Amor quase fatal – Outras Histórias #61

Depois de uma história de amor quase fatal, Mano Gordo decidiu que iria dar um tempo do relacionamento com as duas mulheres. Ouça.

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Publicado em: 3 de agosto de 2022

Revisado em: 17 de agosto de 2022

Foi só depois de quase morrer por causa de um amor proibido que Mano Gordo resolveu dar um tempo das mulheres.

 

 

 

O relacionamento dos carcereiros com suas mulheres é complicado: muitas vezes, eles ficam até tarde para cuidar de emergências na prisão e ainda precisam fazer bicos no contraturno por causa dos baixos salários. Como consequência, passam pouco tempo em casa e, não raramente, têm amantes fora do casamento.

Mano Gordo era um carcereiro mal-humorado que mudava completamente de postura na frente da esposa, mulher de personalidade forte. Quando começou a se envolver com a prima dela às escondidas, a separação não foi nada amigável. Ouça neste episódio do Outras Histórias.

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No meu convívio com os carcereiros, há tantos anos, não é, você acaba conhecendo particularidades da vida de cada um.

O relacionamento deles com as mulheres é sempre complicado porque, bom, primeiro, eles têm uns horários que são incertos, né. Às vezes, o cara tá saindo da cadeia, tem um problema lá e ele tem que resolver, não pode ir embora pra casa, tem emergências, que eles têm que ficar. E, como o salário é um salário que não dá pra sustentar a família num bom padrão, eles fazem bicos, que eles trabalham, em geral, o dia inteiro, 12 horas, pulam o dia seguinte e, aí, voltam no outro dia mais 12 horas. E, aí, também eles ficam muito pouco tempo em casa, né, os que trabalham, às vezes, fica complicada a vida deles, né. E não é muito raro eles se envolverem com outras mulheres, e, aí, eles têm uma relação com elas possessiva, eles consideram mulher mesmo, são ciumentos. E essas relações, às vezes, são rápidas e, outras vezes, se mantêm por muito tempo. E eles, na verdade, são conservadores, não são caras abertos assim pro mundo, não, são conservadores. Quando têm outra mulher, eles dividem a presença em casa com a presença na casa da outra mulher, e isso é uma coisa que não é fácil o cara conseguir se equilibrar.

As mulheres, quando se cansam deles e da vida que elas levam em casa, tendo que segurar tudo, filho, escola, o diabo, né, e arranjam um namorado e, aí, ele tá desmoralizado completamente, né, e ele ganha a solidariedade dos colegas de trabalho, que ficam revoltados: “Como ela fez isso com você?” E as mulheres, quando descobrem que existe outra, elas brigam, armam escândalo, choram, ameaçam de expulsar eles de casa. E eles, se confrontados com as evidências, eles negam tudo, eles negam, negam, negam até o fim. Um deles uma vez me falou assim: “Réu confesso, nem sob tortura. Sem admitir o erro, ela vai ficar sempre na dúvida”. Esse argumento é um argumento que justifica a negativa, né, e, se ela resolver pagar na mesma moeda só pra se vingar? “Viu só o que fez a mulher do Mano Gordo?”, me contou uma vez um carcereiro.

O Mano Gordo, na verdade, era magro e era magro como um varapau, um cabo de vassoura, mas chamavam ele de Mano Gordo. Ele tinha feito uma cirurgia de redução do estômago, então, tinha emagrecido muito, mas conservou o nome de Mano Gordo pra sempre. Lá na penitenciária, eles diziam que a magreza do corpo era proporcional ao mau humor dele, uma falta de paciência e era muito agressivo no tratamento dos presos. E engraçado porque era um traço que contrastava com a delicadeza dele no relacionamento com as mulheres. Era gentil, tava sempre disposto a ajudar. Ele era casado com uma mulher, era uma negra corpulenta, assim, de temperamento irascível e tinha dois filhos adolescentes com essa mulher. No relacionamento com ela, ele pisava em ovos pra evitar essas crises de destempero que ela tinha e que ela gritava, a vizinhança ouvia e ficava todo mundo sabendo o que tava acontecendo na casa dele. Pra que ninguém testemunhasse a condição humilhante que ele levava no aconchego do lar, ele nunca convidava os colegas de trabalho pra visitá-lo nem ia com a esposa na casa de ninguém. Mesmo sem conhecê-la, as más línguas da cadeia comentavam: “Aqui, canta de galo, fala grosso, preso nenhum faz graça com ele, na frente da mulher, é um cordeirinho”.

A esposa do Mano Gordo tinha uma prima, diz que chamava Emília essa prima. E ela era casada com um pintor de paredes, um rapaz trabalhador, mas que a maltratava quando ele chegava bêbado e, volta e meia, ele chegava bêbado em casa. Nessas ocasiões, ela corria pra casa da prima, que era um refúgio que o marido respeitava por mais alcoolizado que ele tivesse, não por medo do Mano Gordo, que nunca tava em casa, mas pela lembrança do golpe que recebera na cabeça com um caibro de madeira, apanhado pela mulher do Mano Gordo no quintal. Ele ousara invadir a casa, perseguindo a mulher dele, e a mulher do Mano Gordo enlouqueceu, pegou um caibro assim de madeira e deu na cabeça dele.

Uma noite, quando chegou do trabalho, o Mano Gordo encontrou a esposa aplicando uma bolsa de gelo no rosto inchado da prima. Ele ficou revoltado: “Esse vagabundo nunca mais vai encostar um dedo em você”. E foi lá pra casa dela. A prima morava num quarto e sala, que era bem perto, acho que um ou dois quarteirões. O pintor tava lá, assistindo televisão, jogado no sofá, com uma cerveja na mão. E o Mano entrou, chutou a mão que tava segurando a lata, puxou o revólver e foi direto ao assunto, assim: “Olha aqui, seu pau d’água, covarde, filho de uma puta, se encostar um dedo nela mais uma vez, eu vou estourar os teus miolos”. Pra dar mais ênfase ainda à ameaça, ele introduziu o cano do revólver goela abaixo até fazer o inimigo vomitar.

Dois meses depois desse episódio, Emília, que era prima da mulher do Mano Gordo, diria que o marido tinha se transformado, continuava a beber, mas era uma seda quando chegava da rua. Ela, muito agradecida, dizia que só Deus pra pagar o bem que o primo fizera pra ela. O Mano não desprezava a retribuição divina, mas preferia colher neste mundo as dádivas da gratidão da prima. De soslaio, ele começou a flertar com a moça. Como o contato entre os dois sempre acontecia na presença de Ester, o risco era imenso, né. A proximidade do perigo não amedrontava ele, pelo contrário, deixava ele mais curioso.

Num dia que tava chovendo, quando ele saiu de casa no fim do expediente, ele tomou um susto: a prima aguardava ele na portaria da cadeia. Ela tava de capa, um guarda-chuva, assim, o cabelo molhado e veio sorrindo na direção dele. Ele diz que ficou arrepiado nessa hora. E os dois começaram a se encontrar numa quitinete na Baixada do Glicério, que tinha sido emprestada por um ex-detento que o Mano tinha salvado da morte nas mãos dos companheiros do pavilhão. E os encontros aconteciam, em geral, duas vezes por semana, rigorosamente, às seis horas da manhã. É um horário insuspeito, né, em que o dono do apartamento saía pra trabalhar, o ex-preso que emprestava o apartamento pra ele. Eles passavam uma hora e meia juntos, no máximo, pra não atrasarem nos empregos, o dele num presídio de Guarulhos e o dela era numa loja de brinquedos na Ladeira Porto Geral. E eles foram mantendo a rotina romântica em segredo por dois anos até que a Emília, a prima, né, desabafou com uma amiga da infância, que tinha sido criada na mesma rua dela, e confidenciou que estava apaixonada, mas que não era feliz porque vivia martirizada por trair a confiança da prima, que tanto ajudava ela, não é. A amiga íntima aconselhou-a a lutar pela felicidade que não encontrara no casamento com o pintor, mas escondeu que também atravessava um momento delicado: havia descoberto que o marido era infiel.

Dias mais tarde, a amiga viu a esposa do Mano numa feira, vinha com duas sacolas pesadas. Ela falou: “Não, deixa que eu te dou uma mão aqui”. À noite, quando o Mano voltou do trabalho, encontrou a esposa, que tava sentada na poltrona da sala, com a luz apagada. Ele perguntou pelas crianças, ela respondeu que tinham ido dormir na casa da tia pros dois poderem ter uma conversa a sós. Com a maior tranquilidade do mundo, disse que estava a par de tudo e que se separariam, mas que ela não guardaria mágoas nem causaria problemas, desde que ele confirmasse a história. Mano considerou a oportunidade perfeita pra pôr um fim na vida que ele levava ao lado da mulher, que era muito briguenta. Ele disse que não suportava mais o mau gênio dela e a gritaria diária. Falou pra ela: “Ó, eu vivi um inferno com você. Aqui em casa, até o cachorro manda mais e recebe mais carinho do que eu”. Aí, ela disse simplesmente: “Com tanta mulher no mundo, por que justamente com a minha prima?” E o Mano: “Ah, porque ela é bonitinha, carente, tava mais à mão”. Mais tarde, os amigos reconheceram que ele foi imprudente ao cutucar a onça com vara tão curta. A esposa enfiou a mão embaixo da poltrona, agarrou uma faca e pulou em cima dele. Foram duas facadas no abdômen. Ele ficou internado no Hospital do Servidor durante 15 dias, perdeu mais de um metro de intestino, mas não denunciou a mãe dos seus filhos, né, inventou que o ferimento resultara de uma tentativa de assalto na porta de casa. Quando recebeu alta lá do Servidor, foi morar com uma irmã dele e não voltou pra companhia da mulher e nem casou com a Emília, com a prima, não é. Ele diz que resolveu dar um tempo com as mulheres. Mas o pior, diziam os colegas da cadeia, o pior foi que a ex-mulher não ficou contente, começou a dar pra todos os amigos dele.

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