Mila, a boa mãe – Outras Histórias #65

Conheça a história de Mila, que foi viver por conta própria aos 10 anos de idade pelas ruas de São Paulo, até chegar na penitenciária feminina. 

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Conheça a história de Mila, que foi viver por conta própria aos 10 anos de idade pelas ruas de São Paulo, até chegar na penitenciária feminina. 

 

 

Neste episódio do Outras Histórias, Drauzio conta a história de Mila, uma mulher que chegou na enfermaria da penitenciária feminina com uma febre muito alta. Algumas consultas depois, uma amizade foi formada.

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Três ou quatro anos atrás, na penitenciária feminina, Mila chegou com febre alta.

Olá, eu sou Drauzio Varella, e aqui você vai ouvir Outras Histórias.

A negra era forte, esguia, com os olhos negros determinados. Só tomou a liberdade de sentar quando eu perguntei se ainda esperava crescer. Tinha medo de estar com uma doença maligna na garganta, tamanha a dor ao engolir que se instalara havia uma semana. Era uma amidalite purulenta, que eu tratei com antibiótico. Desde então, Mila abria um sorriso que iluminava o rosto quando nos cumprimentávamos ao cruzar na galeria da cadeia.  Nosso relacionamento ficou limitado a esses encontros ocasionais até a última segunda-feira, quando ela retornou com um nódulo no seio. Perguntei há quanto tempo estava na penitenciária. “Cinco anos desta vez.” E das outras? “Foram duas passagens, sem contar as da Febem.” Condenações longas como esta? “Não, a maior foi de três anos. Cadeia de poeta, como dizem por aqui.”

Mila nasceu numa das comunidades mais pobres da Brasilândia, na Zona Norte de São Paulo. Ela morava num quarto e cozinha com a mãe, que era faxineira, dois irmãos mais novos e o padrasto, que era segurança de um mercadinho. No dia que Mila completou dez anos, foi estuprada pelo padrasto, que ameaçou matá-la se contasse pra mãe. Ao ser violentada pela segunda vez, ela fez uma trouxa com as roupas e fugiu de casa. Antes de sair pela porta, em disparada, no entanto, teve o cuidado de rachar a cabeça do agressor com um pedaço de cano que o atingiu à traição, junto à pia. Com o dinheiro surrupiado da carteira do pedófilo, pegou um ônibus pra Praça da Sé, o lugar mais distante de que ouvira falar. O primo de um menino da escola tinha fugido pra lá.

Com a sabedoria dos dez anos, Mila foi viver por conta própria com os menores que passavam os dias e as noites nas imediações da praça. Lá, ela conheceu Dora, menina de 14 anos que a adotou como filha. Mila diz: “Foi minha mãe de rua, me acolheu e me protegeu. Se alguém vinha com maldade pro meu lado, ela virava o cão. Furou com o estilete a barriga de um menino mais velho que tentou me pegar à força. Deu uma bofetada na cara do português da lanchonete que perguntou quanto ela queria pra me mandar fazer um programa com ele.”

Com Dora, Mila dividia as quentinhas fornecidas pelos donos dos bares e restaurantes compadecidos com a sorte daquela menina magrinha, de olhar inquieto. O dinheiro pras demais necessidades vinha da habilidade da parceira no furto de mercadorias, enquanto Mila vigiava na porta da loja, atividade responsável pelas internações na antiga Febem.

Dora foi firme na educação da filha de rua. “Gente como nós”, ela dizia, “começa cheirando cola, quando vê, está jogada feito escrava no meio da cracolândia. Você e eu, não, o nosso futuro vai ser diferente porque temos uma à outra.” Mais tarde, elas conheceram um distribuidor de dinheiro falso, que as empregou como entregadoras. Alugaram um quarto na rua Helvétia, as despesas extras, pagavam com os furtos que lhes renderam a primeira das cadeias de poeta, mal atingida a maioridade.

Aos 23 anos, conheceu, se apaixonou e foi viver com Platão, filho do dono de um Poupatempo, escritório especializado na falsificação de documentos. Ele insistiu com Dora pra morar com eles, mas a amiga recusou. Trabalhou com o companheiro e o sogro durante cinco anos, período em que aprendeu a arte da falsificação e deu à luz um casal de gêmeos. Mila diz que esse foi o período mais feliz da vida dela.

A felicidade foi interrompida pelos disparos de dois motoqueiros contra o pai e o filho num ponto de ônibus. Viúva, com duas crianças, Mila assumiu o Poupatempo e a clientela do sogro. Emitia carteira de identidade, de motorista, CPF, atestado de antecedentes, certidões negativas, escrituras de imóveis e recibos de pagamentos nunca efetuados. Os clientes elogiavam a perfeição dos seus documentos. Ela diz que colocar uma carteira de identidade verdadeira ao lado da que ela fazia, não se percebia nenhuma diferença.

Nunca mais namorou nem saiu pra se divertir sem os filhos. Viveu pro trabalho e pra família. Hoje, sente orgulho. “A minha menina estuda na USP. O menino faz engenharia numa faculdade particular. Não fumam. Nunca usaram droga nem chegaram perto de uma delegacia. Além da casa em que eles vivem, cada um é proprietário de dois imóveis de aluguel, tudo legalizado, com escrituras oficiais, assinadas em cartório.”

Quando fala das suas origens e do que fez pela família, Mila sorri. “Quantas mulheres que fugiram de casa aos dez anos chegam aos 45 com cinco imóveis, dois carros e os filhos na universidade?”

Semanalmente estarei aqui para contar Outras Histórias. A trilha sonora foi feita pela In Sonoris e a produção é da Júpiter – Conteúdo em Movimento.

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