Autorização junto à Anvisa para ter acesso à cannabis medicinal requer formulários e termos assinados por um médicos prescritor. Prazo para liberação é de cerca de 15 dias.
Com cada vez mais exemplos de regulamentação, o uso terapêutico da Cannabis sativa vem ganhando destaque no meio médico. Países como Canadá, Reino Unido, Israel e, mais recentemente, Peru – que criou regras o uso medicinal da planta em janeiro de 2019 – já flexibilizaram suas leis para ampliar o acesso dos pacientes a medicamentos derivados da planta. Ao todo, 35 países já regulamentaram o uso da cannabis para tratar pacientes com doenças graves ou raras, como epilepsia refratária, autismo, dor crônica, Alzheimer, entre outras.
No Brasil, desde 2015, por meio da RDC 17/2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) regularizou a importação de produtos à base de canabidiol (CBD) e de THC, substâncias presentes na planta e que atualmente são as mais estudadas em pesquisas de saúde.
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O CBD não tem efeito psicotrópico (não “dá barato”, não provoca alterações de percepção ou de humor em quem fuma), não causa dependência e tem baixa toxicidade. Pacientes que sofrem de convulsões graves são os mais beneficiados por terapias que o utilizam. Basicamente, ao entrar na corrente sanguínea e chegar ao cérebro, a substância é capaz de “acalmar” a atividade química e elétrica excessivas na região.
Já o THC é o principal responsável pelo “barato”, ou seja, pelo efeito psicoativo do uso da cannabis. Mas a substância também tem grande potencial medicinal. Atualmente, suas propriedades mais pesquisadas dizem respeito a sua poderosa capacidade analgésica e estimulante de apetite. Pacientes oncológicos formam um grupo que pode ser muito beneficiado pela substância, pois é comum que tratamentos para o câncer afetem o paladar e reduzam a vontade de comer, além de frequentemente causarem náuseas e dores.
Vou dar um exemplo: há pacientes com síndromes convulsivas refratárias graves. São pacientes que têm mais de mil crises por mês e já tentaram inúmeros tratamentos; que precisam de internação frequente devido a complicações. Com o uso do óleo, o número [de crises convulsivas] cai para duas, três por mês.
Como requerer autorização da Anvisa
No Brasil, são mais de 5 mil pacientes beneficiados até o momento e cerca de 900 médicos prescritores. Segundo a dra. Carolina Nocetti, médica consultora especializada em cannabis, a Anvisa exige três documentos para permitir acesso aos produtos derivados da maconha: prescrição, relatório médico e um termo de responsabilidade, assinado tanto pelo médico quanto pelo paciente. O médico também precisa preencher um formulário de solicitação no site da Anvisa e anexar outros documentos referentes ao pedido. O processo é todo online, e a autorização chega via e-mail para o paciente. “É um processo relativamente burocrático, mas funciona. O órgão demora cerca de 15 dias para dar uma resposta.” Com a liberação em mãos, é possível comprar os produtos em sites internacionais e encaminhar a permissão de entrada para a Receita Federal.
Desde a resolução, em 2015, mais de 80 mil produtos à base da planta já foram importados. As formas de administração são muito variadas, vão de óleos (mais utilizados) a sprays, pomadas, cápsulas, loções e adesivos. Nocetti explica que o uso vai depender muito da necessidade de cada indivíduo. Se for um paciente com dor crônica, por exemplo, o óleo pode não ser o mais indicado, pois demora cerca de duas horas para ser metabolizado e começar a fazer efeito. Para esse tipo específico de dor, vaporizar o produto seria mais eficaz.
Diferentemente de medicamentos comumente encontrados em farmácias, as doses não são padronizadas. “O ajuste da dosagem é bem personalizado, porque vai depender muito de como o paciente se adapta ao medicamento. Se, por exemplo, eu indico 0,5 ml no período da manhã, mas o indivíduo relata que fica muito sonolento, a gente vai adaptando. É um ajuste fino”, explica Nocetti.
O maior entrave, além do acesso, é o preço. Desde 2018 já é possível encontrar nas farmácias do Brasil um medicamento à base de canabinoides para tratamento da espasticidade relacionada à esclerose múltipla, um sintoma marcado pela rigidez muscular, como uma câimbra persistente e bastante dolorosa. Trata-se do primeiro registro de um medicamento à base de cannabis no país. Seus princípios ativos são o THC e o canabidiol, e uma caixa com três frascos de spray com 10 ml — suficiente para cerca de 45 dias de tratamento — custa mais de R$ 2 mil.
Outra forma de conseguir medicamentos desse tipo é via importação. Nesses casos, o custo mensal da terapia gira em torno de R$ 1.500,00. No Brasil, entretanto, há associações que têm autorização da Justiça para fazer o plantio e fornecer aos pacientes o óleo de cannabis por um custo menor. Para o sistema público, os ganhos valem o preço. “Vou dar um exemplo: há pacientes com síndromes convulsivas refratárias graves. São pacientes que têm mais de mil crises por mês e já tentaram inúmeros tratamentos; que precisam de internação frequente devido a complicações. Com o uso do óleo, o número [de crises convulsivas] cai para duas, três por mês. Eu digo que só o transporte de ambulância até o hospital já paga o custo da terapia”, afirma a especialista.
O efeito positivo que a cannabis pode ter em alguns pacientes pode despertar uma sensação de poder milagroso. Há vídeos no YouTube que mostram pacientes com espasmos e tremores ficarem absolutamente tranquilos minutos após usar medicamentos desse tipo, mas a médica pondera: “É uma terapia muito personalizada. É difícil falar que é bom para todo mundo. Nem sempre será eficaz para todos”.
Mesmo que haja inúmeros benefícios relatados e de um relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) destacar que o CBD tem bom perfil de segurança, muitos médicos ainda não se sentem confortáveis para fazer a prescrição. Algumas hipóteses tentam explicar essa hesitação. Não se estuda sobre a planta na faculdade, e o status de criminalização da maconha cria dificuldades para a obtenção de material e realização de pesquisas com a substância. As evidências preliminares são animadoras e indicam que existe potencial terapêutico relevante; porém, a pauta ainda transita na agenda pública desde 2014, quando começou um movimento de várias famílias que recorriam à Justiça para conseguir importar o CBD. De lá para cá, a descriminalização do plantio da maconha para uso medicinal está no vai e vem entre Senado, Câmara dos Deputados, Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) e outras comissões desde o final de 2018. A saúde pública aguarda.