Esquemas de tratamento da aids | Entrevista

Medicamentos do coquetel antiaids têm efeitos adversos que precisam ser contornados, mas são uma conquista inestimável. Leia entrevista sobre o assunto.

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Publicado em: 23 de outubro de 2011

Revisado em: 11 de agosto de 2020

Os medicamentos que compõem o coquetel antiaids têm alguns efeitos adversos que precisam ser contornados, porém, inegavelmente, representaram uma conquista inestimável para mudar o curso da doença.

 

Depois que a aids foi descrita no início da década de 1980 no Centro de Controle e Prevenção de Doenças (Center of Disease and Prevention Control), em Atlanta (EUA), os primeiros casos foram diagnosticados nos homossexuais masculinos das grandes cidades americanas e, depois, nos usuários de droga injetável. A identificação de seu agente etiológico, o vírus HIV, mostrou seu alto poder de replicação e que levava à diminuição progressiva das células CD4, responsáveis pela integridade do sistema imunológico.

No começo da epidemia, não havia remédio para controlar a evolução da aids. Os primeiros com ação antiviral — o AZT é o mais famoso de todos — eram usados isoladamente. O paciente recebia um único remédio cuja ação restringia-se apenas ao controle parcial da enfermidade por algum tempo.

 

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Foi só no final de 1995, que a associação de várias drogas diferentes pode ser prescrita. Isso mudou por completo o panorama do tratamento da aids que deixou de ser uma moléstia uniformemente fatal para transformar-se em doença crônica passível de controle. Hoje, desde que adequadamente tratados, os HIV positivos conseguem conviver com o vírus por longos períodos, talvez até o fim de uma vida bastante extensa.

Se, por um lado, os medicamentos que compõem o coquetel antiaids têm alguns efeitos adversos que precisam ser contornados, por outro, representaram uma conquista inestimável para mudar o curso da doença.

 

IMPACTO DO TRATAMENTO

 

Drauzio  No início, que impacto as primeiras drogas (AZT, DDI, etc.) contra aids usadas isoladamente tiveram na evolução da doença?

Adauto Castelo Fº — O impacto foi muito pequeno. A partir do momento em que era introduzida a medicação, o máximo que se conseguia era aumentar a sobrevida do paciente por cerca de seis meses, talvez um ano, não mais do que isso, quando a resposta era favorável. Ou seja, não havia a perspectiva de mudar o curso da doença com a monoterapia, não só porque não existia o conceito da necessidade de combinar as drogas, mas porque elas não eram suficientemente potentes naquela ocasião e a associação de uma droga com a outra podia ser até antagônica.

 

Drauzio  Quando surgiram as primeiras drogas com a capacidade de reverter o quadro dos doentes em fase final de evolução, foi um momento de glória na Medicina. O que mudou  desde a implantação dos novos esquemas de tratamento? 

Adauto Castelo Fº – Uma das poucas coisas das quais nos podemos orgulhar no setor da saúde, neste Brasil de 2006, é a implantação do programa de tratamento da aids. Obviamente, não foi um ato nem a decisão isolada de nenhum governo e, sim, a imposição de uma sociedade civil organizada que expôs claramente suas reivindicações e conseguiu a distribuição gratuita das drogas que compunham o coquetel. Não adianta nada (como não adianta nada até hoje na maioria dos países africanos e asiáticos) dispor de remédios potentes, se os portadores do HIV não tiverem acesso a eles.

Nos congressos internacionais, invariavelmente, o exemplo brasileiro é citado duas ou três vezes nas apresentações iniciais, o que nos enche de orgulho. Às vezes, porém, a facilidade em obter os medicamentos no serviço de saúde faz a pessoa esquecer da luta que foi conseguir esse benefício. Na verdade, muitos dos que se empenharam nessa batalha sequer chegaram a desfrutar de tal conquista.

O impacto do tratamento com a associação de drogas promoveu a mudança de paradigma da doença. Antes era possível apenas postergar o momento da morte. Agora, existem a perspectiva de uma vida muito próxima do normal e a vantagem de que a complexidade dos medicamentos está ficando cada vez menor.

 

EFEITOS COLATERAIS

 

Drauzio  Quais os efeitos colaterais mais importantes dessas drogas?

Adauto Castelo Fº – É importante distinguir os efeitos colaterais que não são percebidos pelo paciente dos efeitos mais aparentes. A toxicidade dos remédios pode acarretar danos para o fígado, para os rins, assim como acentuar o processo de aterosclerose e aumentar o risco de doenças coronarianas, mas a pessoa não sente nada e incomoda-se menos com eles do que com os efeitos mais visíveis, como a redistribuição de gordura pelo corpo chamada de lipodistrofia, lipoacumulação ou lipoatrofia. Esse distúrbio tem duas características principais: 1) diminuição da gordura no rosto, nos membros superiores, inferiores e nas nádegas, deixando as veias muito visíveis e o rosto encovado; 2) acúmulo de tecido adiposo no abdômen.

Para algumas pessoas, essa deformação estética tem efeito mais devastador do que o risco aumentado de desenvolver problema cardíaco nos cinco ou dez anos subsequentes ao início da medicação.

Felizmente, as mais sensíveis ao estigma da lipodistrofia já podem contar com algumas medidas para recuperar o espaço deixado pela gordura no músculo, mas ficar com a musculatura mais definida implica disposição para fazer ginástica. Outros procedimentos com resultados favoráveis, como a cirurgia plástica e o preenchimento dos músculos, estão disponíveis para quem tem acesso aos procedimentos estéticos de recuperação.

 

Drauzio – Qual é a porcentagem dos pacientes que tomam drogas antivirais e desenvolvem lipodistrofia?

Adauto Castelo Fº – É um porcentual muito alto. Como o efeito é cumulativo, à medida que aumenta o tempo de tratamento ininterrupto com os antivirais, a possibilidade de desenvolver uma alteração lipodistrófica chega a 70%.

 

Drauzio – O efeito cumulativo faz com que o processo da lipodistrofia seja contínuo ou em determinado momento ele pode estabilizar-se?

Adauto Castelo  – Embora o risco de desenvolver lipodistrofia seja cumulativo, não necessariamente o quadro se agrava com a manutenção dos medicamentos.

 

Drauzio – Na sua opinião, é a lipodistrofia que mais compromete a qualidade de vida dos pacientes que tomam antivirais?

Adauto Castelo Fº – Tenho a impressão que sim. Efeitos adversos, como diarreia, enjoo, tonturas, são dependentes de medicamentos específicos, não atingem todos os pacientes de maneira uniforme e podem ser contornados. Dificilmente, não haverá um medicamento alternativo, entre os muitos de que dispomos hoje, que não deixe de provocar tais reações. Com a lipodistrofia é diferente. Esse efeito permeia quase todos os remédios usados no tratamento da aids.

 

Drauzio – Além da redistribuição de gordura, da diarreia, dos enjoos e da tontura, que outros efeitos podem causar os antivirais?

Adauto Castelo Fº – Tudo depende do tipo do medicamento que a pessoa toma. Existem alguns que foram muito populares, mas estão sendo abandonados, porque há alternativas melhores para substituí-lo. Um exemplo é a estavudina (d4T) que, além de ser grande indutor de lipodistrofia, potencializa o efeito dos remédios que agem sobre os nervos periféricos, provocando neuropatias muito mais do que os outros. Em vista disso, é provável que, em não muito tempo, ela seja eliminada do consenso brasileiro completamente, como já aconteceu com o DDC, por exemplo.

De qualquer forma, se não houver escolha, porque o paciente já experimentou vários remédios e o teste de resistência mostra que o antiviral com efeitos indesejáveis precisa ser usado, vale a pena correr o risco de desenvolver esses efeitos colaterais.

É importante dizer, porém, que o efeito adverso de alguns antivirais é passageiro. A pessoa tem diarreia nos primeiros quinze dias, depois se adapta ao medicamento e o sintoma desaparece. O mesmo acontece com a tontura, manifestação comum só nas duas primeiras semanas de uso do efavirenz, por exemplo, medicamento relativamente bem tolerado, que pode ser tomado numa única dose diária (os esquemas mais antigos exigiam que as pessoas tomassem vários comprimidos três vezes por dia, muitos deles em jejum). Em alguns casos, seu uso contínuo pode deixar o olho bastante amarelo, mas o problema é só estético, uma vez que o efavirenz é isento de toxicidade hepática. Portanto, durante o tratamento da aids, as pequenas dificuldades que possam surgir aqui e ali acabam sendo contornáveis pelo número de novos medicamentos à disposição.

 

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INÍCIO DO TRATAMENTO

 

Drauzio  O que determina o momento adequado para começar o tratamento com o coquetel de medicamentos?

Adauto Castelo Fº – O problema da aids é que o vírus infecta a célula de defesa do organismo chamada CD4. À medida que se multiplica, ele a destrói e vai infectar outras células de defesa que também serão destruídas. Com isso, a capacidade de o portador defender-se de infecções vai sendo minada. O objetivo do tratamento, portanto, é estancar a multiplicação do vírus e a queda das células de defesa. Quando o número dessas células está acima de 350, não há preocupação. Entre 200 e 350, é preciso estar atento. Abaixo de 200, ninguém discute que chegou a hora de iniciar o tratamento.

As normas brasileiras e mundiais determinam que não se deve introduzir o coquetel de medicamentos se as células CD4 estiverem acima de 350; entre 200 e 350, a decisão de introduzi-lo é tomada caso a caso. Abaixo de 200, ele é obrigatoriamente indicado para corrigir a deficiência imunológica.

 

RETIRADA DOS MEDICAMENTOS

 

Drauzio – Você recebe um paciente com 150 células CD4, portanto sujeito a uma série de infecções. O tratamento eleva o número dessas células para 550. Isso permite suspender a medicação por algum tempo ou ela deve ser mantida pela vida afora?

Adauto Castelo Fº – Essa é uma discussão muito importante para entender a magnitude do problema. Quando o médico diz para um homem de 25 anos que terá de tomar antirretroviral pelo resto da vida, pode estar fazendo uma prescrição por 55 anos, o que é um tempo demasiado longo. Minha experiência mostra que boa parte desses pacientes apresenta fadiga de tomar a medicação em alguns momentos e interrompe o tratamento com ou sem a nossa anuência. Consciente dessa realidade, nos últimos seis anos, passei a propor aos meus quatrocentos e poucos pacientes que suspendêssemos a medicação juntos, mas mantivéssemos acompanhamento regular para impedir que as CD4 caiam para a faixa de risco.

Ensaios clínicos controlados mostram que essa conduta é absolutamente segura para indivíduos com número de CD4 acima de 500 e que, de preferência, nunca tenham apresentado contagem inferior a 200. Nesse caso, a interrupção do tratamento faz com que caiam muito rapidamente.

Tenho observado que essa conduta tem alguns aspectos bastante positivos. Primeiro: a possibilidade de viver um período sem tomar remédios é um estímulo grande para a adesão ao tratamento. Segundo: suspender por um certo período remédios que estão longe de serem isentos de toxicidade é uma oportunidade que não deve ser subestimada. Terceiro: num país como o nosso, não é desprezível a redução de custo que isso representa.

Por outro lado, jamais saberia que um paciente meu não precisava mais de remédios porque o CD4 nunca ficou abaixo de 500 e tinha imunidade suficiente para manter a carga viral circulante bem baixa se, em 16 de janeiro de 2000, não tivéssemos interrompido juntos o tratamento. Isso não vale para todos. Em três meses, alguns deles chegam à linha de risco, enquanto outros passam seis, oito meses sem necessidade de tomar remédios.

Insisto, porém, em duas recomendações importantes: 1) é arriscado interromper o tratamento de pacientes que chegaram a níveis de CD4 muito baixos; 2) pacientes que interrompem o tratamento precisam repetir o exame de sangue para avaliar o número dessas células a cada dois meses. Como nem sempre o teste está disponível na rede pública, não creio que interromper o tratamento seja conveniente para os pacientes que dependem dela.

 

VÍRUS MUTANTE

 

Drauzio  Uma das características fundamentais do HIV é a alta capacidade de sofrer mutações, que podem causar resistência aos medicamentos utilizados. Como você vê esse problema? 

Adauto Castelo Fº – O grande determinante da resistência é a pessoa não tomar os remédios adequadamente. Toma de manhã, esquece os da noite. Viaja, não se lembra de levá-los e fica dias sem medicação. Depois volta, toma um dia e pula dois ou três. Trabalhar com concentrações sub-ótimas de remédios possibilita que um grupo de vírus com certo perfil de resistência predomine até tornar-se completamente insensível à presença da droga.

Afortunadamente, no Brasil, a rede pública permite fazer os testes que oferecem uma noção aproximada do padrão de resistência do vírus infectante, de tal sorte que se pode selecionar os remédios mais eficazes para combatê-lo.

De nada adiantaria identificar o vírus resistente se não estivessem sendo distribuídas classes novas de drogas para tratamento. Como cresce o número de indivíduos que criam resistência aos medicamentos antigos, se os novos não existissem, sua imunidade iria deteriorando mais e mais e eles chegariam muito próximo do que acontecia na fase pré-coquetel.

 

Drauzio – Uma pessoa com aids instalada  toma o coquetel e suprime a carga viral. Essa pessoa ainda transmite o vírus HIV?

Adauto Castelo Fº – Transmite muito menos. Embora não dê para dizer que não transmita, sem sombra de dúvida, paciente com carga viral indetectável é um transmissor menos eficaz.

Estudo interessante realizado durante um ano em Uganda pelo dr. Tom Quinn, analisando 453 casais discordantes, isto é, em que apenas um dos parceiros era infectado, demonstrou que, apesar de não usarem preservativos, nenhum paciente com carga viral abaixo de 1.000 cópias/mL infectou o parceiro. Os casos de infecção foram mais frequentes, quando a carga viral estava entre mil e dez mil, e cresciam muito quando estava acima de 100 mil.
Se a interrupção do tratamento traz consigo a comodidade de dispensar o uso dos remédios e o ganho de aliviar seus efeitos tóxicos, o risco de transmissão aumenta à medida que a carga viral volta a subir. Por isso, é preciso redobrar os cuidados com a transmissão nessa fase. Sob o ponto de vista de saúde pública, esse é um aspecto importante e tem de ser levado em conta no momento de decidir se vale a pena interromper o tratamento.

 

Drauzio – Quando um paciente com carga viral indetectável pergunta se pode fazer sexo sem preservativos, o que você responde?

Adauto Castelo Fº – Talvez a melhor resposta seja dizer-lhe que o risco de transmitir o vírus não é zero, mas as evidências indicam que é pequeno. Do ponto de vista prático, esse questionamento se traduz na clínica numa situação específica. Quando o homem é portador do vírus, o casal que deseja ter um filho tem duas alternativas: fazer inseminação artificial que custa entre 18 mil e 20 mil reais e pressupõe um bombardeio hormonal para preparar a mulher, ou conseguir tornar indetectável a carga viral do marido por seis meses pelo menos.

Uma vez documentada a ausência do vírus no líquido espermático, ele está liberado para a relação sexual desprotegida no dia em que a mulher estiver ovulando. Um colega fez essa experiência com 74 casais na Espanha. Ele cercava o momento da ovulação e os casais só tinham relação desprotegida um dia antes e um dia depois. Sua conclusão foi que em nenhum dos casos estudados houve transmissão do vírus.

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