O vírus da gripe H5N1 pode ser transmitido das aves para o homem, mas é difícil ser transmitido entre humanos. Entenda nesta entrevista sobre gripe aviária.
Em 1998, uma epidemia de gripe alastrou-se entre os frangos de Hong Kong e um homem morreu porque foi infectado pelo vírus transmissor da doença. Os chineses de Hong Kong imediatamente mataram 1,5 milhão de frangos, praticamente todos que existiam na cidade, para impedir que o vírus da gripe aviária se disseminasse. Apesar dessas medidas radicais, em 2003, surgiram novos casos na Coreia do Sul que também foi obrigada a sacrificar milhões de frangos. Mesmo assim, a doença acometeu alguns criadores de frango.
Mais tarde, aves migratórias que utilizam um lago da China para a reprodução apareceram mortas. Estudando o que lhes poderia ter acontecido, identificaram que a causa da infecção era o vírus H5N1, cuja cepa era a mesma encontrada nos frangos do sudeste asiático e nas pessoas que haviam sido infectadas no contato direto com essas aves.
Veja também: Artigo do dr. Drauzio sobre a gripe aviária
Atualmente, essa cepa de vírus já foi localizada em diversos países, onde a doença é endêmica. Embora tenham ocorrido menos de 200 casos em seres humanos, o que mais chama a atenção é a possibilidade de o vírus ser transmitido do frango para o homem, pois a taxa de letalidade é muito alta. Mais de 50% das pessoas que pegaram a gripe aviária, faleceram. Por isso, a preocupação é evitar que o H5N1 se espalhe pelo mundo levado pelas correntes de aves migratórias e adquira a capacidade de transmitir-se diretamente de uma pessoa para outra, o que poderia provocar uma pandemia da gripe aviária.
ESTRATÉGIA DE TRASMISSÃO
Drauzio – Qual é a estratégia de transmissão do vírus da gripe?
Esper Kallás –Vários tipos de vírus são causadores de gripe nas aves. Eventualmente, eles podem ser transmitidos para outros animais, por exemplo, para o porco. Nessas passagens, sofrem mutações em seus genes que podem sofrer adaptações até serem capazes de infectar o ser humano. Antes de serem transmitidos de pessoa para pessoa, precisam sofrer essas adaptações. Felizmente, a cada etapa do processo, a tendência é ir perdendo a capacidade de causar uma doença grave, letal. Assim, provocam a gripe comum que ocorre todos os anos, preferencialmente no fim do inverno, começo da primavera.
Esse é o caminho natural que os vírus da gripe percorrem até infectar os humanos. Por isso, pode-se dizer que são acidentais os casos de gripe aviária que estão ocorrendo na Ásia, fruto da transmissão do vírus da ave para o ser humano, uma vez que a capacidade de o vírus transmitir-se diretamente para os humanos é muito pequena.
Drauzio – Uma das principais características do vírus da gripe é sua capacidade de sofrer mutações, isto é, de alterar, de recombinar seus genes, o que lhe confere maior versatilidade. Por isso, o efeito da vacina contra a gripe dura apenas um ano.Você acha que, numa dessas mutações, é grande a probabilidade de o vírus da gripe aviária adquirir a capacidade de transmitir-se de uma pessoa para outra?
Esper Kallás – A possibilidade é muito pequena, pois o vírus leva muito tempo para sofrer mutações na ave que o tornem capaz de ser transmitido diretamente para os seres humanos.
Agora, respeitando o caminho que passa pelos outros animais, essa transmissão acontece todos os anos, em virtude das pequenas modificações no genoma do vírus que ocorrem constantemente. É essa a razão pela qual novos vírus causadores da gripe são isolados todos os anos no mundo. Embora geralmente sejam parecidos com os vírus das estações anteriores, exigem a atualização anual da vacina contra gripe.
Drauzio – Como é produzida a vacina contra a gripe?
Esper Kallás – Depois de terem sido isolados na comunidade, os vírus são cultivados em embriões de galinha e, a seguir, inativados. A vacina contra a gripe é produzida com vírus mortos.
Drauzio – Qual é a eficácia da vacina contra gripe produzida atualmente?
Esper Kallás – Essa vacina não induz uma resposta imunológica muito intensa e permanente no organismo das pessoas. Por isso, doses de reforço devem ser administradas todos os anos.
TRANSMISSÃO DO H5N1
Drauzio – Uma das principais características do vírus H5N1 é a alta taxa de letalidade. De certa forma, essa característica representa alguma segurança de que a epidemia não vai espalhar-se pelo mundo, porque as pessoas morrem.
Esper Kallás – Como o vírus H5N1 está adaptado para infectar as aves, não deveria ter condições de infectar seres humanos sem passar por intermediários. Quando isso acontece, apresenta um tipo de comportamento que o sistema imunológico das pessoas não está preparado para enfrentar. Se, por um lado, a capacidade de driblar o sistema de defesa aumenta o risco de o hospedeiro desenvolver uma doença grave e letal, por outro, diminui a força de transmissão do vírus. Vírus mais fraco representa risco menor de morte, mas possibilidade maior de transmissão entre as pessoas.
No caso da gripe aviária, o H5N1 causa uma doença de curta duração, e a grande maioria das pessoas que foram infectadas acidentalmente morreu, o que torna a hipótese de transmissão entre humanos praticamente nula.
Guardadas as devidas proporções, isso acontece com o ebola, um vírus altamente letal que mata 82% das pessoas infectadas. Por que o ebola não provoca uma epidemia no mundo? Porque causa uma doença muito grave, as pessoas morrem e ele se esgota rapidamente.
Drauzio – Segundo as estatísticas, se é que se pode confiar nas estatísticas do começo do século passado, na gripe espanhola a taxa de mortalidade foi de 2%, 3%. Embora a porcentagem pareça baixa, eram tantos os mortos que as famílias não conseguiam enterrá-los e colocavam os corpos nas calçadas para serem recolhidos.
Esper Kallás – O que justifica essa porcentagem mais baixa é o fato de a gripe espanhola ter acometido milhões e milhões de pessoas no começo do século 20. É preciso lembrar também que, naquela época, não havia antibióticos e que as infecções bacterianas eram a principal causa de complicações decorrentes da gripe. A pessoa acabava morrendo não propriamente porque tinha pegado a gripe, mas por causa de uma pneumonia, por exemplo.
Essa situação não se repetiria hoje, porque podemos contar com antibióticos de eficácia comprovada para o tratamento das doenças causadas por bactérias.
RISCO DE EPIDEMIA
Drauzio – Embora a cepa H5N1 possa infectar outros animais (leopardos, porcos, etc.), infecta basicamente frangos. No entanto, algumas pessoas que tiveram contato direto com essas aves também foram infectadas e morreram. Isso leva a admitir a possibilidade teórica de transmissão desse vírus para os seres humanos, desde que ele sofra algumas mutações. Vem daí o medo de que a gripe aviária possa espalhar-se pelo mundo. Existem medidas preventivas que ajudariam a conter essa epidemia, caso ela acontecesse?
Esper Kallás – A Organização Mundial de Saúde tem essa preocupação porque se baseia nos relatos confiáveis que datam do começo do século 20 a respeito da gripe espanhola.
Historicamente, as grandes epidemias de gripe ocorrem em ciclos. O mais curto foi de sete anos e o mais longo, de 40 anos.
Pois bem, como a última epidemia de gripe ocorreu há quase 40 anos, o temor é que tenha chegado o momento de uma nova doença espalhar-se pelo mundo.
Drauzio – A gripe espanhola é de 1918; a gripe asiática, de 1957 e a de Hong Kong, de 1968. Parecem datas absolutamente aleatórias…
Esper Kallás – Isso mostra a impossibilidade de fazer previsões baseadas no tempo. Portanto, é preciso estabelecer um sistema de vigilância permanente, colhendo amostras dos vírus de gripe que estão circulando entre as pessoas de diversos locais do mundo. É também fundamental exercer vigilância sobre os vírus que estão infectando as aves, não só como forma de garantir a saúde publica, mas para evitar revezes econômicos como os que estão enfrentando os produtores de carne de ave para comercialização.
Além disso, a vigilância constante funciona como estratégia para conseguir investimentos que permitam aprimorar os métodos de vacinação contra a gripe. A vacina que temos hoje, embora ofereça proteção em 86% dos casos da gripe que circula entre nós, está longe de ser a vacina ideal, aquela que daria imunidade para todos os tipos de gripe. Nesse sentido, outro ponto a destacar é a importância do desenvolvimento de medicação eficaz para o tratamento da gripe, o que poderia ajudar na eventualidade de haver uma epidemia.
Todas essas medidas estão concentradas no âmbito dos órgãos de saúde publica e nas estâncias da pesquisa. No que se refere à população em geral, neste momento, o melhor é levar vida normal, porque não há o que se possa fazer para alterar o curso da gripe aviária, uma doença por enquanto endêmica apenas nas aves do sudeste asiático.
Drauzio – Como deve ser feita a vigilância epidemiológica na gripe aviária?
Esper Kallás – Os casos devem ser notificados a fim de que sejam coletadas amostras do vírus causador da gripe para identificação. Se por acaso for detectado que a doença foi provocada nas aves pelo H5N1, é preciso averiguar se ele está infectando também as pessoas que tiveram contato com as aves doentes.
MEDICAMENTOS
Drauzio – Alguns medicamentos têm ação contra a gripe, ação discreta, diga-se de passagem, preventiva e terapêutica. Em alguns casos, tomar o remédio diminui o risco de contrair a doença. Em outros, alivia os sintomas e encurta o número de dias de duração da enfermidade. Os estoques mundiais desses medicamentos são pequenos e parece não haver condição de produzi-los em larga escala para conter uma pandemia de gripe aviária, caso ela ocorresse agora no segundo semestre de 2005. Você acha que se justifica uma corrida às farmácias para comprar esses medicamentos?
Esper Kallás – Minha impressão é que o efeito desses medicamentos pode ser muito limitado neste momento. Ninguém tem certeza de que eles podem ser úteis contra o vírus H5N1 da gripe aviária, porque ainda não foram testados suficientemente em seres humanos. O que os epidemiologistas e virulogistas sugerem é que valeria mais a pena desenvolver uma vacina contra esse vírus mesmo antes de ele circular entre os humanos e manter estoques que seriam utilizados em situações em que o bloqueio se fizesse necessário.
Drauzio – Existem situações em que esse tipo de medicação deva ser indicado?
Esper Kallás – O uso dessa medicação ainda tem lugar quando se quer circunscrever um foco de gripe. Vamos supor que o H5N1 esteja se espalhando pelo mundo levado pelas aves e, num determinado momento, tenham sido registrados casos de transmissão inter-humana numa determinada vila do Vietnã, por exemplo. Nesse caso, toda a população local deve receber o remédio a fim de abortar a transmissão do vírus.
Embora possível, essa é uma medida muito difícil de ser implantada em tempo hábil por dois motivos: a transmissão do vírus ocorre rapidamente e a movimentação das pessoas é intensa no mundo de hoje. Além disso, ainda não se tem certeza de que o efeito da medicação para obter o bloqueio e a capacidade de reação imediata para impedir que o foco circunscrito se espalhe sejam suficientes nessas ocasiões.
Drauzio – No caso específico da gripe aviária, a tendência é os países esconderem os casos de gripe por causa das implicações comerciais. Atualmente, a comunidade científica se queixa da China, que não permite acesso aos dados num momento em que conter a transmissão entre os frangos é medida essencial para evitar que a epidemia atinja os humanos.
Esper Kallás – Nesse aspecto, a China já abriu um precedente que preocupa. Quando a pneumonia asiática, também conhecida como pneumonia atípica ou SARS (Severe Acute Respiratory Syndrome ou Síndrome Respiratória Aguda), apareceu na província de Guangdong no sul do país, as autoridades de saúde pública mundial só foram informadas depois que haviam morrido centenas de pessoas. Por isso, a notícia de que a gripe aviária estava acometendo os frangos naquele país e de que algumas pessoas tinham contraído a doença, despertou o temor da existência de uma epidemia. Na verdade, o vírus causador da pneumonia asiática (da família dos Coronavírus) é diferente do H5N1 e acabou sendo circunscrito em parte pelas ações de bloqueio da OMS.
IMPORTÂNCIA DA INFORMAÇÃO
Drauzio – Há aproximadamente 15 anos, assisti a uma palestra de uma especialista em gripe americana que dizia estarmos próximos de uma epidemia de gripe aviária. Suas previsões, felizmente, não se concretizaram. Você acha que hoje se justifica esse tipo de alerta?
Esper Kallás – A informação tem de estar sempre disponível, mas é preciso ter espírito crítico para não causar pânico nem reações indesejáveis na população. Acho importante existirem medidas de vigilância e estratégias de prevenção, mas não vejo vantagem nenhuma em criar ansiedade na população.
Além disso, esse tipo de alerta pode gerar situações condenáveis, que vão desde a corrida para a compra de alguns remédios contra gripe, sem saber se eles serão efetivamente úteis, até a venda de medicamentos no câmbio-negro ou, ainda, a busca por medicação alternativa. Na verdade, a única coisa que se sabe é que o efeito da pílula de antiviral à venda no mercado farmacêutico dura 12, 24 horas, ou seja, apenas o tempo em que a substância ativa está na circulação. Depois disso, não oferece mais proteção.
Drauzio – A desinformação sobre a gripe aviária provoca uma série de mal-entendidos, sem dúvida. Recentemente, recebi o telefonema de uma pessoa que tinha marcado uma viagem de negócios para a África e queria saber se não havia risco de contrair a gripe do frango. Em princípio, não há. Primeiro, porque não há casos de gripe do frango descritos na África. Segundo, porque, pelo menos até agora, não existe a transmissão inter-humana.
Esper Kallás – A propósito, gostaria de lembrar a diferença entre gripe e resfriado. Resfriado é uma doença circunscrita que provoca irritação nas vias aéreas superiores, às vezes, um pouco de febre baixa, dois ou três dias de mal-estar e depois vai embora. Já a gripe é uma doença exuberante e geralmente os sintomas são febre alta de início abrupto, dores pelo corpo, mal-estar intenso. Os olhos começam a lacrimejar, a sensação diante da luz é ruim, uma secreção escurecida pode ser eliminada pelo nariz, dói a garganta e o corpo pede cama. Um episódio gripal costuma demorar por volta de sete dias para ir embora.
O resfriado é transmitido por contato direto entre as pessoas, enquanto o vírus da gripe pode ser transmitido não só por contato próximo, como por aerosol, pois a pessoa doente elimina grande quantidade de vírus nas secreções.
Drauzio – Pelo contato manual, especialmente.
Esper Kallás – Assoar o nariz e dar a mão para outra pessoa é uma forma muito eficiente de transmissão do vírus.
Drauzio – Acho que o grande problema que estamos vivendo com a gripe aviária é a incerteza. É necessário adotar medidas preventivas que exigem recursos sem saber se a gripe virá ou não. Se não vier, essas medidas terão sido inúteis?
Esper Kallás – De qualquer modo, talvez seja essa a oportunidade de aprimorar os serviços de vigilância, de melhorar a capacitação dos laboratórios e de fazer a população entender o que é a gripe. Precisamos aproveitá-la para debater o assunto e aumentar o conhecimento das pessoas para que não adotem medidas absurdas para cuidar de uma doença que nem sequer é gripe.
Drauzio – Você acha que a ameaça da epidemia realmente se concretizará?
Esper Kallás – É muito difícil prever, mas acho que não. Aliás, espero que não se concretize. Se por acaso acontecer, torço para que seja um vírus com baixa capacidade para causar uma doença grave. De qualquer forma, caso ocorra a epidemia, acredito que o impacto será menor do que se está imaginando.