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Vava – Outras Histórias #54

Vava tinha rosto feminino e mentalidade masculina. Em busca de uma aventura, foi parar na cadeia, perdeu a namorada, mas conquistou 54 mulheres ao mesmo tempo.
Publicado em 07/06/2022
Revisado em 28/06/2022

Vava tinha rosto feminino e mentalidade masculina. Em busca de uma aventura, foi parar na cadeia, perdeu a namorada, mas conquistou 54 mulheres ao mesmo tempo.

 

 

 

A história de Vava é uma das que o dr. Drauzio conta em seu livro Prisioneiras (2017). Desde pequena, Vava tinha rosto feminino, mas jeito de homem. Gostava de brincar de arco e flecha e jogava no lixo todas as bonecas que ganhava. Por beijar outras meninas na escola, a mãe a levou a um psicólogo e até a um padre. O pai, surpreendentemente, aceitou bem a situação.

Aos 18 anos, Vava se apaixonou pela primeira vez. Foi nessa época também que se envolveu em um esquema de tráfico de drogas organizado pelo melhor amigo de infância. Namorando, lavava o dinheiro escondida até que foi pega pela polícia. Na prisão, perdeu o contato com a namorada, mas conheceu uma garota de programa e mais 54 presidiárias interessadas nela. Ouça neste episódio do Outras Histórias.

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Essa história eu ouvi na penitenciária feminina e está no meu livro “Prisioneiras”.

Vava tem rosto feminino, mas jeito de homem. “Nasci no corpo errado”, costuma dizer. O cabelo oxigenado é raspado dos lados, cortado escovinha no topo da cabeça e fixado com o gel para permanecer espetado. A linguagem é clara, articulada, sem gírias nem erros de concordância.

Ao contrário da maioria esmagadora das pessoas presas, não teve a infância de privações, nem de maus tratos. Pelo contrário, foi criado numa casa ampla, com jardim e um quintal, que chegava à rua de trás em um bairro arborizado, de uma cidade do Vale do Paraíba, junto à Via Dutra, que liga São Paulo ao Rio de Janeiro.

Seus problemas foram de identidade de gênero. “Minha mãe disse que eu só gostava de brincar de revólver e arco e flecha. Quando me dava uma boneca, eu arrancava os braços e jogava no lixo”. Fazendeiro no sul do Pará, o pai vivia mais para a pecuária do que para a família. Era um homem de poucos estudos, enérgico, habituado a dar ordens, criado no cabo de enxada desde os sete anos — como repetia com orgulho. Passava poucos dias em casa e voltava para a fazenda, de onde só retornaria três ou quatro semanas mais tarde; a esposa desconfiava que ele tivesse outra no Pará.

Quando Vava tinha seis anos, chamaram sua mãe na escola. Na sala aguardavam a diretora, a professora e um padre com um pote de água benta e o bastão para exorcizar a menina, espantar de seu corpo o demônio que a fazia beijar na boca as coleguinhas do pré. Depois da quinta sessão de exorcismo, a diretora e o padre concluíram que o resultado deixara a desejar; a solução seria o psiquiatra. Por meia hora, o médico conversou a sós com ela, quando a mãe entrou, ele foi sucinto: “não há o que fazer. Sua filha tem mentalidade masculina”. A mulher não se conformou. Se a mentalidade da filha era essa, teria que ser mudada — foi o que tentou fazer por anos consecutivos; com paciência ou na falta dela, proibiu a filha de ter qualquer contato físico com outras meninas, jogar bola com a molecada na rua, vestir calça comprida e empinar pipa, sua brincadeira predileta.

Na puberdade insistia que namorasse um dos meninos da vizinhança. Vava diz que os conselhos só a deixavam mais confusa:

— Como eu ia namorar com os meus amigos? Gostava de ficar com eles, mas desejo eu só tinha por mulher. Até fingia ser como as outras da minha idade, ficava infeliz com o sofrimento da mãe, eu morria de medo que meu pai descobrisse, mas desejo a gente não controla. É água morro abaixo.

Para evitar que se aproximasse de outras meninas, a mãe não a deixava sair sozinha — obstáculo que a filha contornou com o auxílio da prima. “Ela me apresentou o irmão do namorado dela, pra fingir que era meu pretendente. Minha mãe ficou tão feliz, coitada”. O estratagema funcionou bem até o menino tentar beijá-la e passar a mão em seus seios. A reação não foi amigável.

— Dei um soco na cara dele. — Impressionada com o olho inchado do rapaz, a prima comentou a agressão com a tia, que desacorçoada chamou a filha. — Não sei mais o que fazer. Até aqui enfrentei sozinha sua falta de vergonha. Agora o seu pai vai ter que me ajudar. — Vava pediu pelo amor de deus; bronco do jeito que era, ele perderia a cabeça, não seria capaz de entender um tipo de atração sexual que nem Vava compreendia.

Os três se reuniram formalmente na sala de casa, num sábado à noite. A mãe descreveu em ordem cronológica as histórias da escola, as sessões de exorcismo, o parecer do psiquiatra, conselhos, ameaças e proibições acumuladas no decorrer daqueles anos. Cheia de vergonha, Vava permaneceu de cabeça baixa o tempo todo. O pai ouviu calado. No final, foi lacônico: “eu gosto de mulher, ela também; tem bom gosto”. A anuência paterna foi um bálsamo para o espírito adolescente.

— Não precisava mais fingir que era alguém que eu não era.

A primeira paixão aconteceu aos 18 anos. Uma professora casada, mãe de dois meninos, que se tornou amiga inseparável e a primeira mulher com quem teve relações sexuais de verdade. Para comemorar os 19 anos, ela e a namorada secreta organizaram um churrasco para mais de 50 convidados na beira da piscina do sítio da família, a 20 quilômetros do centro da cidade, comemoração que mudaria seu destino.

Um dos convidados, Marcinho, o melhor amigo de infância, contou que faria uma viagem para comprar maconha no Mato Grosso. Queria saber se não podia escondê-la no sítio por dois ou três dias, até a chegada do comprador de São Paulo. Qualquer problema com a lei, ele assumiria a responsabilidade. Confessaria que era frequentador do local e se aproveitara da confiança da família. Vava diz que se não tivesse acabado de fumar um baseado não teria autorizado. Sob o efeito dele, entretanto, não viu mal algum, achou até divertido.

A operação deu certo. Agradecido, Marcinho lhe trouxe de presente uma caixa de madeira com desenho de um beija-flor na tampa. Em seu interior, 20 notas de 100 reais. Com a caixa na mão, Vava quis saber detalhes da operação. O amigo de infância descreveu a viagem de carro até a fronteira com o país vizinho, o hotelzinho de Cáceres, às margens do Rio Paraguai, em que se hospedou a espera do carregamento, o acondicionamento dos 50 quilos no fundo falso do porta-malas e os comprimidos de anfetamina que o mantiveram acordado na viagem de volta do Mato Grosso, direto pra São Paulo, a fim de diminuir o risco de apreensão.

Vava perguntou se na viagem seguinte não poderia acompanhá-lo. A parceria traria a vantagem da alternância no volante e de fingirem que eram um casal em lua de mel. A motivação? “Não foi por dinheiro, não me faltava nada. Fiquei excitado com a história e com vontade de viver uma aventura que me tirasse daquela vidinha de interior.”

Companheiros desde crianças, os dois se deram bem.

— Para despistar, cada vez a gente ficava num hotel, dormia em cama de casal, andava de braço dado e ria quando alguém falava “o senhor e sua esposa”.

A facilidade com que iam e voltavam com quantidades cada vez maiores de maconha criou a necessidade de viajar com veículos mais espaçosos. Em nome dela, compraram um utilitário, depois uma caminhonete e finalmente um caminhão que carregava troncos de eucalipto para uma transportadora, no meio dos quais escondiam a droga.

No sítio, a maconha era acondicionada em sacos plásticos, empilhados no interior de caixas d’água de 500 litros, vedadas com fita adesiva e enterradas em áreas de declive, para não acumular água da chuva. O armazenamento trazia a vantagem de garantir a comercialização mesmo no inverno, época em que a produção cai e os preços sobem; por razões de segurança, só vendiam no atacado.

— Tínhamos meia dúzia de clientes que compravam pelo menos 50 quilos, às vezes mais, para distribuir pelo interior. Quanto menos gente envolvida num negócio, melhor.

Como não podiam depositar em banco o dinheiro arrecadado, davam a ele o mesmo destino da maconha estocada embaixo da terra. Para despistar e lavar o dinheiro, Vava abriu uma loja de roupas em sociedade com a namorada, que desconhecia a origem obscura do capital.

— Eu dizia que as viagens para o Mato Grosso com o Marquinhos eram para cuidar de uma das fazendas do meu pai, comprar e vender gado; ela não fazia perguntas. — A sociedade na loja criou o álibi perfeito para passarem os dias juntas e viajarem. Quando iam fazer compras na 25 de Março, no centro de São Paulo, hospedavam-se no Maksoud Plaza, hotel de luxo junto à Avenida Paulista, jantavam em bons restaurantes e passeavam pelo Shopping Iguatemi, o mais chique naquela. — A gente era discreta na nossa cidade. Lá ninguém estranhava amizade. O marido dela nunca desconfiou, deixou até a gente viajar com os meninos pra Disney; fomos de classe executiva, voltamos com oito malas.

Um dia, apareceram duas moças na loja, filhas de um comprador. Vava tratou de tirá-las de lá; fazia de tudo para manter a namorada alheia às atividades ilegais. Na padaria em frente, a mais velha contou que o pai caíra nas mãos da polícia uma semana antes. Tinham conseguido juntar o bastante para comprar cinco quilos, quantidade que lhes daria o suficiente para os honorários do advogado.

Quando Vava respondeu que não vendia a varejo, as irmãs começaram a chorar. Disseram que não tinham como conseguir o dinheiro, nunca haviam se metido nos negócios do pai, nem conheciam outra pessoa que pudesse socorrê-las.

— Fiquei com pena, liguei pro Marquinhos desenterrar cinco quilos. Ele ficou bravo, falou que era perigoso vender para quem não era do ramo, muita gente grande tinha ido parar na cadeia por uma mancada dessas. — Ela insistiu na solidariedade, o pai delas era um dos melhores fregueses, homem de palavra, sempre correto nos pagamentos.

Com os cinco quilos no porta-malas, as duas pegaram a estrada para São Paulo. Por azar, a menos de 20 quilômetros do sítio, um dos pneus traseiros passou em cima de um prego. Por mais azar ainda, quem parou no acostamento para ajudá-las foi um carro da polícia militar, que por acaso vinha atrás.

Dois meses depois, Marquinhos e Vava entraram no sítio com 800 quilos de maconha na carroceria do caminhão de lenha, quando a polícia chegou. Na delegacia, o interrogatório foi amigável: “não adianta mentir, eles estavam na nossa campana desde que prenderam as irmãs. Mostrei todos os esconderijos, só não entreguei os nomes de quem vendeu, nem falei do dinheiro enterrado. Na época, foi a maior apreensão do Vale do Paraíba. Saiu no Jornal Nacional; na cidade, ninguém imaginava que o Marquinho e eu fossemos traficantes.”

Vava chorou ao descrever o encontro com a mãe e a namorada na delegacia:

— Morri de vergonha e culpa, doutor. Elas não tinham ideia. É muito triste fazer sofrer quem a gente mais ama. — Estava presa havia cinco anos, menos da metade da pena a que fora condenada por tráfico, com o agravante da associação. Da antiga namorada, nem notícias. — Ela foi chamada na delegacia para prestar declaração. Ficou muito magoada.

Na penitenciária, Vava conheceu Leila, garota de programa de olhos negros e traços árabes, que fazia dança do ventre numa boate da Zona Norte, presa por esfaquear o homem que vivia às custas dela. O romance das duas durou três anos. “Sou sapatão original. Embora aqui tenha mulher pra todos os gostos, não sou desses que muda de parceira como quem troca de cueca. Tenho orgulho de dizer que a fidelidade não foi por falta de opção. Sapatão original na cadeia tem uma mulher por hora, se quiser; volta e meia eu recebia um ‘pp’, um bilhete, de alguém que se candidatava a substituir a minha mulher”.

‘Pps’, esses bilhetes trocados entre as presas, não faltaram, assim que Leila foi transferida para o semiaberto.

— Às 8h00 da manhã seguinte, quando eu fui pegar o pão no bolso da toalhinha pendurada para fora do guichê da cela, tinha 54 pps dizendo que me achavam lindo, e dando o número da cela pra me conhecer melhor.

Eu perguntei:

— 54, Vava?

— Já teve 54 mulheres afim do senhor ao mesmo tempo, doutor?

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