Até que ponto o Estado tem direito de intervir na privacidade de cidadãos e impor que ele adote medidas para prevenir doenças como o diabetes?
As obrigações e os limites da interferência do Estado na abordagem de uma doença sempre provocou discussões acaloradas. O tema ganhou especial relevância no meio científico a partir das medidas adotadas recentemente pelo Departamento de Saúde da cidade de Nova York para combater o diabetes.
O que chamamos de diabetes é um conjunto de doenças que se caracterizam por aumento das taxas de glicose no sangue. Na clínica, os dois tipos mais frequentes de apresentação são classificados como diabetes tipo 1 e tipo 2. O primeiro é caracterizado pela destruição das células pancreáticas responsáveis pela produção de insulina; seus portadores costumam ser crianças ou adolescentes que dependem da administração de injeções de insulina para levar vida normal. O segundo, geralmente se instala depois dos 40 anos, está fortemente associado à obesidade e ao sedentarismo e pode ser tratado com simples mudanças do estilo de vida ou com a ajuda de drogas hipoglicemiantes.
Em linguagem médica, diabetes do tipo 1 é conhecido como insulinodependente; o do tipo 2, como insulinoindependente.
Veja também: O diagnóstico para o diabetes
Diabetes é uma doença potencialmente grave, porque o excesso de açúcar presente no sangue pode, no decorrer dos anos, levar ao transplante de rim, infarto do miocárdio, derrames cerebrais, amputações de membros e à cegueira irreversível.
Para evitar essas complicações que causam sofrimento aos portadores da enfermidade e gastos incalculáveis ao sistema de saúde, é fundamental controlar com rigor os níveis de glicose no sangue através de um estilo de vida que inclua alimentação adequada, atividade física diária e regularidade no uso da medicação.
Toda pessoa que sofre de diabetes deve ser submetida a determinações periódicas das taxas de glicose na circulação, através de exames como a glicemia e a hemoglobina glicada.
Em 2005, o diretor do Departamento de Saúde de Nova York descreveu diabetes como “o único problema de saúde que estava se tornando cada vez mais grave no país, e que piorava rapidamente”. A afirmação foi feita para justificar uma medida polêmica: obrigar os laboratórios a comunicar por via eletrônica ao Departamento de Saúde todos resultados dos exames de hemoglobina glicada executados na cidade.
Em resposta a essas indagações, o Departamento de Saúde adotou medidas conciliatórias: os laboratórios continuam obrigados a comunicar todos os resultados das dosagens de hemoglobina glicada, mas o paciente tem direito de optar se deseja ou não receber supervisão clínica e intervenção do Departamento.
Os resultados mostraram que 31% dos doentes atendidos particularmente e 42% daqueles assistidos pelo sistema público apresentavam valores indicativos de falta de controle da doença. E, que apenas 10% conheciam seus níveis de hemoglobina glicada.
A partir desses dados, o Departamento invocou sua autoridade para entrar em contato com os médicos e seus pacientes toda vez que os exames alterados indicassem a necessidade de revisão do quadro clínico ou mudanças no tratamento.
Sem precedente no caso de uma doença não transmissível, a medida foi justificada como um dever moral do Estado para proteger as populações mal assistidas.
A American Diabetes Association foi favorável à nova política por considerá-la benéfica aos que vivem à margem do sistema, mas surgiram vozes conflitantes que levantaram dúvidas como: a) uma questão pessoal pode se tornar pública? b) no caso de uma doença não transmissível, teria o Estado direito de se intrometer numa informação que interessa apenas ao paciente e ao médico escolhido por ele? c) o medo de ter sua condição revelada não levaria muitos a evitar exames laboratoriais cujos resultados poderiam eventualmente cair em mãos indesejáveis?
Em resposta a essas indagações, o Departamento de Saúde adotou medidas conciliatórias: os laboratórios continuam obrigados a comunicar todos os resultados das dosagens de hemoglobina glicada, mas o paciente tem direito de optar se deseja ou não receber supervisão clínica e intervenção do Departamento.
Por trás dessa disposição, está o debate que ocupará o epicentro das discussões sobre políticas públicas de saúde no século 21: até que ponto tem direito o cidadão de adotar estilos de vida causadores de enfermidades que aumentarão os gastos dos que pagam impostos ou dos que fazem seguros privados de saúde? Até que ponto o Estado tem direito de interferir?