A Medicina existe para aliviar o sofrimento humano. E, para isso, precisamos melhorar a forma como lidamos com a dor.
Lidamos mal com a dor. A descoberta de novas drogas e os avanços tecnológicos que transformaram em ciência a Medicina da segunda metade do século 20 não tiveram o mesmo impacto no tratamento da dor: ainda não foi encontrado analgésico de qualidades superiores à velha e boa morfina.
Por que esse contraste?
Primeiro, por razões históricas: a dor está nos calcanhares de nossa espécie há pelo menos 5 milhões de anos. Já imaginaram quebrar uma perna, sentir cólica renal ou dor de dente no tempo das cavernas?
Segundo, porque, cada uma a seu modo, as religiões souberam encontrar finalidade no sofrimento físico ao atribuir-lhe função purificadora. Gemei e chorai neste vale de lágrimas é ensinamento milenar do cristianismo como receita infalível para a felicidade na vida eterna. Penitências e autoflagelações são consideradas demonstrações de fé em diversas crenças.
Quando a lei que autorizaria pesquisas com células-tronco foi levada a votação na Câmara dos Deputados, assisti a uma discussão insólita entre uma mocinha na cadeira de rodas por causa de uma doença genética que enfraquece progressivamente os músculos, defensora da permissão à pesquisa, e um ativista de uma associação católica que se opunha a ela:
— Você acha que um óvulo fecundado num tubo de ensaio é uma vida mais importante do que o sofrimento de uma pessoa presa numa cadeira, como eu?
— Seu sofrimento não é nada perto de Jesus crucificado — respondeu o rapaz.
Na Europa inquisitorial, mulheres foram queimadas por gritar e maldizer as dores do parto, consideradas pela Igreja daquele tempo castigo divino imposto pelo Criador para expurgar o pecado cometido no momento da concepção. Na Inglaterra do século 20, crianças eram submetidas a pequenas cirurgias sem anestesia porque os médicos supunham que antes dos 6 anos de idade o sistema nervoso, ainda imaturo, seria incapaz de conduzir adequadamente os estímulos dolorosos. Talvez por razões semelhantes, rabinos de hoje ainda fazem circuncisões a sangue frio, indiferentes aos berros do bebê.
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A complacência com a dor alheia persiste insidiosa na medicina moderna. Fui formado pela USP sem assistir a uma só aula sobre tratamento de dores agudas ou crônicas, distorção lamentável que apenas nos últimos dez anos começa a ser corrigida nas faculdades, timidamente. Formar médicos sem prepará-los para considerar a dor um fato inaceitável torna-os desinteressados, incompetentes para enfrentá-la e, com o tempo, refratários ao sofrimento de seus pacientes.
Sem apelos sentimentais: enquanto você lê este texto, quantas pessoas pelo Brasil estão com dores que poderiam ser controladas com esquemas analgésicos simples? Quanto padecimento poderia ser evitado se os médicos conhecessem melhor a farmacologia da morfina, analgésico de escolha para os quadros de maior intensidade, o único que pode ter sua dosagem aumentada sem limites?
A situação é mais grave nos hospitais que atendem pelo SUS, por razões óbvias: quem pode menos, chora mais. Neles, o excesso de pacientes, a precariedade das instalações, a falta de profissionais e de remuneração para diversos procedimentos anestésicos criaram um universo cultural que parece não levar em conta a dor como fenômeno biológico.
No internato do Hospital das Clínicas, ao estagiar no pronto-socorro de obstetrícia, cabia ao interno atender às mocinhas com hemorragia causada por abortamento clandestino incompleto. O tratamento consistia em colocar um espéculo de aço para abrir a vagina, pinçar o colo do útero com uma espécie de alicate dotado de duas garras perfurantes, tracioná-lo, dilatá-lo com cilindros metálicos de diâmetro crescente para dar passagem à cureta e proceder à “raspagem” dos restos embrionários intrauterinos.
Chocados com os gemidos das pacientes, reunimos um grupo de internos para cobrar do chefe do pronto-socorro a presença de um anestesista na sala.
Ele respondeu, atrás do cigarro:
– Não temos anestesista de plantão nem sala de recuperação para deixá-las até passar o efeito da anestesia. Depois, já imaginaram se elas contam para as amigas que nós resolvemos o problema com anestesia geral, a festa que vira isto aqui?
Decerto imaginava que as mocinhas pobres engravidariam e fariam abortamentos com agulha de crochê, como era habitual na época, só para ter direito à curetagem sob anestesia no Hospital das Clínicas.
Quase 40 anos mais tarde, em boa parte das enfermarias e ambulatórios que atendem pelo SUS, a dor ainda é tratada à moda antiga.
A falta de pessoal e de instalações serve de justificativa para a realização de endoscopias – nas quais são introduzidos tubos da grossura de um dedo pela boca para chegar ao duodeno, ou através do reto para examinar o intestino por dentro, ou pelo nariz para atingir as ramificações dos brônquios, biópsia de próstata com agulhas inseridas por via retal, drenagens de abscessos profundos e outras intervenções dolorosas, sem nenhuma sedação.
Até quando nós, médicos, vamos aturar e compactuar com essas limitações? Quanto tempo levará para rejeitarmos definitivamente essa visão benevolente da dor? A função primordial da Medicina é aliviar o sofrimento humano. Não há outra justificativa para a existência de nossa profissão.