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Psiquiatria

Bets: quando apostar vira um vício? 

Jogar para recuperar o dinheiro perdido e mentir sobre o valor das apostas são sinais de dependência nos jogos online de azar, como as bets esportivas e o Tigrinho. Entenda.
Publicado em 04/10/2024
Revisado em 10/10/2024

Jogar para recuperar o dinheiro perdido e mentir sobre o valor das apostas são sinais de dependência nos jogos online de azar, como as bets esportivas e o Tigrinho. Entenda.

Você conhece uma pessoa que tem o hábito de beber, mas não consegue parar. Ela bebe escondida da família, quer beber cada vez mais e chega a se endividar para pagar a bebida. O que você diria para ela? Provavelmente, para procurar ajuda profissional e largar a dependência. Agora troque a palavra “beber” por “betar”. Será que a sua preocupação ainda seria a mesma?

Marcos*, 33 anos, formado em economia, trabalhava em um banco e não era muito adepto dessa ideia de “betar” — termo que significa apostar em jogos online de azar, como as bets esportivas. O medo de perder dinheiro fez com que ele demorasse a aceitar a pressão dos colegas para começar a jogar. 

Pela brincadeira, acabou topando. As apostas não passavam dos cinco ou dez reais ou, no máximo, 50. Mas, pouco a pouco, os valores foram aumentando. Sem perceber, Marcos passou de um reconhecido “mão de vaca” para um (nem tão reconhecido assim) apostador assíduo. A sua mente só pensava em três coisas: a aposta, a dívida ou a vontade de apostar. Em um só dia, ele chegou a perder todo o salário. 

O valor, no entanto, parece ínfimo perto dos cerca de 68,2 bilhões de reais gastos pelos brasileiros em apostas online entre junho de 2023 e junho de 2024, segundo estudo da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). E as dívidas são só um dos problemas enfrentados pelos jogadores. Por mais que eles demorem a reconhecer, os jogos online de azar também podem causar dependência.

Jogos de azar sempre existiram. O que mudou?

Qualquer jogo de aposta envolve mecanismos de risco, excitação e gratificação que, combinados, ativam o sistema de recompensa cerebral. Era assim com os caça-níqueis, bingos e jogo do bicho. Mas a facilidade atual ao acesso —  pela internet —  tem tornado o fenômeno uma verdadeira epidemia.

“A máquina caça-níquel é uma das mais aditivas, porque o reforço é imediato. Você sabe se ganhou ou se perdeu imediatamente. A rapidez do reforço é o que determina o potencial de dependência. Agora, o que você tem é um caça-níquel ambulante, porque se não está rolando o jogo de futebol, está rolando o de vôlei. Então você pode jogar o dia todo”, explica Elizabeth Carneiro, especialista em dependência clínica pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e diretora da Clínica Espaço Clif.

A dra. Elizabeth foi uma das palestrantes da mesa “As novas faces do transtorno do jogo: velhas ideias, novos disfarces” durante o Congresso Brain, Behavior and Emotions, realizado entre 26 e 29 de junho no Rio de Janeiro. A palestra foi uma das mais cheias, reunindo especialistas de todas as áreas das neurociências, o que não costumava acontecer anos atrás com temas relacionados a compulsões comportamentais.

A preocupação vem da ideia de que as novas modalidades de jogos de azar, como as bets esportivas ou o jogo do Tigrinho, agora podem ser acessados de qualquer lugar a qualquer hora. As barreiras físicas que poderiam servir de freios sociais, como a necessidade de ir até uma casa de apostas ou a possibilidade de ser barrado pelo segurança por não atingir a idade mínima necessária para jogar, são eliminadas. E isso estimula o jogador a perpetuar o comportamento compulsivo, até mesmo escondido de outras pessoas.

“Mas eu jogo com métodos”

Outro ponto é que, principalmente as bets, conquistaram um público que já era imenso no Brasil: o de fãs dos esportes. Conversas banais como “quem você acha que vai fazer o primeiro gol?” ou “quantas faltas você acha que vão ocorrer na partida?” podem virar apostas, naturalizando o jogo como uma simples brincadeira entre amigos e familiares.

“Eu comecei com futebol e aí chegou uma hora da madrugada que não estava passando [mais jogo]. Então, comecei a apostar no tênis de mesa na Austrália. Eu não conheço nenhuma regra de tênis de mesa, não fazia ideia do que estava jogando. Mas eu tinha que apostar em alguma coisa, então apostava ali. Virou algo completamente aleatório”, relata Marcos.

Para os fãs mais dedicados, o conhecimento sobre o esporte em que se está apostando pode dar uma impressão de segurança, como se a pessoa não estivesse jogando ao acaso, mas com base em estatísticas. Leonardo Carriço Apostolatos, médico psiquiatra colaborador do Programa Ambulatorial Integrado dos Transtornos do Impulso (Pro-Amiti) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq/HCFMUSP), explica que não é bem assim:

“Quando a gente fala desse tipo de jogo, temos que lembrar que toda aposta estipulada pelo site envolve cálculos complexos e especialistas que trabalham somente com isso. E por se tratar de probabilidades, a aleatoriedade está sempre presente. Então, por mais que os jogadores tenham um conhecimento profundo daquele jogo e, principalmente quando ele tem o conhecimento profundo daquele jogo, pode haver uma falsa sensação de que ele também tem o controle da situação. Isso estimula o comportamento aditivo”, afirma.

Para Marcos, era sempre um autoengano:

“Você perde e fala: ‘não, era esse método’. Aí você ganha: ‘tá vendo? Agora eu vou só aqui’. Mas você está sempre mentindo para você mesmo. Com o valor que eu perdi, eu já teria quitado a minha casa própria”, lamenta.

Na internet, existe uma variedade de cursos que prometem grandes lucros apostando nas bets esportivas. Foto: Reprodução/Udemy

Veja também: Jogadores patológicos | Entrevista

Jovens de baixa renda são os principais jogadores patológicos

Isso quer dizer que todo mundo que apostar vai se tornar dependente dos jogos de azar? Não. Assim como no cigarro, álcool e diversas outras drogas, existem pessoas que são mais suscetíveis à compulsão do que outras.

Estima-se que 1,4% dos adultos no mundo, majoritariamente homens, tem o chamado transtorno do jogo, uma condição que integra o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) e é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Os dados são de um artigo recente publicado na revista científica “The Lancet“.

No Brasil, o Banco Central (BC) avalia que a maioria dos apostadores (com ou sem diagnóstico de transtorno de jogo) tem entre 20 e 30 anos, ou seja, são adultos jovens.

De acordo com a dra. Elizabeth, existem dois tipos de jogadores: aquele que busca emoções e o que quer fugir dos problemas. O primeiro aposta pela adrenalina do jogo, enquanto o segundo quer ficar o mais afastado possível das próprias preocupações, como no caso de Marcos e de vários outros brasileiros. Conforme o estudo da CNC, 1,3 milhão de brasileiros ficaram inadimplentes no primeiro semestre de 2024 por causa das apostas online.

Além disso, sabe-se que outros transtornos psiquiátricos, como TDAH, depressão e ansiedade, estão associados ao desenvolvimento do jogo patológico. Nesses casos, apostar é uma maneira de amenizar os sentimentos negativos. Em março de 2022, Marcos foi diagnosticado com câncer testicular e precisou retirar um dos testículos. O susto foi tão grande que se refletiu no descontrole nas apostas.

Quando apostar vira dependência?

As dívidas, então, começaram a se acumular. Marcos jogava 20, 30, 40 vezes seguidas, tentando recuperar o que havia perdido. Não dormia direito pensando em apostar e se escondia no banheiro quando saía com os amigos para fazer novas apostas. Nem a própria esposa sabia da sua adição. Até que o avô, que morava em outro estado, faleceu e Marcos não pôde se despedir por não ter dinheiro para pagar a passagem.

“Aquilo mexeu com a minha cabeça. Minha esposa já fazia terapia, então ela me indicou que eu fosse ao psicólogo, porque eu não estava bem. Quando eu chego ao psicólogo, eu falo que é o meu trabalho que não está legal, que eu perdi meu avô sem me despedir. Mas eu não falo sobre o jogo. Eu fiquei durante mais ou menos seis meses mentindo para o meu psicólogo”, lembra.

Estes são os dois principais comportamentos que definem os jogadores patológicos: 

  • quando a pessoa começa a jogar para recuperar o dinheiro que perdeu;
  • e quando ela começa a mentir sobre as suas apostas.

Mais sintomas que costumam aparecer são o desejo crescente de aumentar o valor das apostas, tentativas frustradas de parar de jogar, pensamentos constantes sobre o jogo, apostas quando o indivíduo se sente angustiado, a necessidade de dinheiro de terceiros para pagar as dívidas, entre outros. E quando esses sintomas surgem, eles geralmente não vêm sozinhos. 

“A saúde mental é gravemente afetada com o desenvolvimento de sintomas depressivos, ansiosos e altos níveis de estresse. Os jogadores patológicos podem ainda apresentar sentimentos constantes de culpa, vergonha e desespero. Enfrentam muitos problemas financeiros, disfuncionalidade e queda do desempenho no trabalho e complicações nos relacionamentos, tanto na parte amorosa quanto de amizades”, elenca o dr. Leonardo.

No âmbito financeiro, muitos recorrem à agiotagem. Cerca de 15% deles, inclusive, tentam suicídio, atormentados diante do endividamento.

Veja também: Para que serve a psicoterapia?

Como parar de apostar?

Normalmente, os pacientes que chegam até o atendimento já estão em uma situação bastante complicada. A procura se dá por amigos e familiares que os incentivam a buscar ajuda. 

Print de um relato publicado em setembro de 2024 no site Reclame Aqui. O pedido de ajuda é para a empresa Blaze, uma das maiores casas de apostas no Brasil. Foto: Reprodução/Reclame Aqui

O tratamento é individualizado e consiste na identificação e abordagem de todas as comorbidades envolvidas. Além do acompanhamento psiquiátrico, que pode envolver a prescrição de medicamentos, o jogador passa ainda por um psicólogo. Terapeutas ocupacionais, conselheiros financeiros e outros profissionais também ajudam, a depender da demanda de cada indivíduo. No Brasil, existem poucos centros especializados em adição por jogos de aposta, portanto, o mais indicado é procurar assistência nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) ou nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) mais próximos.

No início do tratamento, a grande dificuldade é controlar o impulso de apostar. Até porque a tentação está na palma da mão: o celular. Mas é preciso fazer um esforço para se afastar completamente, pelo menos nos três primeiros meses, dos lugares associados a esse hábito, como estádios ou reuniões sociais para assistir às partidas. 

“A gente vai trabalhar a forma de lidar com a oferta. ‘E aí, amigo? Não vai betar hoje, não?’. Isso vai acontecer, as pessoas oferecem que nem droga. Então vamos trabalhar as respostas que ele pode dar nessa interação. Por exemplo, dividir com os amigos mais próximos: ‘Quando vocês estiverem comigo, se puderem não jogar, eu agradeço’”, recomenda a dra. Elizabeth.

Jogadores Anônimos: onde encontrar pessoas passando pelo mesmo problema

Uma das coisas que ajudou Marcos a não recair foi conhecer os Jogadores Anônimos. Quando a luz da sua casa foi cortada, depois de três contas em atraso, ele precisou contar o que estava acontecendo para a esposa. A notícia foi um baque, mas ela entendeu que ele precisava de ajuda e encontrou o grupo na internet. 

Os Jogadores Anônimos, assim como os Alcoólicos Anônimos ou os Narcóticos Anônimos, são uma irmandade onde as pessoas compartilham suas experiências com o objetivo de se livrar do comportamento compulsivo. 

“É feito somente pelos próprios jogadores. Não tem psicólogos ou médicos que vão falar: ‘você é um jogador compulsivo’. Se eu acho que eu não sou, eu vou embora e o problema é só meu. Hoje, no grupo, eu vejo que tem outras pessoas que passaram pelo que eu passei. Porque independentemente se a pessoa tinha problema com bingo, caça-nível, bet ou Tigrinho, a cabeça do compulsivo tem uma dinâmica muito parecida, né? É a procura pelo prazer do jogo. Não é que a pessoa seja necessariamente gananciosa, é que ela está buscando a fuga da realidade”, afirma Marcos.

Para fazer parte dos Jogadores Anônimos, basta querer parar de jogar. Não há mensalidades e eles realizam reuniões tanto online quanto presenciais em várias capitais do país. Saiba mais pelo número (11) 99571-6942 ou acesse o site clicando aqui.

Jogos de aposta devem ser tratados como problema de saúde pública

Percebendo o tamanho do problema, o Ministério da Fazenda publicou em julho uma Portaria que regulamenta os jogos de aposta. A partir de janeiro de 2025, as empresas sediadas no Brasil deverão ser certificadas, bloquear o pagamento com cartão de crédito, disponibilizar tabelas com as possibilidades reais de ganhos e se responsabilizar legalmente por suas publicidades.

Além disso, elas precisarão impedir o cadastro ou limitar o acesso de pessoas que tenham o diagnóstico de transtorno do jogo, bem como alertar os usuários sobre o risco de dependência. Em caso de indícios de adição, percebidos pelos dados de navegação, o jogador será suspenso ou até banido. 

“A dependência do jogo tem que ser reconhecida como um problema de saúde pública. Talvez com a criação de instrumentos digitais que consigam identificar e fornecer apoio a esses doentes, a criação de locais estruturados que contenham profissionais habilitados e que ofereçam o tratamento, e, principalmente, campanhas de conscientização para população a respeito dos riscos desse comportamento do jogo”, opina o dr. Leonardo em relação às iniciativas necessárias para combater o fenômeno.

Para dra. Elizabeth, o cenário é semelhante ao do cigarro nos anos 1970, que se popularizou principalmente devido à propaganda da indústria do tabaco. Na época, foi preciso um esforço amplo de políticas públicas para reverter a situação e desestimular o tabagismo.

“Eu focaria na proibição do marketing em qualquer coisa associada ao esporte. Acho que, de alguma forma, a taxação deve ser mais alta. E focar na conscientização sobre o fato disso poder se tornar uma doença”, destaca.

Marcos, que participa ativamente das reuniões dos Jogadores Anônimos e segue com o acompanhamento psicológico e psiquiátrico, já está há nove meses sem apostar. Ele deixa o seu conselho para quem está enfrentando dificuldades com o jogo:

“O problema não é o jogo, o problema é a compulsão. Se você está perdendo a mão, busque ajuda. Porque a compulsão é um problema emocional de caráter progressivo, então ele tende a piorar. Se hoje está ruim, vai ficar pior lá na frente. E a consequência é a insanidade, a perda da família, talvez até a morte. Então, busque ajuda”, conclui.

*O nome da fonte foi alterado para garantir a sua privacidade.

Veja também: Como conseguir atendimento psicológico gratuito?

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