Como é conviver com a doença de Crohn | Jana Viscardi

Jana Viscardi tem doença de Crohn há 13 anos e conta como foi o seu processo de diagnóstico, tratamento e remissão. Assista.

Drauzio Varella é médico cancerologista e escritor. Foi um dos pioneiros no tratamento da aids no Brasil. Entre seus livros de maior sucesso estão Estação Carandiru, Por um Fio e O Médico Doente.

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Nas fases mais sérias da doença, Jana Viscardi ia mais de 20 vezes ao dia no banheiro. Acompanhe o relato.

 

Jana Viscardi tem 41 anos, é linguista e produz conteúdo para a internet há 6 anos. Ela convive com a doença de Crohn desde os 28, quando começou a sentir os primeiros sintomas, como dor, diarreia, sangue nas fezes e urgência de ir ao banheiro. Inicialmente, foi diagnosticada com colite e passou um período complicado no hospital, já que as medicações não faziam efeito. Nas fases mais agudas da doença, chegava a ir 25 vezes no banheiro por dia.

Hoje, o quadro de Jana está em remissão e ela consegue viver normalmente, além de saber controlar melhor nos momentos em que a doença está em atividade. Neste Cabine do Paciente, ela relata os estigmas que as pessoas com Crohn sofrem e ressalta a importância da rede de apoio durante o tratamento. Assista!

Meu nome é Jana Viscardi, eu tenho 41 anos e eu produzo conteúdo na internet há seis anos, meu canal Jana Viscardi. Se vocês me acompanham já há algum tempo no canal, já devem ter me visto falando de merda, de bosta, de cocô. Mas já me explico, pra você não pensar: “Jana, que escatologia é essa, pra onde vamos?”.

A doença de Crohn é uma doença autoimune, uma doença inflamatória do intestino, o que significa que, quando ela, entre aspas, ataca, o que acontece é que o meu intestino, ele inflama, faz com que eu sinta muitas dores, eu posso ter diarreia, sangue nas fezes, e essa necessidade que a gente chama dessa urgência de ir ao banheiro, como se você precisasse ir ao banheiro, em função desse incômodo, dessa dor que a gente sente.

O diagnóstico foi uma experiência muito confusa. Eu era uma mulher jovem, de 28 anos, que comecei a sentir essas dores profundas, lancinantes. O primeiro diagnóstico que me deram foi de colite, que é uma doença parente, digamos assim, da doença de Crohn. E a colite, eu conhecia por ser essa doença que não tem cura. E, aí, eu acho muito interessante pensar hoje, tantos anos depois, o quanto tinha nisso de um entendimento de saúde que significava ausência de doença. E isso é algo pra mim hoje inimaginável, né.

E eu fui ficando no hospital, e foram trocando de medicação e foram incluindo medicação e, de repente, tá tomando trocentas medicações, muitas medicações, e elas não tão fazendo efeito, né, o corpo não tá respondendo àquele tratamento. Eu usei como se fosse a última medicação disponível na época e, depois de pouquíssimos dias, eu já não ia mais tantas vezes ao banheiro, né.

Na fase mais séria da doença, eu ia 25 vezes ao banheiro por dia. Então, eu passei 30 dias muito mal e eu, depois de dez dias, saí do hospital, ainda muito frágil, ainda precisando de muitos cuidados, inclusive, voltas ao hospital, mas já me restabelecendo. Foi um alívio de entender que, finalmente, aquelas dores tavam passando. Isso é muito libertador.

A doença, ela vai transformar os meus dias, a minha rotina, a partir da fase em que eu estou, digamos assim, da enfermidade, né. Hoje eu vivo com uma doença controlada, em remissão. No meu caso, eu faço uso de uma medicação e, uma vez talvez por ano ou a cada dois anos, eu faço também uma colonoscopia.

A minha rotina segue como segue há muitos anos. Eu trabalho, eu passeio, eu viajo, faço eventos em família, festa, curto, mas, quando a doença tá em atividade, isso muda bastante, porque, se ela tá em atividade, você tem que fazer certamente mais visitas ao hospital, mais visitas ao seu médico, pode ser que você tenha mais dificuldade de encontrar os seus amigos, de participar de eventos, porque você tem essas demandas por ir ao banheiro, e a doença de Crohn, nesse sentido, é uma doença muito estigmatizante, né.

As pessoas têm medo, elas têm vergonha, porque, eu costumo dizer, e aí vou dizer que os termos assim mesmo, a gente não fala sobre cagar, sobre ir ao banheiro, sobre fazer cocô. Tem um tabu muito grande em torno disso, é como se ninguém fosse ao banheiro ou, quando fosse ao banheiro, o perfume que sai seria o perfume de rosas. Uma pessoa que tem uma doença do intestino, é uma pessoa que, se está a doença em atividade, precisa ir muitas vezes ao banheiro, e isso é motivo de não só frustração, mas de vergonha.

Tem muitas pessoas que deixam de sair de casa porque, primeiro, têm medo se vão encontrar um banheiro ao alcance quando, no exato instante em que precisam ir e, segundo, como é que vai ser a reação das outras pessoas. Porque inevitavelmente aquilo tem cheiro, tem barulho, e as pessoas têm muito medo de serem, ah, de sofrerem com isso, é, preconceito de colegas, de amigos, de familiares, em função das piadinhas também que muitas vezes aparecem.

Quando a gente vive a enfermidade e tá numa fase em que a doença está ativa, o corpo passa por muitas transformações. A gente emagrece muito, dói muito, o corpo enrijece de tanta dor que a gente sente. E eu acho que o grande desafio é entender que a gente não tem controle sobre isso, né. É muito comum que as pessoas queiram trazer fórmulas mágicas, como se fôssemos capazes de controlar tudo o que acontece com a gente. Eu acho que é entender que a gente não tem controle e que, portanto, a gente tem que buscar o melhor tratamento que tá ao nosso alcance financeiro, social, né, socioeconômico, aí, pra lidar com ela e ir aprendendo o que é esse corpo com a doença, e não apesar da doença, né.

É isso, é uma doença crônica, é, porque é assim que se identifica, inclusive, e que se caracteriza a doença de Crohn e que, portanto, e eu tenho que viver com ela ao longo do tempo e que somente na escuta minha com o meu corpo, estando em crise ou fora de uma crise, é que eu vou ser capaz de compreender o que que me faz bem, o que me faz mal.

Na minha jornada, eu encontrei pessoas extremamente acolhedoras, e eu sempre digo que disso também depende a minha saúde de alguma maneira. Nos momentos mais graves que eu vivi, a minha família, os meus amigos, o meu marido, eles estiveram ali comigo, me apoiaram, me acolheram, e eu sei que essa não é a realidade de todo mundo. Porque, por exemplo, no ambiente de trabalho, às vezes, a pessoa tá passando pela crise e ela se sente constrangida de ir ao banheiro. Eu tinha muito medo, eu ficava muito constrangida no trabalho, mas, nas relações com amigos e familiares, eu sempre fui muito acolhida, né.

Eu, às vezes, recebo relatos de pessoas que falam: “Ai, meu Deus, eu quero paquerar, não sei como fazer, uso a bolsa de colostomia”. Ou: “A minha doença tá em atividade”. A gente vive esses questionamentos e essas inseguranças, né. Como é que a gente aborda isso pra pessoas que a gente não conhece? É uma jornada cheia de desafios mesmo, de medos e de inseguranças.

Eu não sigo uma dieta específica assim, mas eu hoje tenho uma atenção a coisas que eu sei que não me fazem tão bem. Com a doença em remissão, eu tomo a minha tacinha de vinho, tomo a minha caipirinha, minha pinguinha. Se a doença não estivesse em remissão, o cuidado seria outro, certamente tiraria uma gama maior de alimentos, em função da doença em atividade, né.

Se você é uma pessoa que não vive com uma enfermidade, eu tenho uma dica pra te dar: somente comece a falar sobre essas coisas se for convidado a falar sobre essas coisas, se você for convidado a dar uma dica, se você for convidado a dar uma sugestão. Caso contrário, não transforme essa conversa em você dizendo o que é que o outro tem que fazer para ficar bom. “Ah, e se você parasse de comer tal coisa?”, “Ah, e se você seguisse o protocolo X,Y, Z?”, “Ah, e se você fosse menos estressada?”. Eu acho que quem vive com a doença entende muito bem o que é conviver com as pessoas que querem trazer soluções mágicas para um problema que não tem soluções mágicas, né.

Então, eu acho que isso é algo que a gente pode falar de maneira muito a ser compreendido por quem vive com a enfermidade e também justamente essa questão do estigma, se eu tô no meio de uma crise, eu preciso usar um banheiro. Esse tipo de angústia, eu acho que compartilhar isso com quem vive com a doença ajuda, inclusive, a pensar alternativas. O que que essa pessoa tá fazendo e como é que eu posso adequar isso pro meu cotidiano porque isso pode me ajudar também? É um caminho da gente se ver também no outro, né, e de encontrar maneiras de viver a nossa vida com a doença a partir também dessas experiências das outras pessoas, né.

Quando eu usei a bolsa de colostomia, eu via muitos conteúdos de que viviam com a bolsa de colostomia, que eu queria saber como é que a pessoa fazia. Tá bom, ela corre, ela caminha, ela vai à praia? E eu fiz tudo, fiz tudo. Eu me lembro de, usando a bolsa de colostomia, ir assistir a uma palestra e tava um silêncio e, de repente, eu comecei a soltar muitos puns. E tinha uma pessoa do meu lado que ficou meio constrangida e levantou. Na hora, o meu impulso era querer me explicar pra pessoa, pedir desculpas pra pessoa, mas eu não tinha do que me desculpar.

O fato de a doença ser uma doença estigmatizante faz com que muita gente se coloque muito reclusa porque, não é ela simplesmente, né, é uma dinâmica da sociedade que faz com que a pessoa se sinta muito constrangida em existir no mundo. É possível ir pra festa, curtir? Claro que é, mas isso depende não só da gente, mas do nosso entorno. Então, quanto menos estigmatizada for a enfermidade, mais fácil é quem vive com a enfermidade, porque ela já tem os seus desafios próprios. Um apoio emocional, psicológico, tem um monte de coisa envolvida nesse processo. Então, é, sim, possível viver.

Pra mim, falar sobre a doença de Crohn é mostrar pras pessoas que saúde é diferente de ausência de doença, que era o meu entendimento lá atrás, e que é possível ter uma vida muito boa se a gente tem bons cuidados, que podem vir do sistema público de saúde ou do sistema privado de saúde, e que é possível, combinar, inclusive, essas duas coisas. Mostrar pras pessoas que os sistemas de saúde oferecem recursos pra que a gente viva melhor e é mais uma voz, mais uma pessoa falando, que vira um espelho pro outro, como se fosse mais um grãozinho de areia nesse universo todo, tentando tirar o estigma em torno da enfermidade. Eu acho que eu falei muito a palavra estigma hoje. Mas acho que é um exercício mesmo.

Conteúdo feito em parceria com a biofarmacêutica Takeda. https://www.takeda.com/pt-br/

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