O Brasil é um país onde não há controle efetivo sobre o uso e abuso do álcool, uma droga socialmente aceita e cujo consumo, em muitos casos, é até incentivado apesar dos desacertos e violência que pode provocar.
De todas as drogas psicoativas, o álcool é seguramente a que tem maior número de usuários no mundo, mas o padrão de consumo varia muito de uma pessoa para outra. Há aquelas que se gabam de sua resistência, pois bebem muito e raramente se embriagam. Outras, que também consomem álcool em excesso, enfrentam enormes dificuldades provocadas por seus efeitos deletérios. Há, ainda, as que bebem com moderação no ambiente familiar, numa reunião com amigos, em datas festivas, e as radicais que não provam sequer uma gota de qualquer bebida que contenha álcool, uma substância sempre tóxica independentemente da quantidade ingerida.
Essa diferença de comportamento e de padrão de consumo confunde um pouco, especialmente porque em doses bem baixas, o álcool pode ter alguns efeitos benéficos. Então, cabe a pergunta: quanto uma pessoa pode beber sem maior preocupação e a partir de que dosagem diária pode desenvolver dependência?
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Os limites do baixo risco são claros: para o sexo masculino, dois copos de vinho, ou uma latinha de cerveja ou uma dose de 50ml de destilados; para as mulheres, esses valores não valem, porque o metabolismo do álcool nelas é diferente. Quem bebe mais do que isso, mesmo que seja só nos fins de semana, pode desenvolver dependência da droga.
O Brasil é um país onde não há controle efetivo sobre o uso e abuso do álcool, uma droga socialmente aceita e cujo consumo, em muitos casos, é até incentivado apesar dos desacertos e violência que pode provocar.
SUBSTÂNCIA TÓXICA
Drauzio – Em qualquer quantidade, o álcool é uma droga sempre perniciosa ao organismo?
Ronaldo Laranjeira – Há um padrão de consumo que pode ser considerado de baixo risco, pouco tóxico e, eventualmente, até benéfico à saúde em algumas situações. É o caso do adulto sem nenhuma doença, que bebe até duas doses de vinho por dia, ou dois copos de cerveja, ou uma dose de destilado. Na gravidez, porém, uma dose diária de álcool é suficiente para intoxicar o feto.
Nunca se pode perder a vista, porém, que o álcool é uma substância tóxica, qualquer que seja a dose e que, quanto maior for o volume ingerido, mais tóxico ele é. Se a pessoa beber três, quatro doses de vinho num dia, estará expondo seu organismo a um nível de toxicidade que mudará seu padrão de sono e aumentará o risco de hipertensão, por exemplo. Número maior de doses diárias provavelmente vai provocar dependência e outros problemas como doença cardiovascular, acidentes pessoais, etc.
PADRÃO DE CONSUMO
Drauzio – Houve um tempo em que a Medicina considerava alcoólatras aqueles que bebiam todos os dias, porque o álcool passava a fazer parte do seu metabolismo. Hoje, não se pensa mais assim. Qual é o conceito atual de alcoolismo?
Ronaldo Laranjeira – É preciso estabelecer a distinção entre três padrões diferentes do beber. O uso do álcool é considerado de baixo risco, se a pessoa beber um ou dois copos de bebida alcoólica por dia. Se beber mais, estará fazendo uso nocivo do álcool. Portanto, quem diz “Não sou alcoólatra. Só bebo à noite, em casa, uns três uísques”, enquadra-se no segundo padrão de consumo. Esse usuário pode não ser dependente, mas está sujeito aos efeitos negativos do álcool e aumentando o risco de hipertensão, câncer, doença cardiovascular etc., sobretudo porque não se pode ignorar que, em geral, as doses tomadas em casa são generosas, são doses duplas.
O terceiro padrão é o da dependência, que tem duas características marcantes: beber grandes volumes regularmente e ser tolerante ao álcool. Quando não bebe, o dependente entra em crise de abstinência. Nos casos extremos, acorda de manhã com tremor, suando muito e precisa beber para aliviar esses sintomas. Esse é o espectro mais nocivo da doença chamada popularmente de alcoolismo.
Portanto, dependência é um estado de necessidade fisiológica que ocorre em graduações mais ou menos elevadas. À semelhança da dependência criada pela nicotina, os dependentes de álcool sentem necessidade de beber depois de horas ou dias de abstinência. Quem bebe com regularidade e, na hora do almoço ou no fim da tarde, sente falta de bebida alcoólica, já desenvolveu certo nível de dependência.
Drauzio – Há aspectos distintos nesses dois casos. O dependente de nicotina não passa duas horas sem entrar em crise de abstinência. Nenhum deles consegue ficar a semana inteira longe do cigarro e, no final de semana, exagerar fumando três maços inteiros. Já, em relação ao álcool, é comum encontrar bebedores que passam a semana em completa abstinência e exorbitam nos finais de semana.
Ronaldo Laranjeira – Mesmo bebendo só no fim de semana, a pessoa pode ser dependente de álcool. Façamos uma analogia com os usuários de cocaína. Às vezes, o dependente típico de cocaína fica dias longe da droga, recuperando-se talvez, mas depois volta a usá-la em grandes quantidades por dias consecutivos.
No caso específico do álcool, é dependente quem bebe todo dia, e tanto maior será seu grau de dependência quanto mais cedo sentir necessidade de beber novamente. Pode ser também um sintoma de dependência o fato de os bebedores de final de semana conseguirem ingerir grandes volumes de álcool nesses dias, uma vez que, para suportar a agressão de meia garrafa de uísque, o cérebro precisa desenvolver uma série de modificações típicas da dependência.
É interessante observar que existe grande diversidade de padrões de consumo do álcool. No caso da nicotina, pesquisas mostram que mais de 90% dos dependentes fumam mais ou menos um maço de cigarros por dia e não ficam duas horas sem acender outro cigarro. O álcool é uma droga mais plástica, mais moldada pelo ambiente, mais flexível. Às vezes, pessoas portadoras de dependência muito grave chegam a passar o dia todo trabalhando sem ter crise de abstinência, mas compensam a necessidade bebendo um litro de uísque à noite.
Drauzio – É alcoólatra quem passa o fim de semana embriagado?
Ronaldo Laranjeira – É alcoólatra, porque manifesta um padrão de consumo próprio da dependência.
Drauzio – Como a pessoa consegue levantar na manhã seguinte para trabalhar depois de ter bebido uma garrafa de uísque na noite anterior?
Ronaldo Laranjeira – Essas pessoas desenvolvem um processo de adaptação. Não é que levantem felizes no dia seguinte. Apesar dos sintomas de ressaca provocados pela toxicidade do álcool, a convicção de que precisam trabalhar é tão grande, que conseguem manter, às vezes por um período bastante longo, as aparências e as funções sociais. No entanto, se pudessem, suspenderiam imediatamente as atividades e iriam beber.
FATORES DE RISCO
Drauzio – Muitos adolescentes vão a festas, bebem, mas têm controle sobre o uso do álcool. Outros sempre exageram na bebida. Existe um tipo de personalidade de risco para o alcoolismo?
Ronaldo Laranjeira – A combinação de características biológicas, genéticas, com valores familiares e ambientais é que vai determinar o padrão de consumo de álcool de uma pessoa.
Alguns japoneses, por exemplo, se sentem mal quando bebem. A falta de uma enzima no fígado faz com que acumulem em demasia uma substância tóxica do álcool, um metabólito chamado aldeído acético. O curioso é que os portadores desse perfil enzimático estão geneticamente protegidos contra o alcoolismo.
Entretanto, há pessoas que se sentem muito bem quando bebem. O álcool exerce sobre elas um impacto ligado ao prazer. Por isso, bebem quando estão ansiosas; bebem e se sentem bem. Essas estarão mais propensas ao uso descontrolado do álcool, especialmente se a cultura da família valorizar que ir a bares e beber muito é uma forma de afirmar a identidade masculina, por exemplo.
Drauzio – Não há mais dúvida de que fatores genéticos estão envolvidos com o consumo de álcool. Estudos com gêmeos univitelinos, portanto idênticos do ponto de vista genético, mas criados sem nenhum contato, mostram que, se um deles for alcoólatra, o risco de o outro também ser aumenta muito.
Ronaldo Laranjeira – Não só os estudos com gêmeos provam isso. Os realizados em pessoas da mesma família indicam que é possível identificar o perfil genético que predispõe o indivíduo a usufruir os efeitos mais agradáveis do álcool e a manter um padrão típico de consumo.
Na minha opinião, porém, a força dos fatores ambientais é mais decisiva para o desenvolvimento da dependência do que a genética. Veja um exemplo: na Arábia Saudita, a pessoa pode até ter o gene que facilita o consumo de álcool. Mas, como as condições ambientais não favorecem seu uso, o número de alcoólatras é bem pequeno.
No nosso meio, acontece exatamente o contrário. Vivemos uma situação de completo descontrole. Não temos tradição cultural para coibir o uso do álcool. Há mais de um milhão de bares espalhados pelo Brasil, a bebida alcoólica é muito barata e a propaganda corre solta, bombardeando todos nós a todo momento.
Nossa equipe terminou uma pesquisa realizada com motoristas, escolhidos aleatoriamente, nas noites de sexta-feira e sábado em Diadema, Santos, Belo Horizonte e Vitória no Espírito Santo sobre a questão básica do beber e dirigir. Por incrível que pareça, em média, 23% dos entrevistados nessas cidades estavam alcoolizados. Nunca vi uma taxa tão grande quanto essa no mundo inteiro.
Drauzio – Estavam alcoolizados a ponto de terem os reflexos prejudicados?
Ronaldo Laranjeira – Sim, a maioria estava acima do limite considerado seguro pelo Código Brasileiro de Trânsito.
Drauzio – Que já é muito complacente…
Ronaldo Laranjeira – Muito tolerante. Na Alemanha e no Japão, por exemplo, a tolerância é zero. No Brasil, o custo social do álcool é alto por causa desse ambiente tolerante com seu consumo, por causa da frouxidão nos controles. Quanto mais desenvolvida a sociedade, maior é o controle que exerce sobre o consumo de álcool. Na Suécia, Estados Unidos, Canadá, ele é um produto sujeito a uma série de restrições e a população está mais informada sobre suas características e efeitos do que a nossa.
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O álcool é uma substância tóxica que, absorvida pelo tubo digestivo, causa impacto no cérebro. Isso explica boa parte dos acidentes de trânsito e a maioria dos casos de violência doméstica. No Brasil, não tenha dúvida, a frouxidão no controle é responsável pelo número enorme de crianças expostas regularmente a atos violentos por causa do abuso do álcool.
E mais: enquanto não exercermos esses controles e a sociedade não se proteger contra os prejuízos que o álcool pode provocar, a indústria interessada na produção e venda de bebidas continuará ditando a política do álcool no nosso País.
ESTATÍSTICAS
Drauzio – Você mencionou que o uso moderado do álcool pode ser benéfico. Quanto uma pessoa pode beber com segurança?
Ronaldo Laranjeira – Mais ou menos 30% da população consomem 70% de todo o álcool produzido no Brasil. Isso acontece também nos Estados Unidos. Portanto, um número significativo de pessoas bebe muito e são raras as que conseguem adotar um padrão saudável e moderado de consumo, embora ele possa ser estimulado.
Drauzio – Essa estatística tem um lado interessante: Se 30% da população bebem 70% do volume de álcool produzido, 70% das pessoas consomem apenas 30% do álcool.
Ronaldo Laranjeira – Também é interessante o fato de que 50% das mulheres brasileiras não bebem, o que é uma taxa alta de abstinência, especialmente se comparada com a dos países europeus e da Argentina, onde só 20% das mulheres não bebem.
Nossa pesquisa também mostrou que 30% da população masculina são constituídos por não-bebedores ou bebedores irregulares. Então, não seria exagero dizer que quase metade dos brasileiros não bebe, pelo menos com regularidade.
Por isso, não vejo sentido em fazer uma cruzada contra o álcool, pois a maioria das pessoas não bebe. A orientação para quem quer beber, mantendo a margem de segurança para não pagar o preço do risco biológico do álcool, é que o consumo deve restringir-se a não mais do que um, dois copos de cerveja ou vinho, ou uma dose de destilado. Infelizmente, muitos gostam de beber, e bebem, bem mais do que isso.
Drauzio – Existe um estudo – talvez o mais completo sobre os efeitos do álcool – feito com homens americanos entre 45 e 70 anos, acompanhados durante 12 anos, que registrou os episódios de doenças cardiovasculares (ataques cardíacos, derrames cerebrais) que eles apresentaram. A conclusão foi que houve uma redução de 30% nos ataques cardíacos naqueles que tomavam até duas taças de vinho, duas latinhas de cerveja ou duas doses de 50mL de destilado (50mL equivalem ao conteúdo de um copinho de plástico de café). Isso coloca os médicos numa posição delicada ao falar dos prejuízos do álcool.
Ronaldo Laranjeira – Você salientou que a pesquisa foi feita só com homens. Embora as mulheres que bebem um copo de vinho por dia também usufruam dessa proteção cardíaca, se tomarem dois copos, terão aumentada em 20% a probabilidade de desenvolver câncer de mama. Infelizmente, a mulher é mais suscetível aos danos biológicos do álcool. Por isso, quando se fala nos efeitos benéficos do álcool, é preciso contextualizar muito bem o objeto da discussão.
Homem saudável com mais de 30 anos, sem predisposição para o alcoolismo, pode tirar proveito desse efeito protetor. No entanto, há evidências de que mesmo doses baixas aumentam o risco de a pessoa, que já teve um infarto, apresentar outros eventos cardíacos.
Diante dessas constatações, eu recomendaria o padrão de consumo de baixo risco para os homens sem nenhuma doença nem risco de ultrapassar os limites aceitáveis (uma ou duas doses de vinho, de cerveja, ou de destilado), o que não é fácil.
Drauzio – O estudo americano mostrou que não houve diferença no grau de proteção proporcionado pelo vinho tinto, vinho branco, cerveja ou destilados. Parece que é o álcool mesmo que oferece esse fator protetor.
Ronaldo Laranjeira – Parece que essa conclusão se encaixa no que se entendia por paradoxo francês. Na França, as pessoas bebem mais e, apesar da dieta rica em gorduras, têm menos problemas cardiovasculares. No começo se atribuiu o achado à uva. Dentro dela ou na sua casca haveria substâncias antioxidantes. Depois, essa teoria caiu por terra. Hoje se sabe que provavelmente o álcool possui algum efeito hormonal, químico e, em doses baixas, provoca um efeito protetor. No entanto, estamos longe de chegar ao mecanismo pelo qual isso acontece.