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Os genes e a alma humana | Artigo

hélice de DNA e cérebro. Genes e consciência têm relação
Publicado em 28/04/2011
Revisado em 11/08/2020

A maioria de nós acredita na existência de uma alma, característica inequívoca da condição humana. Veja artigo do dr. Drauzio sobre genes e consciência.

 

A maioria de nós acredita na existência de uma alma imortal, característica inequívoca da condição humana. Pondo a imortalidade de lado, pois se trata de questão de fé, seria cabível dizer que o conjunto de genes contidos no genoma constituiria o substrato bioquímico da alma humana? Vejamos.

Na fertilização, os genes que vêm com o espermatozoide formam pares com os que estão no óvulo, formando o zigoto (ou ovo), que vai se multiplicar e dar origem ao embrião. Cada um dos pares materno-paterno de genes será responsável por determinada característica do futuro ser, da cor dos olhos à probabilidade de apresentar leucemia aos 4 anos.

Veja também: Artigo do dr. Drauzio sobre plasticidade cerebral

Caracterizar o momento em que se forma um ser humano provoca discussões acaloradas, a partir de pontos de vista inconciliáveis.

Embora espermatozoides e óvulos sejam células vivas programadas pela seleção natural para exercer a função de constituir um novo indivíduo, nunca ouvi alguém atribuir o início da vida humana ao instante em que essas células reprodutivas são formadas no organismo. Fosse assim, teríamos desenvolvido técnicas para colher e preservar em locais sagrados todos os óvulos não fecundados e, do ponto de vista legal, a masturbação masculina seria condenada como ato de genocídio.

É comum, entretanto, considerar que o instante da criação coincide com a fecundação. Por acreditar nessa ideia, tantos defendem a opinião de que ao zigoto devem ser garantidos todos os direitos da pessoa humana. A lógica é a de que espermatozoide e óvulo, ao misturarem seus conteúdos genéticos, disparam um processo irreversível, que fatalmente resultará numa criança.

O que chamamos a alma humana liga-se à emergência de uma consciência pessoal, única, sem a qual a individualidade não existe.

A ciência pode contribuir para tentarmos esclarecer que processo é esse. Quando os genes da mãe se juntam aos pares com os do pai, de fato emerge um programa genético (como os programas de computadores) que vai dirigir por conta própria o desenvolvimento do novo ser, da primeira divisão celular à formação do último fio de cabelo. Esse programa genético desempenhará seu papel de condutor durante toda a gestação e se manterá estável pelo resto da vida do futuro ser. Contentes ou furiosos, carregaremos até a morte as características condicionadas pelos genes que herdamos de nossos progenitores.

Se imaginarmos a condição humana já embutida no zigoto, podemos considerar o genoma como a estrutura molecular correspondente à alma humana? Se concedermos tal “status” ao genoma, deveremos considerar, então, que animais como os chimpanzés, cujos genes são em mais de 98% idênticos aos nossos, têm alma parecida com a nossa? Caso contrário, com o avanço da tecnologia, quantos genes nossos precisaremos transplantar para que um chimpanzé adquira alma?

Como alternativa a esses dilemas, outros partem da constatação de que a vida na Terra resulta obrigatoriamente de um programa genético individual, específico para cada espécie, que evoluiu a partir dos mesmos ancestrais, através de mecanismos de competição e seleção natural. O que nos faz humanos não é a forma do corpo, mas a atividade do sistema nervoso central. Nesse sentido, somos mesmo um experimento original da natureza. Não existe outra espécie com neurônios capazes de executar operações cognitivas da complexidade das nossas e, principalmente, não há outro animal que conte com algo semelhante ao que chamamos consciência.

Nessa linha de pensamento, a vida se iniciaria com a formação do zigoto ou mesmo antes, mas a condição humana só começaria a ser esboçada ao surgirem os primeiros espasmos de atividade cerebral, lá pela décima segunda semana de gestação, fase em que o embrião pesa menos de 15 gramas. Antes disso, seríamos apenas um grupamento de células não muito diferente dos embriões das aves ou dos sapos (“a ontogenia recapitula a filogenia”).

Essas visões, para as quais a natureza humana se deve à célula-mãe que nos deu origem ou ao sistema nervoso resultante de suas divisões, atribuem inadvertidamente ao genoma a responsabilidade de encerrar a essência humana.

Embora a biologia molecular possa nos ajudar a entender nossa constituição orgânica e as diferenças e semelhanças entre nós e os demais seres vivos, através dela jamais explicaremos o mistério mais profundo da condição humana: como emerge a consciência?

Nas fases iniciais do crescimento embrionário, os primeiros neurônios se multiplicam sem parar e desenvolvem prolongamentos celulares para se conectar com outros neurônios. Lá pelos terceiro ou quarto mês de gestação, os neurônios que não conseguiram formar conexões sólidas com seus pares disparam um programa interno de morte celular (apoptose). Nesse suicídio coletivo sem paralelo, morrem mais neurônios do que os 100 bilhões que sobrevivem para formar o sistema nervoso adulto.

A principal característica dos circuitos neuronais é a plasticidade. Ao nascer a criança, a circuitaria de neurônios sobrevivente ao suicídio em massa estará pronta para se moldar à luz da experiência; sem ela, o sistema nervoso não desenvolve atividade plena. Se luz não chegar aos olhos nos primeiros meses de vida, nem sons aos ouvidos, nem cheiro às fossas nasais, o resultado será cegueira, surdez e anosmia, apesar da integridade inicial das redes neuronais.

O que chamamos a alma humana liga-se à emergência de uma consciência pessoal, única, sem a qual a individualidade não existe. E a consciência é algo que transcende a estrutura do próprio sistema nervoso, porque não está aprisionada em nenhuma circuitaria de neurônios, muito menos pode ser reduzida à expressão do genoma contido num zigoto. Ela nasce da construção de uma narrativa pessoal enriquecida por fatos culturais que dependem da história de vida de cada um de nós.

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