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Pediatria

Como tratar a seletividade alimentar em crianças autistas

criança sentada no sofá chora quando mãe oferece comida. seletividade alimentar é comum em crianças com autismo
Publicado em 27/12/2023
Revisado em 06/09/2024

A restrição é comum em crianças que estão no espectro autista, principalmente por conta de alterações sensoriais e comportamentais. Entenda a relação entre seletividade alimentar e autismo.

 

A seletividade alimentar é caracterizada pela preferência por comer determinados alimentos (em geral, poucos) e a recusa em experimentar comidas diferentes das quais se está habituado. Crianças com esse tipo de restrição frequentemente têm aversão a alguns alimentos e apresentam forte resistência em comer coisas diferentes, o que pode trazer muitos prejuízos para sua saúde. 

Segundo Mayra Gaiato, psicóloga, neurocientista e especialista em desenvolvimento infantil e transtorno do espectro autista (TEA), é comum que crianças com autismo apresentem a seletividade alimentar porque os sintomas da seletividade alimentar estão presentes no quadro do autismo. 

“Uma das questões envolvidas na seletividade alimentar é que as crianças que têm seletividade alimentar têm um transtorno de processamento sensorial, então têm uma alteração em como os estímulos sensoriais são processados no cérebro. E as crianças autistas têm essa alteração no tálamo, que é o filtro de dentro do cérebro de como as informações do ambiente externo são processadas, todas elas relacionadas ao sistema sensorial – visão, olfato, tato, paladar. E todas estão alteradas no autista”, explica.

Isso faz com que a percepção dos estímulos seja ou muito intensa (o que é chamado de hiperreatividade) ou reduzida (hiporreatividade). O resultado disso é que as pessoas com a percepção mais intensa têm muita dificuldade com determinadas texturas de alimentos, e só aceitam alguns tipos de alimentos – por exemplo, só comem alimentos macios ou crocantes ou secos – enquanto as que têm a percepção sensorial reduzida só conseguem comer alimentos com gosto muito intenso ou muito picante. 

“É muito comum nessas crianças [com hiporreatividade] lamber sabão, lamber produtos de limpeza que têm gosto muito forte, que trazem ali uma percepção para elas que naquele momento é o que o cérebro delas está precisando em relação à sensorialidade. Então, tem um transtorno sensorial associado. É o que a gente chama de alterações sensoriais, isso está presente no autista. Eles têm maior alteração e com isso eles vão escolhendo determinadas comidas de acordo com essa necessidade sensorial que eles têm ou para fugir de coisas que dão aversão ou para buscar sensações que eles estão precisando”, esclarece a especialista. 

 

Fatores além da questão sensorial

Ainda de acordo com Mayra, além da questão sensorial existem outros fatores associados à seletividade alimentar em pessoas com autismo, como a dificuldade de flexibilidade mental, uma alteração comportamental importante nos quadros do transtorno. “E isso também tem relação com a comida, porque para o mundo do autista, o ideal seria as coisas serem sempre iguais, sempre da mesma maneira, sempre de uma mesma apresentação.”

“A gente vê autistas que têm muito mais facilidade em [consumir] alimentos industrializados do que alimentos naturais, por quê? Porque um saco de biscoito sempre vai ter aquela mesma aparência, aquela mesma crocância, aquele mesmo sabor, enquanto uma banana tem dia que vai estar mais verde, mais marrom, tem diversas variedades de banana, e isso altera diretamente o sabor delas. Todas essas alterações fazem com que o mesmo alimento tenha muitas variações e essas mudanças de previsibilidade são muito difíceis para o autista”, completa. 

Além disso, existem ainda alterações fonoaudiológicas que também podem estar presentes no transtorno do espectro autista. De acordo com Mayra, essas alterações podem ter relação com a questão sensorial, mas também estão associadas a deglutição, mastigação, ato de engolir, etc. Por isso, é necessário o acompanhamento multidisciplinar, incluindo fonoaudiólogo, conforme explicaremos mais à frente. 

Muitas vezes, a família acaba aceitando que a criança só consegue comer determinados alimentos, mantém a restrição e acaba a expondo menos a outras possibilidades de comidas. “O transtorno alimentar estressa tanto a família que ela acaba sem querer reforçando os hábitos do que a criança consegue [comer], e não ampliando o repertório comportamental. Nessa hora a gente sabe que os pais ficam muito angustiados, muito desesperados, e as crianças acabam conseguindo o que elas querem na hora da alimentação, muitas vezes elas conseguem [acesso a dispositivos] eletrônicos, e tudo mais. Então, a gente tem aí alterações que são comportamentais também”, afirma. 

        Veja também: Autismo em crianças em 5 perguntas | Mayra Gaiato

 

Graus e consequências da seletividade alimentar

Existem diferentes graus de seletividade alimentar (ou seja, a seletividade pode ser mais severa ou mais leve), e o que determina isso é a quantidade de prejuízo que a pessoa tem. “Tem crianças, por exemplo, que não conseguem comer absolutamente nada, ou [comem] só coisas que são papinha ou coisas batidas no liquidificador com 8, 9, 10 anos de idade. Isso traz uma série de prejuízos, como perda de dentes e problemas intestinais, porque o corpo foi feito para receber os alimentos de outra maneira naquela idade”, afirma Mayra. 

Segundo Paula Franssinete, nutricionista pediátrica e especialista em seletividade alimentar, no autismo, sem tratamento, a seletividade alimentar provoca um quadro de dificuldade no qual a criança recusa grupos inteiros de alimentos, chegando a consumir dois tipos de alimentos apenas, o que não é suficiente para suprir suas necessidades nutricionais.

“[Isso] pode acarretar carências nutricionais e prejudicar o organismo, pois a ingestão de macro e micronutrientes está relacionada com a ingestão de energia, o sistema imunológico, a neuroproteção, bem como o funcionamento adequado do organismo”, destaca. 

 

Tratamento da seletividade alimentar com equipe multidisciplinar 

O tratamento para a seletividade alimentar deve ser multidisciplinar, podendo envolver profissionais como psicólogo, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional e nutricionista. Isso é importante porque existem questões comportamentais e sensoriais relacionadas ao problema. 

“E nós precisamos ter um médico envolvido nesse tratamento, porque envolve questões de saúde, de vida, a criança precisa muitas vezes fazer tratamentos e a gente precisa cuidar da parte orgânica, para ter certeza sobre a hidratação e sobre a quantidade de vitaminas que ela está recebendo ou não”, esclarece Mayra. 

“A equipe multidisciplinar é essencial para o tratamento, pois dessa forma conseguimos trabalhar diversas demandas que a criança necessita em conjunto, pois apenas profissionais especializados em suas determinadas áreas têm conhecimento e [juntos] podem trazer  melhores resultados e evolução”, completa a nutricionista.

        Veja também: Distúrbios alimentares na infância podem impactar o desenvolvimento ao longo da vida

 

Estratégias para lidar com a seletividade alimentar

Além dos tratamentos específicos, as medidas que buscam ampliar o repertório alimentar de crianças com esse tipo de restrição incluem a exposição a texturas, cheiros, sabores e cores dos alimentos, conforme explica Mayra. “É muito importante que a gente exponha as crianças desde pequenas a alimentos para elas poderem brincar, tocar, cheirar – não necessariamente comer –, descascar, cortar, amassar. Elas precisam ter contato com diversos tipos de alimentos”, afirma a especialista.

O processo para introduzir novos alimentos na rotina de crianças com seletividade alimentar é longo e exige paciência. Não adianta forçá-las, a ideia é criar um contexto e promover uma aproximação de novos alimentos de forma progressiva. 

Paula explica que a introdução pode começar com o novo alimento sendo colocado em um potinho próximo à criança. Caso ela rejeite a proximidade, a dica é colocar o potinho do outro lado da mesa em que ela está comendo, e ir aproximando o alimento dela aos poucos. Essa conduta pode ser mantida por dias, até que haja evolução no processo (como tocar e interagir com o alimento, cheirar, apertar). Só depois dessas etapas é possível aumentar a exposição, colocando o alimento no prato da criança e não mais em um potinho separado. “Neste momento, mantemos o pratinho com divisórias, pois isso acaba trazendo para a criança um conforto visual de divisão e separação, e remanejamos o alimento novo em uma divisória separada, mas no mesmo pratinho”, explica a nutricionista. 

Segundo Mayra, só depois de se aproximar, encostar, pegar, descascar, cheirar, etc. – processo que pode levar semanas – é que se pede para a criança experimentar o alimento.

Confira algumas medidas que podem ajudar nesse processo:

  • Comece aos poucos. O foco inicial não é fazer a criança comer alimentos novos, mas sim ajudá-la a tolerar o alimento, depois interagir com ele. Por isso, a recomendação é começar deixando o alimento próximo dela, apenas; 
  • Para a introdução, escolha um alimento que seja semelhante ao que a criança já tolera;
  • Evite quantidades exageradas ou estimular o contato com vários alimentos novos ao mesmo tempo (isso vale para a introdução, mas dentro do que ela já consegue comer, é importante oferecer opções variadas sempre que possível); 
  • Mesmo sendo uma situação desafiadora, busque manter a calma e esperar o tempo de aceitação da criança em relação aos novos alimentos;
  • De forma alguma force a criança a comer algo sem ela saber do que se trata ou aplique punições por ela não comer; 
  • Evite frases como “se você provar, te dou um presente” ou “como você não gosta se nunca provou?”;
  • Não substitua as refeições por lanches, pois a criança funciona através de rotina e acostumá-la com esse tipo de substituição vai reforçar ainda mais a seletividade. 

 

Seletividade alimentar não é “frescura”

É muito importante validar os sentimentos e sensações das crianças com seletividade alimentar. Mayra comenta que muitas vezes elas só conseguem aceitar dois ou três alimentos porque o restante o cérebro rejeita.

“Não é uma coisa que a criança está fazendo por gosto ou mimo. Muitas vezes ela consegue comer só batata frita, macarrão, franguinho empanado e aí os pais pensam que é uma coisa de frescura da criança. Mas é o cérebro dela que não aceita outra coisa, elas até vomitam se tentar, se elas forem forçadas a comer outras coisas.”

Nesse tipo de situação, é muito importante tentar se colocar no lugar da criança. “Imagina para você como seria você receber na boca uma coisa que tem uma textura ou te traz uma sensação extremamente aversiva. Por exemplo, se tivesse um bolo de cabelo em cada garfada que você desse no seu almoço, você conseguiria comer? Se isso te trouxesse essa sensação, você conseguiria engolir? Não conseguiria”, completa. 

Por isso, é preciso buscar informações e entender o que acontece com a criança, pois só assim é possível buscar a ajuda necessária e lidar melhor com essa questão. 

        Veja também: Ensinando crianças com autismo | Nuno Lobo Antunes

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