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Doença de Crohn | Entrevista

Ilustração digital com intestinos em azul e áreas destacadas em vermelho, indicando inflamação.
Publicado em 29/11/2011
Revisado em 11/08/2020

Células imunológicas passam a agredir os tecidos que deveriam proteger. É mais ou menos isso o que acontece na doença de Crohn. Leia entrevista completa.

 

Durante milhões de anos, nosso sistema imunológico de defesa foi preparado pela evolução para atacar todos os agentes estranhos que possam penetrar em nosso organismo e para proteger o que é próprio de cada um de nós.
Certas alterações nesse sistema provocam mudanças nessa regulação de tal forma que as células imunológicas se confundem e passam a agredir os tecidos que deveriam proteger.

É mais ou menos isso que acontece com a doença de Crohn, descrita pelo médico Burril B Crohn, em 1932. Células imunologicamente ativas acabam agredindo o aparelho digestivo, da boca até o ânus, em especial a parte inferior do intestino delgado (íleo) e o intestino grosso (cólon) provocando lesões importantes das quais as mais frequentes são aumento da velocidade do trânsito intestinal, diarreia, esfoliação, dificuldade para absorver os nutrientes e enfraquecimento.

 

PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DA DOENÇA



Drauzio – O que caracteriza a doença de Crohn?

Aytan Sipahi – A doença de Crohn compromete todo o trato digestivo, da boca ao ânus, em função de um processo inflamatório crônico, extremamente invasivo, que acomete todas as camadas da parede intestinal: mucosa, submucosa, muscular e serosa.

A doença de Crohn é provocada pela desregulação do sistema imunológico, ou seja, do sistema de defesa do organismo. No organismo normal, células que fazem parte desse sistema, os linfócitos, assumem certo estado de vigilância e controlam o processo inflamatório. Na doença de Crohn, em virtude do comprometimento dessa função celular, que implica mediadores inflamatórios e imunidade adquirida, o processo inflamatório passa a ser intenso e ocasiona lesões no aparelho digestivo.

 

Drauzio – Esse sistema imunológico extremamente alterado vai agredir o próprio organismo.

Aytan Sipahi – É o oposto do que acontece com o HIV. Paciente com HIV tem CD-4 baixo (linfócitos que coordenam a resposta imunológica). Na doença de Crohn, CD-4 está estimulado. Atualmente se imagina que, por predisposição genética, quando o organismo entra em contato com substâncias estranhas, ou antígenos, que podem existir numa bactéria da flora normal do intestino humano, esse sistema imunológico seja muito estimulado.

 

Drauzio –Quando tem contato com uma bactéria que entra pelo aparelho digestivo, a pessoa normal destroi a bactéria e, pronto, está acabada a resposta imunológica. Na doença de Crohn, haveria uma resposta exagerada que agrediria não só a bactéria, mas o aparelho digestivo.

Aytan Sipahi Na pessoa normal, a membrana da bactéria estimula uma resposta inflamatória de defesa e, posteriormente, um processo de tolerância. O organismo acaba não reconhecendo a bactéria como corpo estranho e se acostuma a conviver com ela.

Na doença de Crohn, não existe esse processo de tolerância. O organismo desencadeia a desregulação do sistema imunológico que leva à agressão das paredes do trato digestivo. É interessante notar que pacientes infectados pelo HIV melhoram do Crohn, portanto quando estão com a resposta imunológica debilitada. Isso é uma prova de que a doença de Crohn ocorre mesmo por desregulação do sistema imunológico.

 

FATORES DE RISCO



Drauzio – Você disse que há fatores genéticos envolvidos na doença de Crohn. Há famílias com mais casos da doença?

Aytan Sipahi – A probabilidade de uma pessoa que têm um parente com Crohn apresentar a doença é de 10% e aumenta um pouco se o parentesco for pelo lado materno. Nos gêmeos homozigotos, por exemplo, se um deles apresentar a doença, em quase 85% dos casos, o outro também terá Crohn.

Já se constatou que uma alteração no gene Nod-2 Card 15 do cromossomo 16 determina a produção de uma proteína que, nos monócitos (células de defesa), produz hipersensibilidade de resposta às bactérias do próprio trato digestivo. Está provado também que nem todos os pacientes com doença de Crohn apresentam essas mutações gênicas. Por isso, no momento, a discussão é saber se existe uma ou existem várias doenças de Crohn, uma vez que as alterações dos genes que determinam a resposta inflamatória são extremamente complexas.

 

Drauzio – Quais são os outros fatores de risco para a doença de Crohn?

Aytan Sipahi – Sabe-se que nos países nórdicos, norte da Itália, Canadá, Estados Unidos e nos judeus que foram para Israel, a incidência de Crohn é mais elevada. Isso faz supor que, além da predisposição genética, certas etnias e condições ambientais sejam também fatores de risco.

 

Drauzio – Apesar de fatores genéticos guardarem relação com a doença e a suspeita recair especificamente sobre determinados genes, sozinhos eles não explicam sua ocorrência. Quais são os fatores ambientais também considerados fatores de risco?

Aytan Sipahi – Crohn é uma doença dos grandes centros urbanos também relacionada com o uso de xenobióticos, tais como conservantes, corantes para alimentos, pesticidas etc. Nas pessoas com predisposição genética, essas substâncias que no Brasil são adicionadas à comida em grande quantidade, porque não existe vigilância sanitária capaz de deter os abusos, podem estimular o sistema imunológico e provocar a manifestação da doença. Fala-se, ainda, que o uso de estrógeno estaria entre os fatores desencadeantes, mas isso ainda não foi cientificamente comprovado. Não se discute, porém, que a incidência de Crohn é mais alta nos fumantes do que nos não fumantes.

Embora não comprovados, há outros dois fatores interessantes a mencionar. O primeiro é a “teoria do sujinho”. Em Londres, quando melhoraram as condições de higiene graças à construção de banheiros e à maior oferta de água para banho, as crianças deixaram de entrar em contato com os antígenos na infância e não desenvolveram sistema de tolerância eficiente nessa fase, o que justificaria a maior incidência de doença de Crohn. O outro foi observado na Alemanha. A incidência da doença aumenta entre as pessoas que trabalham em ambientes fechados, como os cabeleireiros, por exemplo. A hipótese é que, nesse caso, a menor exposição aos antígenos retarda o desenvolvimento do processo de tolerância e a pessoa fica mais suscetível à enfermidade.

 

Drauzio  A doença é mais comum em homens ou em mulheres?

Aytan Sipahi – A doença afeta praticamente número igual de homens e mulheres. Talvez, um pouco mais de mulheres do que de homens.

 

SINTOMAS

 

Drauzio – Quais são os principais sintomas da doença de Crohn?

Aytan Sipahi – Os principais sintomas são diarreia, às vezes, sinais de muco ou sangue, dor abdominal, febre, emagrecimento. No exame clínico, aparece massa palpável na fossa ilíaca do quadrante inferior direito do abdômen, porque a doença compromete mais o íleo terminal (85% dos casos) e o cólon.

Os pacientes podem apresentar também manifestações à distância, como dores articulares, aftas, lesões de pele do tipo pioderma gangrenoso (ferida com a aparência de um vulcão) e eritema nodoso (doença que provoca ligeira lesão vermelha na subepiderme) e uma inflamação dos olhos chamada uveíte.

Outra complicação são as fístulas, perfurações no intestino que podem drenar para a região perineal, para a vagina e para a bexiga urinária. Às vezes, podem ocorrer pneumatúria (gases na bexiga) e presença de fezes na urina. Na verdade, 30% dos pacientes com doença de Crohn formam fístulas.

 

PREVALÊNCIA DA DOENÇA



Drauzio  O número de casos de doença de Crohn é maior no momento porque aumentou a eficácia do diagnóstico ou porque a população está mesmo ficando mais doente?

Aytan Sipahi – Essa é uma resposta que ainda não temos. Se considerarmos serviços como o da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte (MG), Juiz de Fora (MG), Ribeirão Preto (SP), centros de referência como o Hospital das Clínicas que atende pessoas do Brasil todo, veremos que vem aumentando o número de pacientes em atendimento ambulatorial. Em Ribeirão, foi feito um trabalho com os pacientes admitidos no hospital-escola que demonstrou ter havido aumento de casos de doença inflamatória.

Pergunta-se, então, qual é a prevalência da doença de Crohn? Na Europa e nos Estados Unidos, de 10 a 40 em cada 100.000 habitantes desenvolvem a doença. Na Austrália e na América do Sul esse número é menor. A América do Sul, aliás, é conhecida por existirem poucos casos, mas ainda não temos dados que fundamentem essa suposição. Como é uma doença que, na maior parte das vezes, exige internação em hospital, a casuística hospitalar ajuda a calcular a frequência.

 

Drauzio – Qual é a situação do Brasil em relação à doença de Crohn? 

Aytan Sipahi – Antigamente, a incidência da doença de Crohn era menor nos países da América do Sul. Hoje, pelo menos no Brasil, é uma enfermidade mais frequente. Não podemos dizer, porém, que tenha aumentado o número de casos, pois só agora foi criado um protocolo nacional em que serão inseridos os dados de todos os grupos que estudam essa doença no país e as informações dos serviços especializados. Só assim será possível determinar a real prevalência da doença de Crohn em nosso país.

 

GRUPO ETÁRIO VULNERÁVEL

 

Drauzio – Em que idade a doença costuma instalar-se?

Aytan Sipahi – A doença se instala normalmente entre os 20 e os 40 anos, mas pode ocorrer também entre os 50 e os 80 anos. No Hospital das Clínicas, a idade média dos pacientes é 25 anos. Por isso, Crohn é considerada uma doença bimodal, ou seja, com dois picos de incidência. Já foi também descrito aumento de casos em adolescentes e em crianças de quatro ou cinco anos.

Não há dúvida de que a frequência da doença de Crohn está aumentando e os casos ficando mais graves. Nos Estados Unidos, ela é um problema de saúde pública. Quase 600 mil pessoas são portadoras da doença. Embora de baixa mortalidade (os serviços de óbito dificilmente a registram como causa mortis), é de alta morbidade. Os pacientes necessitam de internação hospitalar e de tratamentos sofisticados. Hoje, existem drogas caríssimas que interferem no processo inflamatório.

 

DIAGNÓSTICO



Drauzio – Como é feito o diagnóstico da doença de Crohn?

Aytan Sipahi – Como a doença de Crohn pode comprometer todo o aparelho digestivo, é preciso localizar as partes acometidas pela doença. Para examinar esôfago e estômago – apenas 2% ou 3% dos casos ocorrem nessa região – podemos contar com a endoscopia digestiva alta. Já a colonoscopiapermite ver o cólon e o limite entre o ceco e o íleo, parte terminal do intestino delgado onde ocorrem 80% das lesões (ulcerações serpiginosas que caminham lineares ou aftoides que têm um halo ao redor). Depois, podemos recorrer a outro exame de imagem: os raios X do trânsito intestinal. A pessoa toma contraste baritado e seu trajeto pelo intestino vai sendo acompanhado para localizar possíveis lesões. Por fim, podemos nos valer da tomografia, um método mais caro, mas que dá informações não só sobre o interior da alça intestinal, mas também sobre a parede, se está espessada, com gânglios ou alterações da gordura ao redor das alças intestinais.

 

Veja também: Vídeo mostra como é feita uma colonoscopia

 

Em última instância, quando o exame de raios X não localiza lesões, existe uma sofisticada cápsula endoscópica que bate 5.000 fotografias. A pessoa ingere a cápsula, que vai fotografando por onde passa. Depois é feito um software para estudo detalhado. Esse método facilita o diagnóstico de lesões típicas da doença de Crohn, como a angiodisplasia, ou seja, a alteração dos vasos sanguíneos na parede interna do tubo digestivo.

Alguns exames de sangue também são fundamentais para determinar anemia por deficiência de ferro, as proteínas da fase reativa ligadas ao processo inflamatório e se há albumina suficiente para evitar a desnutrição.

Se todos esses exames não bastarem para esclarecer o diagnóstico e houver séria suspeita de que o paciente tem doença de Crohn, pode-se realizar uma intervenção cirúrgica para olhar diretamente a região afetada.


Drauzio
 – A desnutrição é provocada basicamente pela diarreia…

Aytan Sipahi – Basicamente pela diarreia e porque a doença interfere em todo o processo de absorção dos alimentos. Podem ocorrer comprometimentos em várias áreas do organismo como o pâncreas, no processo linfático de absorção da gordura, nos enterócitos que absorvem os alimentos, nos sais biliares que facilitam a emulsificação das gorduras. Além disso, o crescimento bacteriano anômalo pode provocar estenoses (diminuição do diâmetro) do intestino delgado, dificultando a passagem dos alimentos.
Do diagnóstico preciso depende a terapêutica e o tratamento da doença.

 

TRATAMENTO



Drauzio – Feito o diagnóstico, como se orienta o tratamento?

Aytan Sipahi – O tratamento pode ser feito em etapas. Existe um sistema de mensuração da atividade da doença baseado no número de evacuações, dor abdominal, indisposição geral, ocorrência de fístulas e de manifestações patológicas à distância. Esse sistema permite classificar a doença em leve, moderada ou grave. Se a doença é leve, o clínico apenas acompanha a evolução do paciente.

Toda a terapêutica, porém, se volta para reprimir o processo inflamatório desregulado. Com o objetivo de debelá-lo, são primeiro introduzidas as drogas mais comuns: mesalasina, sulfassalazina e dois antibióticos, ciprofloxacina e metrinidazol. Nas fases agudas, indica-se corticoide por via oral ou um corticoide novo, a budezonida, que não tem efeitos colaterais e sistêmicos indesejáveis. Essa substância está contida numa cápsula que, sob certas condições do trato digestivo, se abre e a droga age apenas no local onde foi liberada.

Se o paciente não responder a esse tratamento, existem drogas imunossupressoras, usadas para evitar a a rejeição nos transplantes, como a azatioprina ou a mercaptopurina.

 

Drauzio – Qual é a via de administração dessas drogas e quanto tempo dura o tratamento?

Aytan Sipahi – São drogas administradas por via oral e precisam de controle. O tratamento pode ser feito por quatro ou cinco anos. Apesar de haver casos em que ele foi mantido até por dez anos, a literatura registra algumas evidências de que não funciona depois de quatro anos. No entanto, nos congressos internacionais, pesquisadores afirmam que nunca suspendem o uso dessas drogas.

 

Drauzio – A pessoa consegue levar vida normal tomando essas drogas?

Aytan Sipahi – A maioria dos doentes, quando entra em remissão, leva vida praticamente normal. Casos mais graves podem acarretar dificuldades no exercício profissional e na frequência ao trabalho.

Um interrogatório que se faz para orientar o tratamento ajuda a avaliar a qualidade de vida. Às vezes, os índices estão alterados, mas a qualidade de vida é tão boa que sugere o controle do paciente sobre a doença.

 

Drauzio – Existe alguma outra opção de tratamento?

Aytan Sipahi – Existe a terapia biológica que conta com a droga chamada anticorpo anti-TNF (fator de necrose tumoral). Quando há um processo inflamatório na mucosa ou em qualquer outra parte do corpo, linfócitos, monócitos e macrófagos do trato digestivo produzem TNF e, como consequência, o processo inflamatório aumenta. Se introduzirmos um anticorpo contra o TNF, haverá bloqueio e interrupção desse processo. Às vezes, porém, podem surgir efeitos colaterais e resistência ao anticorpo.

Essa droga está à venda no mercado, mas seu preço é alto. No entanto, o Estado brasileiro está arcando com a despesa, porque o medicamento tem a vantagem de evitar a internação hospitalar o que elevaria muito os custos. Pacientes graves podem ser submetidos à cirurgia, porque apresentam complicações como estenose ou perfuração com peritonite, quadro agudo de abdômen.

 

ESTILO DE VIDA



Drauzio  Que estilo de vida deve adotar o paciente com doença de Crohn?

Aytan Spahi – Na fase aguda, quando está recebendo medicamentos, o paciente precisa controlar a dieta. Na fase de remissão, deve restringir apenas a ingestão dos alimentos que lhe fazem mal.

 

Drauzio  A dieta tem que conter mais fibra? 

Aytan Sipahi – Nem sempre. Alguns pacientes, por exemplo, desenvolvem intolerância à fibra e devem evitar sua ingestão. Paciente de Crohn pode fazer exercícios físicos moderados e levar vida saudável, mas precisa saber que tem uma doença crônica e está tratando os sintomas.

 

Drauzio – O estresse influi sobre o aparecimento da doença de Crohn?

Aytan Sipahi – O estresse interfere, mas não é causa, embora exerça ação sobre o hipotálamo e possa desencadear o processo. Antigamente, tudo era considerado psicossomático. Hoje, sabemos que isso não é verdade.

 

Drauzio  Você acha que os médicos estão preparados para identificar os casos de Crohn?

Aytan Sipahi – No Brasil, é preciso conhecer a real prevalência da doença de Crohn. Os próprios médicos sabem pouco a respeito dessa doença, mas os laboratórios farmacêuticos estão interessados no levantamento desses dados.

O grupo do qual participo tomou para si o encargo de promover cursos de divulgação científica e atualização dos médicos para que tenham condições de tratar desses doentes com eficiência.

Os Estados Unidos estão investindo grandes somas na pesquisa referente à doença de Crohn. Muitas perguntas ainda não encontraram resposta. Como questionou o especialista Cláudio Ficchi aqui no Brasil, será que devemos usar todo o arsenal terapêutico de uma vez? Por que os doentes que se tornam crônicos deixam de responder a alguns medicamentos? Que mudanças ocorrem na fisiologia da doença, em seu mecanismo interno que induzem essa falta de resposta?

Crohn é uma doença que exige visão geral de toda a clínica médica, porque provoca alteração em muitos órgãos. Para melhorar o paciente com doença de Crohn, é preciso investir muito em biologia molecular e em engenharia genética.

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