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Infectologia

Esporotricose: causas, sintomas e tratamentos da doença que afeta humanos e gatos

desenho de fungo que causa a esporotricose
Publicado em 27/09/2023
Revisado em 20/09/2024

Provocada por um fungo do gênero Sporothrix, a esporotricose se espalhou pelo Brasil nos últimos anos.

 

Era final da década de 1990. Enquanto os amantes do futebol assistiam com olhos marejados à seleção da França ganhar do Brasil por 3 a 0 na final da Copa do Mundo, uma epidemia silenciosa começava a emergir no Rio de Janeiro e nos municípios da região metropolitana da cidade: a esporotricose. 

A doença, causada por um fungo do gênero Sporothrix, é uma micose caracterizada pela presença de lesões na pele. Essas feridas podem se espalhar para outras regiões do corpo, afetando mucosas, linfonodos e órgãos, dependendo da quantidade do microrganismo e da imunidade do hospedeiro.

“As manchas podem durar meses e passam de um lugar para o outro. A pessoa tem uma lesão no dedo, depois ela vai para o dorso da mão, depois para o antebraço. Essa é a manifestação mais comum”, explicou o infectologista Marcelo Abreu Ducroquet, médico do Hospital de Clínicas (HC) da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor da Universidade Positivo.

 

Transmissão da esporotricose

Os fungos do gênero Sporothrix foram descobertos no final do século 19. Até a década de 1990, as espécies normalmente eram encontradas no solo e em plantas. Além disso, não costumavam afetar tanto os seres humanos. Quando ocorria uma infecção, ela estava associada ao contato direto do indivíduo com um vegetal contaminado pelo fungo. Por isso, no passado a esporotricose era conhecida como “doença do jardineiro” ou “doença da roseira” 

Ao longo dos últimos anos, no entanto, os pesquisadores descobriram que dentro do gênero Sporothrix há espécies mais virulentas para animais, como o Sporothrix brasiliensis. Descoberto pelos cientistas em 2007, esse fungo “abrasileirado” tem algumas diferenças em relação a seus parentes próximos, como parede celular (estrutura celular) mais espessa, quantidade diferenciada de antígenos e microfibrilas (fibras finas) de parede mais longas.

“Essas características únicas contribuem para o aumento da resistência aos medicamentos e da virulência”, escreveram os autores de um estudo publicado no “Journal of Clinical Microbiology”.

Ainda segundo os pesquisadores, os fungos do genêro Sporothrix têm a capacidade de mudar de sua forma de hifa (estrutura com formato filamentoso) em temperaturas ambientes de 25ºC para um formato de levedura parasita em temperaturas acima de 37°C. “Acredita-se que esse dimorfismo [duas formas diferentes] térmico explique a patogenicidade das espécies de Sporothrix em hospedeiros mamíferos”, escreveram.

De acordo com uma nota técnica divulgada pelo Ministério da Saúde no primeiro semestre de 2023, cerca de 90% dos casos de esporotricose em humanos, gatos e cachorros têm relação com a espécie típica do Brasil. E os felinos são os mais afetados, bem como os principais hospedeiros e vetores do fungo para os seres humanos. 

Diversos estudos mostram que, ao serem contaminados, os gatos ficam com uma carga fúngica elevada quando comparada a de outros animais vetores – como cachorros, ratos, tatus, peixe e insetos -, o que facilita a transmissão. Além disso, aspectos comportamentais dos bichanos, como brincar e disputar territórios com outros gatos e escavar a terra para encobrir as fezes, facilitam a contaminação.

“A transmissão [dos gatos para os seres humanos] ocorre principalmente por meio de arranhaduras, mordeduras ou contato com lesões cutâneas, mas há pessoas com esporotricose que não tocaram diretamente no animal, o que indica que o fungo pode ter vindo pelo espirro. O contato com o gato não explica 100% dos casos, mas a gente sabe que ele está muito envolvido. Ainda estamos tentando entender todas as formas de transmissão”, disse o dr. Ducroquet.

De acordo com cartilhas, estudos e materiais educativos, alguns donos de pets acabam abandonando seus companheiros felinos por causa da doença. A prática, além de ser cruel e desumana com o animal, é um problema de saúde pública, pois aumenta ainda mais a dispersão do fungo. 

“Deve-se tomar muito cuidado para não estimular o abandono”, orienta o Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado de Minas Gerais. “A ausência de tratamento traz grande sofrimento ao animal e torna-se um fator importante na dispersão ambiental da doença e no risco de infecção de animais sadios e de humanos.”

 

Sintomas da esporotricose

Os principais sinais da esporotricose são as feridas na pele. No entanto, segundo a médica dermatologista Kátia Sheylla Malta Purim, doutora em medicina pela UFPR, a apresentação clínica e o curso da doença vão depender da quantidade e da profundidade da inoculação de fungos, bem como da virulência do patógeno.

A dra. Kátia, que também é professora de medicina na Universidade Positivo, falou que podem ocorrer lesões na pele, nos linfonodos, nas mucosas (ocular, nasal e outras), nas articulações e nos ossos, além de lesões sistêmicas (pulmonares, neurológicas, imunorreativas e mistas).

“Os sintomas podem ser dor, calor, prurido e limitação funcional, dependendo da região corporal acometida. Já os sinais variam de lesões verrucosas fixas ou feridas papulosas (elevadas) e/ou nodulares, que fistulizam ou ulceram, no trajeto linfático regional, e drenam material purulento”, falou.

Pessoas imunossuprimidas podem ser mais afetadas pela esporotricose, segundo o dr, Ducroquet, mas é algo raro. “Isso acontece porque uma parte do que mantém o fungo restrito à pele é a imunidade. Portanto, se a pessoa tiver algum problema imunológico sério, ele consegue escapar da barreira e ir para outros órgãos.” 

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Tratamentos para esporotricose

O tratamento para a esporotricose humana depende da gravidade no caso. No geral, consiste no uso de antifúngicos, e pode durar de três meses a um ano, segundo o Ministério da Saúde. De acordo com o dr. Ducroquet, o medicamento deve ser tomado por pelo menos até dois meses depois de as lesões terem desaparecido. “Existe cura, mas a pessoa pode pegar de novo em outra ocasião. Por isso, é importante se prevenir.”

A dra. Kátia falou que, além dos antifúngicos, terapias auxiliares também podem ser necessárias em alguns casos. Alguns exemplos são termoterapia (tratamento por intermédio do calor), crioterapia (destruição das lesões com nitrogênio líquido) e eletrocirurgia (uso de corrente elétrica no tecido).

“É importante que o paciente não interrompa o tratamento antes do período estipulado, apesar da cicatrização das lesões. Em geral, as lesões cicatrizam deixando cicatrizes fibróticas que podem alterar a função do órgão dependendo do local da infecção”, disse ela.

 

Esporotricose em gatos

Os felinos afetados pelo fungo apresentam feridas em diferentes partes do corpo, principalmente na região nasal, e linfonodos inchados. Lesões na mucosa nasal e sintomas respiratórios, em especial espirros, também são comuns. Alguns gatos também têm anemia e alterações no número de glóbulos brancos.

Assim como no caso dos seres humanos, o tratamento também é feito com antifúngicos e deve ser acompanhado por especialistas. “A esporotricose tem tratamento e pode ser curada. Mas, para isso, é muito importante que o animal seja acompanhado por um veterinário durante todo o tratamento. Quanto antes o animal for diagnosticado e tratado, menor é o risco de transmissão para outros animais e pessoas”, disse a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em uma sessão de perguntas e respostas sobre a doença, atualizada no final de 2022. 

Segundo pesquisas, a esporotricose ocorre com mais frequência em gatos adultos machos, mestiços, com acesso à rua e não castrados – a castração, por causa disso, é uma das formas de prevenção. 

 

Prevenção da esporotricose

A prevenção, segundo os especialistas e as pesquisas consultados para esta reportagem,, passa por um conjunto de medidas individuais e coletivas. São elas:

Cuidado com os animais: Como o gato tem sido o principal transmissor para outros gatos, cachorros e humanos, é importante mantê-los sob acompanhamento veterinário periódico e, em caso de feridas, buscar orientação especializada.

Animais em tratamento: Caso o gato esteja realizando tratamento, é importante que ele fique isolado de outros animais para evitar o contágio. Uma das maneiras é colocar grades de proteção na janela para evitar sua ida para a rua. 

Manuseio: Visto que o gato tem alta concentração do fungo, é importante evitar tocar o animal durante o tratamento, já que o felino pode transmitir o Sporothrix por arranhadura, mordedura, secreções e espirros (se houver lesão também nas narinas).

Solo: Como algumas espécies de fungos também podem estar em solo e plantas, o ideal é usar luvas, roupas e calçados adequados ao trabalhar no jardim, para evitar contato com o solo ou plantas que possam estar infectadas.

Castração: A castração dos gatos, segundo estudos, reduz o interesse dos animais por sair de casa, ir atrás de brigas e lutar por territórios, o que ajuda a impedir a possível disseminação do fungo. 

Cremação: Caso o pet morra por causa do microrganismo, é recomendado cremá-lo, em vez de enterrá-lo, pois o fungo sobrevive na natureza.

 

Distribuição geográfica

O crescimento da esporotricose foi percebido pela Fiocruz em 1998 no Rio de Janeiro. A partir dali, o fungo começou a se espalhar para outras regiões do Brasil. De acordo com o Ministério da Saúde e outros estudos, todos os estados brasileiros registraram a doença nos últimos 20 anos, tanto em humanos como em animais, com exceção de Roraima.  

Entre 1998 e 2004, foram diagnosticados mais de 750 casos em seres humanos e 1.500 em gatos. Em 2011, houve 4.100 pessoas e 3.800 gatos com a doença. Não há dados oficiais nacionais, pois a esporotricose não está na lista de notificação compulsória. Por outro lado, alguns estados e municípios, como Paraná, Mato Grosso do Sul e a cidade de São Paulo, começaram a monitorar os casos.

Do Brasil, a infecção se espalhou para outros países, como Paraguai, Argentina, Bolívia, Panamá e Colômbia. No início de 2023, pesquisadores publicaram um estudo relatando os três primeiros casos de esporotricose na Inglaterra, transmitida por gatos infectados com Sporothrix brasiliensis.

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