Planos de saúde contestam a necessidade de ressarcimentos ao SUS, conforme determinado pela lei, levando alguns casos à justiça. Saiba mais.
Pense no SUS. É bastante provável que as imagens evocadas sejam de uma UBS (Unidade Básica de Saúde) que você conheça ou de pessoas em filas ou salas de espera lotadas tão comumente retratadas pela imprensa como sinônimo da Saúde brasileira. Contudo, o Sistema Único de Saúde não é formado somente pelos estabelecimentos públicos. A iniciativa privada, principalmente por meio das operadoras de planos de saúde, também faz parte do SUS.
Embora não haja menção direta aos planos na Constituição de 1988, a Lei Orgânica de Saúde (número 8.080/1990), considerada o início da legislação básica específica do setor, estabelece que “a iniciativa privada poderá participar do SUS, em caráter complementar”. Dez anos depois, em 2000, a Lei 9.961 criou a ANS, Agência Nacional de Saúde Suplementar, e definiu melhor o papel dos prestadores particulares por meio de um pequeno detalhe linguístico: a iniciativa privada deveria suplementar (acrescentar, adicionar) a saúde pública, e não complementar (completar, preencher uma lacuna). Tal mudança condiz com o princípio constitucional da Integralidade, pelo qual o atendimento prestado pelo Estado deve ser integral, ou seja, envolver todos o serviços necessários para a manutenção da saúde.
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Dessa forma, a parcela da população que tem plano de saúde (segundo a Pesquisa Nacional de Saúde de 2013, quase 56 milhões de brasileiros, cerca de 28% da população) tem o que se denomina “cobertura duplicada”. São pacientes que têm acesso ao mesmo procedimento tanto no serviço público como no privado.
Ocorre que às vezes, mesmo tendo um plano que cubra determinado procedimento, a pessoa o realiza na rede pública. Por que alguém faria isso?
Beneficiários caem no sistema público principalmente em casos de urgência e emergência. Partos (normal e cesárea) e procedimentos relacionados (como tratamento de intercorrências da gravidez) encabeçam a lista devido ao grande volume. Em seguida vêm os tratamentos de pneumonias e gripes e logo após, os atendimentos e tratamentos clínicos de urgência (típicos de pronto-socorro, como fraturas e outros casos decorrentes de acidentes, por exemplo).
Esse quadro cria uma questão. “Toda vez que pago um plano de saúde há isenção de imposto, porque em tese eu estou deixando de onerar o sistema público. O problema é que, muitas vezes, os planos deixam de dar cobertura. Ao jogar nas costas do governo, as operadoras estão funcionando às suas custas”, afirma Walter Cintra Ferreira Junior, coordenador do MBA em gestão de Saúde da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas.
A Lei dos Ressarcimentos
Para evitar esse movimento, a Lei 9.656/1998 determina, entre outras medidas, que em casos semelhantes as operadoras devem ressarcir o SUS, de acordo com uma tabela de valores por procedimento.
Parece uma medida razoável, mas ainda assim, três meses após entrar em vigor, a lei foi contestada. A Confederação Nacional de Saúde (CNS), entidade que representa diversos estabelecimentos atuantes no setor (com hospitais, clínicas, laboratórios etc.), ajuizou no Superior Tribunal Federal (STF) a ADI 1931/1998. A sigla se refere a Ação Direta de Inconstitucionalidade, ou seja, a CNS pleiteia que a lei fere a Constituição.
A petição levanta uma série de questionamentos. Alguns falam sobre falta de correção formal (advoga que decisões do tipo deveriam ser feitas por meio de Lei Complementar, e não por Lei Ordinária e Medida Provisória, por exemplo), outros reclamam que a cobertura mínima exigida pela lei inviabiliza economicamente o setor de saúde privada, e outros ainda confrontam a imposição de regras retroativas, ou seja, que incidem sobre contratos já firmados entre operadoras e seus clientes (ponto que foi aceito pelo STF).
No que se refere aos ressarcimentos, a ADI afirma que a lei esconde a “intenção do Estado de transferir, para a iniciativa privada, o ônus de assegurar saúde para todos”. Chega a registrar que “isto, com o devido respeito, é um escândalo!”. O raciocínio é que a Saúde, segundo a Constituição, é um dever do Estado, sustentado por tributos. Logo, o SUS não pode receber das operadoras pelos serviços prestados.
A ADI rolou de gabinete em gabinete por anos. Em 2003 ainda foi emitido um acórdão em que o relator, ministro Maurício Corrêa, registrava seu parecer. Nele há esclarecimentos em nome da Advocacia Geral da União (AGU), fornecidos pelo dr. João Luiz Barroca de Andréa, então diretor do Departamento de Saúde Suplementar do Ministério da Saúde. Sobre os ressarcimentos, ele escreve: “A cada vez que um consumidor se interna em um hospital público tendo adquirido um produto que dava direito a internação em hospital particular, podemos afirmar que estão acontecendo dois fenômenos: a operadora não honrou com seu compromisso contratual e não disponibilizou leito hospitalar em clínica privada, e todo o custo dessa internação desaparece da balança de pagamentos da empresa. De forma mais direta: o consumidor é logrado e a empresa lucra de forma abusiva”.
Atualmente, a CNS mantém seu posicionamento. O vice-presidente da entidade, Marcelo M. Britto, defende que a lei deve levar em conta por que um beneficiário de plano chegou ao SUS. “Antes da cobrança indiscriminada, deveríamos entender as razões para a escolha de acesso a uma unidade do SUS por parte de um usuário da saúde suplementar, que tem direito a uma rede privada. Se foi por livre escolha do usuário, defendemos o não ressarcimento; mas se por falta de opção do usuário, defendemos não só o ressarcimento, mas também uma rigorosa penalização da operadora por fraude contra o consumidor”, afirma.
Além disso, Britto chama a atenção para o fato de que a lei não abrange especificidades desse tipo de atendimento. “Um exemplo prático: qualquer usuário da saúde suplementar em plano com coparticipação [aqueles em que o beneficiário ainda paga uma parte do serviço recebido quando esse é prestado] seria obrigado a pagar em qualquer circunstância. Vejamos um petroleiro que precise realizar um procedimento médico eletivo. A Petrobrás cobraria um valor de coparticipação. Ele, por razões pessoais e financeiras, não poderia arcar com esses custos neste momento de vida, e para evitá-lo optaria pelo atendimento em rede do SUS, como de direito constitucional dele. Ocorre que, mesmo ele optando pela rede do SUS, a lei obrigaria a Petrobrás a ressarcir o SUS e simultaneamente permitiria à empresa cobrar a coparticipação do usuário. Resumo: Este petroleiro acabaria de perder seu direito a assistência médica gratuita no Brasil. Contra esta ilegalidade, a CNS se opõe.”
Uma pequena parcela dos procedimentos realizados pelo SUS refere-se a usuários da saúde suplementar. Segundo o Mapa da Utilização do SUS por Beneficiários de Planos Privados de Saúde, de todas as internações realizadas no SUS entre 2008 a 2014, somente 2,29% foram de beneficiários de planos de saúde. Quanto a atendimentos ambulatoriais de média e alta complexidade (que só começaram a ser cobrados a partir dos atendimentos de 2014), o número é próximo, fica em 2,5% do total.
Quando esses número são convertidos em cifras, entretanto, os valores deixam de ser pequenos, e entende-se por que desde a criação da lei, em 1998, somente 24,8% das notificações foram pagas sem nenhuma contestação. Desde que essa história começou, de 2000 a 2017 o valor envolvido nesses trâmites é de mais de R$ 6,6 bilhões. As decisões favoráveis às operadoras chegam a R$ 1,7 bilhão, enquanto mais de R$ 2 bilhões tiveram de ser pagos efetivamente ao SUS após processos na Justiça.
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Judicialização dos ressarcimentos
Durante alguns anos, a prática de impugnar notificações fazia com que o valor devido defasasse de tal forma que chegava a valer a pena para as operadoras postergar o pagamento. Foram necessárias medidas como criar um índice que atualizasse o valor do procedimento, além de estabelecer que juros pelo não pagamento começam a incidir já na fase inicial do processo de ressarcimento.
Aparentemente, as medidas vêm funcionando. Segundo o último Boletim Informativo da ANS, de julho de 2017, dos atendimentos que geraram notificações de ressarcimento em janeiro, fevereiro e março de 2015, 54,5% foram impugnados. O número é alto, mas já foi bem pior. Em 2013 girava em torno de 80% e foi caindo gradativamente.
Se as operadoras conseguem ou não se livrar do ressarcimento é uma questão que varia muito, mas a maioria tem seus pedidos indeferidos (não aceitos). Há casos extremos. Entre janeiro de 2014 e junho de 2015, a Green Line Sistema de Saúde S.A., por exemplo, impugnou 8.439 notificações. Após analisar mais de 90% dos casos, somente 3,6% das contestações foram consideradas válidas.
O problema é que mesmo quando o SUS garante seu ressarcimento, tempo e dinheiro já foram gastos nos tribunais. A ANS fez um estudo em 2012 para estimar os custos decorrentes de processos administrativos, e concluiu-se que cada internação contestada pela operadora gerava um custo de R$ 26,79 para primeira instância e R$ 92,03 para segunda instância (tendo em vista que tais valores foram obtidos na época em que os processos se desenrolavam exclusivamente em papel, o que deve alterar os gastos atuais para menos, conforme esclarece a ANS). Multiplicam-se os valores para a casa dos milhões de impugnações e tem-se uma ideia da quantia envolvida.
Só em 2016 a ANS notificou o equivalente a R$ 894 milhões e cobrou efetivamente R$ 1,65 bilhão. “Estima-se que neste ano (2017) haja um aumento considerável em relação ao ano passado. O aumento previsto leva em consideração a quantidade de notificações que serão encaminhadas para as operadoras quando comparado aos anos anteriores”, informou a agência em nota.
Para Mauricio Ceschin, ex-presidente da ANS, a solução para as batalhas judiciais entre operadoras e governo está fora do âmbito jurídico. “Esse problema seria muito minimizado se houvesse sinergia entre os dois agentes. Uma ambulância do Samu que tivesse acesso aos dados de um paciente poderia consultar remotamente qual estabelecimento mais próximo da lista coberta pelo seu plano de saúde poderia recebê-lo. Dessa forma, ele nem entraria no sistema público”, exemplifica.
Ainda que haja alterações estruturais na interação entre o sistema público e o setor de saúde suplementar, o embate jurídico parece longe de terminar. Fora o que a ANS ainda deve cobrar das operadoras, segundo o último levantamento havia um montante de R$ 1,2 bilhão travado em análise após pedido de impugnação. Só o Grupo Unimed Belo Horizonte devia ao SUS mais de R$ 57 milhões*. “Trata-se de um impasse. As operadoras ainda não reconhecem a legitimidade desses ressarcimentos. Enquanto isso ocorrer, será mais um motivo para a judicialização na saúde”, avalia Ana Maria Malik, coordenadora do GVsaúde – Centro de Estudos em Planejamento e Gestão de Saúde.
Um episódio importante na esfera jurídica deve acontecer em breve. A ADI que contesta a Lei dos Ressarcimentos quase desde o seu nascimento ainda se encontra no STF, nas mãos do ministro Marco Aurélio Mello, mas tem data para ser julgada: 30/11/2017**.
* Após a publicação desta matéria, a assessoria de imprensa da Unimed-BH, por meio de nota, enviou os seguintes esclarecimentos:
“A Unimed-BH tem como princípio cumprir integralmente a legislação dos planos de saúde. Especificamente sobre o ressarcimento ao Sistema Único de Saúde (SUS), o tema tem sido tratado administrativamente com a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Em alguns casos, tem sido levado para discussão judicial, com a realização do depósito integral dos valores envolvidos. Sendo assim, não existe inadimplência por parte da Cooperativa. Destaca-se, ainda, que a própria legalidade/constitucionalidade do ressarcimento ao SUS é discutida junto ao Supremo Tribunal Federal (STF).”
** O julgamento foi reagendado para 07/02/2018.
*** Em 07/02, o STF decidiu manter a obrigatoriedade de as operadoras ressarcirem o SUS.