Outras Histórias #41 | Aids

O empenho da ciência no tratamento e na prevenção da aids foi o que possibilitou qualidade de vida para aqueles que vivem com o HIV. Entenda.

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Publicado em: 30 de novembro de 2021

Revisado em: 14 de dezembro de 2021

Do surgimento da doença ao desenvolvimento de tratamentos eficazes, a epidemia da aids nos ensinou como é importante seguir a ciência.

 

 

 

Os primeiros relatos que o dr. Drauzio ouviu sobre a aids vinham dos Estados Unidos. Pacientes imunossuprimidos e jovens homossexuais na Califórnia estavam sendo atingidos por uma espécie de pneumonia, apresentando quadros de sarcoma de Kaposi por todo o corpo. Era o início da epidemia.

Em países africanos e também aqui no Brasil, a aids foi devastadora. Por todo o estigma relacionado à população LGBTQIA+, o restante da população se sentia segura e só percebia a infecção quando o quadro já estava em estado muito avançado – geralmente irreversível.

Na década de 1990, porém, foram desenvolvidos medicamentos que revolucionaram o tratamento, e, desde então, a ciência só avançou. Neste episódio do Outras Histórias, ouça como a aids foi de uma doença fatal para controlável com poucos efeitos colaterais no dia a dia do paciente.

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Em 1981, eu participei de um almoço na casa de um médico do Hospital do Câncer, doutor Fernando Gentil, que estava fazendo uma recepção para um professor que trabalhava no Memorial Hospital de Nova York, doutor Joseph Birdsall. E na conversa ali, pouco antes do almoço, ele falou “olha, surgiram uns casos muito esquisitos nos Estados Unidos, alguns em Nova York e outros na Califórnia. Os casos de uma pneumonia muito rara, que só dava em doentes com leucemia, linfomas, doentes submetidos a transplantes de horas… Enfim, pessoas imunodeprimidas, que é causada pelo germe chamado Pneumocystis carinii; e na Califórnia, surgiram casos de sarcoma de kaposi, em jovens.”

Sarcoma de kaposi é uma doença que a gente conhecia na oncologia há muitos anos. Em geral, em pessoas mais velhas, especialmente na região do Mediterrâneo, que apresentavam manchas na pele, e predominantemente nos membros inferiores, na perna, na coxa.

É uma doença de evolução muito lenta, e como eram pessoas de idade, as pessoas acabavam falecendo de outras doenças, e não do sarcoma de kaposi. Mas, a diferença, é que os sarcomas de kaposi que eles estavam vendo na Califórnia era espalhado pelo corpo todo, era disseminado, chegava até aos órgãos — como fígado, pulmões, etc — e provocaram morte; e todos eram jovens.

E tanto nos casos de Nova York, nas pneumonias por Pneumocystis como no sarcoma de kaposi, os pacientes eram jovens e homossexuais. Era a aids que estava começando nos Estados Unidos; estava sendo detectada no país pela primeira vez. E aí a aids se espalhou pelo mundo inteiro muito rapidamente. Foi, provavelmente, a última pandemia do século XX, e especialmente na África houve uma disseminação muito rápida e a doença chegou até nós.

Caiu em grande publicidade naquele tempo, mas a ignorância era enorme — a aids era chamada de ‘peste gay’. Eu lembro que eu mesmo, em entrevista de rádio e televisão disse “é um absurdo esse nome”, não só porque discriminava os homens gays, mas especialmente porque se era uma peste gay, se era uma doença que só atingia os homossexuais masculinos, as mulheres se sentiam seguras, todos os outros diziam “bom, não sou homossexual, não tem problema”, e aí a doença começou a se espalhar, chegou nos usuários de drogas injetáveis.

Naquela época, nos anos 80, havia uma epidemia de cocaína injetável na veia, que a gente desconhecia. Ninguém tinha detectado a presença dessa epidemia. E no final dos anos 80, eu cheguei no Carandiru e a aids foi devastadora, porque muitos dos presos tinham adquirido a doença ao injetar cocaína na veia.

E nós chegamos a perder muitos doentes, e a doença tinha uma característica muito clara que era… Ela vinha bem. Você pegava o vírus, às vezes, duas, três semanas depois da infecção, tinha um quadro que parecia viral, os gânglios ficavam aumentados, os linfonodos, né, no pescoço e nas axilas. Às vezes, candidíase na boca, sapinho e fraqueza musculares… Pessoas caindo de cama, mas se recuperavam sozinhas e pronto — e esqueciam. Isso ficava como uma virose, em sentido genérico, né, e depois, entrava um longo de latência, que durava em média de oito a 10 anos.

A partir daí, começavam a surgir as infecções oportunistas. Em geral, a primeira era o herpes zóster, esse que dá… o pessoal chama de cobreiro, não é?! Que dá essas feridas na pele, que acompanham o trajeto dos nervos, não é?!

Em geral, numa primeira demonstração, do nada, surgir um herpes zóster numa pessoa, você já acha estranho, né? E tuberculose… Enfrentei no Carandiru uma epidemia horrível de tuberculose, porque a aids não passa no contato casual, mas a tuberculose, sim. Aquelas celas lotadas, à medida que a imunidade vai caindo na pessoa infectada pelo HIV, uma hora ela apresentava tuberculose como uma das primeiras manifestações da aids.

A partir daí, iam repetindo as infecções oportunistas. Pneumonias, em geral muito frequentes, né, meningitis a lesões cerebrais por toxoplasmose… É uma doença muito variada, e você tratava uma infecção e vinha outra, e depois outra, e depois outra… E chegava uma hora que o doente estava tão debilitado, que não sobrevivia. A doença era uniformemente fatal.

Eu lembro quando, logo no início, eu fui pros Estados Unidos, fiz um estágio, pra aprender o que era essa doença que tava surgindo, essa doença misteriosa e fiquei na enfermaria do Serviço de Imunologia, lá desse hospital, do Memorial Hospital.

E aí, quando eu voltei pro Brasil, eu era o único oncologista que tinha visto casos de aids, porque os casos de aids eram vistos em geral pelos infectologistas, e muitos deles pelos dermatologistas, por causa dessas lesões que surgiam na pele.

E aí eu tratei um grande número de doentes, acho não só de São Paulo, como do interior e do estado, e também de várias cidades do Brasil, pessoas que tinham condição de viajar pra São Paulo. E era muito frustrante, porque tinha doentes que já chegavam num estado que não havia mais o que fazer por eles, a não ser tentar tratar as infecções que eles estavam apresentando.

E isso caminhou assim até 1995. Nunca esqueço que eu tava num congresso nos Estados Unidos, e o doutor John Bartlett, que era o Chefe do Serviço de Moléstias Infecciosas da Johns Hopkins University, uma das maiores universidades americanas, e ele me disse “olha, vai haver uma revolução no tratamento da aids, porque os trabalhos que estão sendo conduzidos aqui mostraram que surgem agora medicamentos pertencentes à categoria dos inibidores de protease, e esses medicamentos vão revolucionar o tratamento da aids”, especialmente porque nessa época, se entendeu que não adiantava  dar um medicamento só pra aids, como a gente vinha fazendo — dava o AZT, aí a hora que o doente progredia, dava DDI —, e os resultados eram pífios, os resultados eram muito precários.

Daí, se descobriu, se percebeu que nós tínhamos que dar vários medicamentos, que atingissem o vírus em diversas fases do seu desenvolvimento, com analogia com a tuberculose. Na tuberculose também foi assim; no início, você dava um medicamento só e não curava a tuberculose. Nós passamos a curá-la quando passamos a usar o esquema tríplice, né, dar três medicamentos de uma vez só. E aí aconteceu isso: esses medicamentos realmente foram uma revolução. Uma revolução absurda.

Eu tinha doentes internados, que estavam virtualmente morrendo, sabe? Na fase final de evolução. E com a chegada dos medicamentos — na época, eram importados —, esses doentes saíram do hospital e muitos deles estão vivos até hoje.

O tratamento foi uma revolução de tal maneira, que uma doença que era uniformemente fatal passou a ser uma doença controlável — não curável, mas controlável. E aí o Brasil fez uma revolução no tratamento da aids. Tudo que nós não estamos fazendo agora com o coronavírus, ou não fizemos com o coronavírus, nós fizemos com a aids. Que foi o quê? A decisão de dar remédios pelo SUS gratuitamente pra todos.

E isso não foi fácil, porque até patentes foram quebradas e negociações duras com as companhias farmacêuticas, com remédios que nós conseguimos abatimentos de mais de 90% no preço — e com isso nós passamos a distribuir a medicação para todos.

Vocês imaginam que o Brasil, naquela época, tinha uma prevalência do HIV igual à da África do Sul. Nós começamos a distribuir medicamentos, e eles não; eles não eram negacionistas, tinha a presidência da República [que] dizia que o HIV não existia, que era uma invenção capitalista, enfim, essas teorias de conspiração, não é?!

Hoje, África do Sul tem 10% dos adultos infectados. Vocês imaginem se nós tivéssemos 10% dos brasileiros adultos infectados. Nós teremos aí 17~18 milhões de HIV positivos, pessoas convivendo com o HIV, e na verdade, nós temos aí perto de 800 mil, segundo o Ministério da Saúde.

Não é pouco, mas também não é um número igual ao deles, né. E mais: o Brasil provou que essa política de distribuição de medicamentos funcionava — e muito —, e os africanos passaram a receber medicamentos pagos por instituições internacionais, por causa da experiência brasileira.

Nós demos uma lição pro mundo de como se enfrenta uma epidemia. E podíamos ter feito isso agora, se tivéssemos tido outra posição, outra política de combate, né?!

A aids se tornou uma doença crônica hoje. Os doentes não morrem, mas não podem parar de ser tratados. E nós tivemos grandes avanços. Eu lembro duma época em que os doentes tomavam aí 15, 20 comprimidos por dia e até mais. Hoje, você vê muita gente com um comprimidinho só que já traz os medicamentos ali tomados duas vezes por dia, ou até uma vez só, e você controla a doença.

Melhoramos muito, além do que desenvolvemos tratamentos pra pré exposição e pra pós exposição — os primeiros pra você tomar antes de ter relações sexuais; e o segundo pra ser tomado depois que essas relações aconteceram. Nós evoluímos demais.

Agora, no Brasil, nós mantivemos essa política de distribuição gratuita, que é ótima, mas a divulgação da existência de tratamentos pr’aqueles que podem se expor ou pra’queles que já foram expostos, é quase que um segredo, não é?! Ninguém sabe que esses medicamentos existem, como devem ser usados e que podem ser adquiridos pelo SUS.

Toda essa história da aids eu acho que foi um grande sucesso no enfrentamento da epidemia e uma demonstração de que a solução está sempre na ciência. Negar ciência é negar o acesso às informações mais precisas e ao impacto que elas podem ter no curso da doença.

A aids apareceu, nós desenvolvemos medicamentos que controlam a doença, as pessoas se mantêm com saúde, mas dependentes de tratamento. Então, infelizmente, agora nós começamos a relaxar nas medidas de prevenção, especialmente os mais jovens, que não viram aquela aids que a minha geração viu — de doentes graves, emagrecidos, caquéticos, morrendo depois de muito sofrimento de tantas infecções.

Nós temos que insistir na prevenção. Tem gente que diz “bom, se eu pegar  aids, eu tomo remédio e tá bom”, não, não… Não, tá bom, não. Você toma remédio, ótimo, não vai morrer de aids, mas você vai ficar dependente de tratamento, de exames de laboratório… porque sua vida vai mudar completamente.

Eu, quando olho para trás, acho que a minha geração teve o privilégio de ver o sucesso do controle de uma pandemia, como a pandemia da aids, mas a doença ainda está aí. Por isso, fiquem espertos.

Veja também: Panorama da aids no Brasil | Esper Kallás

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