferentes que causam essas distrofias. Graças ao Projeto Genoma e ao avanço da tecnologia nessa área, o exame de sangue para análise do DNA permite determinar, com 60%, 70% de certeza, o tipo de distrofia. Nos 30% restantes, a classificação irá depender de uma biópsia do músculo para localizar a proteína que está faltando.
Volto a destacar, porém, que o quadro clínico das distrofias apresenta enorme variabilidade. Por exemplo, a mutação de um gene que determina a ausência de uma proteína pode gerar uma doença muito grave ou muito leve. Entender o que protege uma pessoa contra os efeitos deletérios desse gene pode abrir caminhos importantes para futuros tratamentos.
REAÇÕES DIFERENTES
Drauzio – A primeira preocupação dos pais quando a criança nasce é saber se é perfeita. Como eles reagem quando o filho nasceu aparentemente normal, mas depois descobrem que a criança tem um defeito genético grave que pode impor-lhe limitações a ponto de reduzir sua expectativa de vida?
Mayana Zatz – Os pais sofrem muito. O sonho de qualquer pai é ver o filho crescer, ficar adulto. Nessas situações, ocorre exatamente o contrário: com o tempo a criança vai piorando e a expectativa de vida diminui.
Se pensarmos que existem famílias com dois ou três afetados, a esperança de poder contar, pela primeira vez, com uma opção de tratamento para essas doenças explica o empenho dos pais em sensibilizar os políticos brasileiros sobre a importância das pesquisas com células-tronco embrionárias. Houve quem dissesse que eu estava usando esses pacientes politicamente, quando, na verdade eram eles que pediam para falar e ser ouvidos. Aliás, mais do que qualquer outra pessoa, eles têm muito a dizer e todo o direito de opinar sobre a necessidade dessas pesquisas.
Drauzio – Os pais ficam desesperados porque se informam a respeito da evolução da doença. Mas a criança, como se adapta às limitações que se estabelecem lenta e progressivamente?
Mayana Zatz – Sinto que os pais sofrem muito mais do que as crianças. Elas aceitam as limitações de maneira mais natural. Não sei se as aceitam porque não têm energia para sair correndo ou se é diferente seu conceito de vida e morte.
Todos sabemos que vamos morrer um dia, mas poucos sabem lidar com essa realidade. As crianças parece conviverem melhor com a idéia. Por isso, minha vontade é carregar os pais e as mães no colo, porque o sofrimento deles é infinitamente maior.
MANIFESTAÇÃO TARDIA
Drauzio – Você disse que os quadros clínicos das distrofias musculares são muito variáveis. Há formas das doenças que só se manifestam na vida adulta?
Mayana Zatz – Existem formas mais leves de distrofia muscular que só aparecem na vida adulta e não são muito progressivas. Por exemplo, há um tipo chamado de facioescapuloumeral que afeta principalmente os músculos da face e da cintura escapular (a cintura escapular faz parte do complexo do ombro e está relacionada com a enorme mobilidade do membro superior).
Apesar da dificuldade para erguer os braços que apresentaram quando ficaram mais velhas e atribuíram a limitações próprias da idade, algumas pessoas só descobrem que são portadoras dessa mutação quando um filho, aos 30, 40 anos, manifesta a doença.
TRATAMENTO
Drauzio – À medida que as distrofias progridem e a fraqueza muscular se acentua, há algum tratamento para revigorar um pouco os músculos?
Mayana Zatz – Em muitos casos, o tratamento precoce com corticoides é muito útil para diminuir o processo inflamatório do músculo e pode prolongar o tempo de remissão. No que se refere ao sistema respiratório, quanto antes começar o tratamento, melhor será o prognóstico. Fisioterapia e hidroterapia também são recursos importantes à disposição.
Drauzio – Existe a possibilidade de usar medicamentos que revertam o quadro?
Mayana Zatz – Por enquanto ainda não. A única coisa que se pode fazer é diminuir a velocidade da progressão. Nossa esperança está toda voltada para as pesquisas com células-tronco.
Drauzio – Não seria possível produzir a distrofina que falta na distrofia de Duchenne em laboratório e administrá-la para corrigir o defeito?
Mayana Zatz – Não, porque ela seria metabolizada no aparelho digestivo, ou seja, seria degradada antes de chegar ao músculo. Já se tentou utilizar injeções locais dessa proteína, mas não funcionou porque a rejeição foi muito grande. A opção que nos resta é mesmo procurar substituir as células que não estão produzindo distrofina por células musculares normais que a produzam.
PAPEL DAS CÉLULAS-TRONCO
Drauzio – Que papel desempenham as células-tronco nesse tipo de pesquisa?
Mayana Zatz – Como existe degeneração progressiva da musculatura, nossa esperança é poder produzir células-tronco embrionárias com capacidade de formar todos os tecidos necessários para substituir o músculo que está degenerando progressivamente.
Ainda não conseguimos trabalhar com essas células, porque não tínhamos permissão.
Agora, com o projeto aprovado, as pesquisas poderão prosseguir. O que vínhamos fazendo, até hoje, era separar as células-tronco existentes no sangue do cordão umbilical e pô-las para crescer com células musculares para verificar se elas se diferenciam nessas células. Esse processo, porém, mostrou-se ineficiente, porque as células-tronco do cordão já são adultas e têm pouco potencial de diferenciação. Nossa esperança é que as células-tronco embrionárias tenham tal capacidade de diferenciação.
Drauzio – Que passos seguirá a pesquisa?
Mayana Zatz — É preciso deixar claro que essas pesquisas serão feitas primeiramente em laboratório. O passo seguinte é testar as células-tronco embrionárias em modelos animais. Existem camundongos imunodeficientes que não rejeitam as células humanas neles injetadas. Então, vamos gerar camundongos que, além de imunodeficientes, sejam portadores de doenças musculares e injetar neles células-tronco embrionárias humanas para ver se conseguem fabricar músculo.
Outra pesquisa será feita com um modelo canino. Cachorros da raça Golden Retriever podem desenvolver um tipo de distrofia muito parecida com a humana. Se essas tentativas terapêuticas com células-tronco embrionárias funcionarem neles (esperamos que funcionem), serão utilizadas em seres humanos.
Drauzio – É possível prever quanto tempo vão consumir essas pesquisas?
Mayana Zatz – É muito difícil determinar o tempo, mas sou otimista e acho que dentro de três a cinco anos, já seja possível testar essas células em seres humanos.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DISTROFIA MUSCULAR (ABDIM)
Drauzio – Como surgiu a idéia de criar a Abdim?
Mayana Zatz — Um dia, visitando famílias em casa, vi o abandono em que viviam as crianças com distrofia muscular. Não tinham cadeiras de rodas, nem aceso à fisioterapia, não iam à escola. Diante de tal constatação, concluí que não podia ser só cientista e, como não havia nenhum órgão público que prestasse atendimento a esses pacientes, fundei a Associação Brasileira de Distrofia Muscular (Abdim) na década de 1980. Hoje, a Abdim atende cerca de cem crianças. Durante todo o tempo, contamos com a ajuda do Unibanco. À cerca de um ano, porém, a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo passou a colaborar também com o nosso projeto. A sede funciona numa casa alugada, mas pretendemos ampliar o espaço e o atendimento, porque cuidar de cem crianças é muito pouco diante do número de pacientes nessa situação.
Drauzio – Que tipo de atendimento é oferecido às crianças com distrofia muscular?
Mayana Zatz – Depois que o diagnóstico foi feito na USP, as crianças são encaminhadas à Abdim para fazer fisioterapia, hidroterapia, ter aulas de computação e de arte. Pretendemos também introduzir música e todas as outras atividades que possam melhorar a qualidade de vida desses pacientes.
PERGUNTAS ENVIADAS POR E-MAIL
Luana Paula Silva – Santos/SP – Distrofia muscular é o mesmo que atrofia muscular?
Mayana Zatz – As atrofias são causadas por defeitos do neurônio que deveria emitir sinais para o músculo. Nas distrofias, o defeito primário está no próprio músculo.
Débora Tamberini – São Paulo/SP –Existem músculos com maior propensão a serem afetados pelas distrofias?
Mayana Zatz – São mais atingidos os músculos esqueléticos, isto é, a musculatura voluntária responsável pelos movimentos. Em algumas formas de distrofia, o músculo cardíaco também pode ser comprometido.
Sônia Cristina Gonçalves – Santa Bárbara do Oeste/SP – Que tipo de exercícios uma pessoa com distrofia muscular pode fazer?
Mayana Zatz – Os exercícios nunca podem ser feitos por conta própria nem podem ser feitos com excesso de peso para evitar fadiga. Têm de ser realizados sob a orientação de fisioterapeutas experientes.
Aparecida Almeida – São Paulo/SP – Quanto tempo uma pessoa com essas doenças poderá viver sem sofrimentos extremos?
Mayana Zatz – Não dá para saber, porque são muitas as doenças e depende do tipo de distrofia. Normalmente, as pessoas não sentem dor. O sofrimento vem da perda da musculatura, da incapacidade de andar e do comprometimento de outras funções importantes.
Drauzio – Mas é possível ter distrofia muscular sem viver sofrimentos extremos…
Mayana Zatz – É possível. Na verdade, esses pacientes nos dão lições de coragem e de otimismo.