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Saúde mental

Abandono durante o câncer: por que é tão comum?

mulher com lenço na cabeça, com câncer, enfrenta abandono afetivo
Publicado em 25/01/2024
Revisado em 21/10/2024

Além de lidarem com os próprios tratamentos oncológicos, muitos médicos relatam que as mulheres também precisam lidar com o afastamento emocional e abandono de seus parceiros e cônjuges

 

Ao receber um diagnóstico de câncer, é preciso, muitas vezes, lidar com sentimentos de culpa, raiva, medo, solidão, e ainda criar forças para seguir com o tratamento, que pode deixar marcas físicas e psicológicas. 

Imagine vivenciar esse processo e ainda enfrentar outra situação muito comum, segundo os médicos ouvidos por esta reportagem: o abandono do parceiro/cônjuge durante o tratamento oncológico. 

Foi o que aconteceu com a auxiliar de escritório Deise Martins, 53, que passou por um divórcio enquanto tratava um câncer de mama. “No começo ele até me acompanhava nas consultas, foi fazer exames comigo. Com o passar do tempo, ele foi ficando distante e trabalhando demais. Minha mãe me acompanhava na quimio, porque ele nunca podia ir. Até que num final de semana ele disse que queria se separar. Passou uma semana, ele foi embora. Eu fiquei sem chão. Foi um período muito difícil. Se não tivesse tido apoio psicológico do hospital, não sei o que teria acontecido”, recorda. 

 

Pesquisa falsa

Depois que a cantora Preta Gil se separou do marido no início de seu tratamento de câncer no intestino, começaram a viralizar diversas matérias citando uma suposta pesquisa da Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM) que dizia que 70% das mulheres diagnosticadas com câncer são abandonadas em algum momento do tratamento. 

Essa pesquisa nunca existiu, segundo a própria Sociedade, que se manifestou através da nota enviada por e-mail à reportagem: “A SBM não valida essa informação. No momento não há nenhuma pesquisa via Sociedade que comprove tal situação”. 

O que existe, todavia, é uma pesquisa americana de 2009, realizada pelas universidades de Stanford e pelo Centro de Pesquisa Seattle Cancer Care Alliance, que apontou que um homem casado tem seis vezes mais chance de se separar ou se divorciar de sua esposa logo após um diagnóstico de câncer ou de esclerose múltipla do que uma mulher casada na mesma situação.

 

Realidade no Brasil

Apesar de não haver dados brasileiros sobre o tema, os médicos consultados pela reportagem são unânimes em afirmar que, muitas vezes, além de lidar com o estresse do tratamento, as mulheres também precisam lidar com divórcio e separação.

“Infelizmente, um dos principais fatores de divórcio e abandono costumam ser o nascimento de um filho com necessidades especiais ou o diagnóstico de câncer. A gente ouve muitas histórias na clínica”, comenta a médica Solange Sanches, oncologista do Hospital A.C Camargo Cancer Center, em São Paulo.

Claramente há um abismo enorme entre os cuidados que as mulheres dispensam aos seus maridos quando eles adoecem e a falta de reciprocidade e empatia com que homens tratam suas esposas adoecidas. Basta reparar na sala de recepção de qualquer consultório: quando é o homem que está doente, a mulher sempre está presente e muitas vezes sabe mais sobre a doença do que o próprio marido.

“Na minha prática clínica [região Norte e Nordeste do país], entre o início da doença até o fim do tratamento, inacreditáveis 40% das mulheres são abandonadas pelo marido. E eu não estou falando de divórcio ou separação consensual. Mas de abandono mesmo, expulsão da mulher do próprio lar, ou simplesmente o cara some. Realidade cruel, mas ouvimos muito e temos que saber como manejar. Isso mexe com o psicológico e com o rumo do tratamento, porque muitas vezes a mulher começa com o plano de saúde do marido e ele simplesmente a retira do plano”, relata Luis Eduardo Werneck, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Cancerologia. 

Veja também: Câncer: é correto culpar o próprio paciente pelo diagnóstico?

 

Impacto psicológico do abandono afetivo

A jornalista Renata Bosco, 61, se separou do marido, com quem ficou casada por quase 20 anos, em 2009. Um ano depois, foi diagnosticada com câncer de mama. Ela relata que o ex-marido foi muito frio durante o período de tratamento e que o abandono emocional já existia muito antes do câncer, mas que ficou evidente durante o enfrentamento da doença. 

“Ele esteve no hospital no dia da minha cirurgia, por causa dos meus filhos, e me levou para uma sessão de quimioterapia porque eu não tinha como ir e tive que implorar para que ele me ajudasse. Foi humilhante ter que implorar. Além de fragilizada, eu estava me sentindo péssima pelo abandono e pelo descaso. A postura dele era sempre: ‘ah, não posso’, ‘ah, não vai dar’, ‘ah, tenho compromisso'”, desabafa. 

Ela conta ainda que durante o seu tratamento, via várias mulheres indo para as consultas ou para as sessões de quimioterapia ou radioterapia acompanhada de seus companheiros, sempre de mãos dadas. “Eu ficava encantada com aquilo e pensava que, afinal, há maridos que ficam ao lado de suas esposas em momentos difíceis. Anos depois, porém, em terapia, descobri uma incômoda verdade: a maioria dos homens abandonam suas esposas em tratamento de câncer.” 

Segundo a psicóloga Priscila Richter, que é mestre em oncologia, essa situação é muito frequente nos relatos das pacientes que estão em atendimento não apenas em clínicas, mas também em ambulatórios e UTIs.

“Filhas, mães, irmãs e amigas são, em sua maioria, as acompanhantes tanto dos homens quanto das mulheres. Já vi, inclusive, ex-esposas acompanhando ex-maridos, mas nunca ex-maridos acompanhando ex-esposas. Eu mesma tinha uma grande amiga, que faleceu de câncer de mama aos 39 anos. Ela descobriu o câncer aos 30. Quando a recidiva chegou aos 35, foi abandonada pelo esposo, que disse não aguentar mais a doença.” 

O câncer em si, especialmente os ginecológicos, mexem com a autoestima da mulher, principalmente nos casos em que há necessidade de remoção das mamas, do útero ou dos ovários. Lidar com a situação de abandono durante o tratamento intensifica ainda mais o sentimento de rejeição e desvalorização. “Por isso, a necessidade da paciente ter uma equipe multidisciplinar, uma rede de apoio, para que ela não lide com esse turbilhão sozinha”, finaliza Richter. 

Veja também: Como é ter câncer durante a gravidez? | Bia Frecceiro

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