A epidemia de ultrassons de tireoide traz sobrecarrega dos serviços especializados, encarecimento do sistema de saúde e punções e cirurgias desnecessárias
Deve existir alguma síndrome tireoidovaginal que desconheço. Minha ignorância é a única explicação para justificar por que as mulheres saem das revisões ginecológicas com pedidos de ultrassom da tireoide.
Em 1947, foi publicado um estudo mostrando a discrepância entre o grande número de casos de câncer de tireoide encontrados nas autópsias e a raridade das mortes pela doença.
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Os autores estimaram que pelo menos um terço dos adultos apresenta pequenos carcinomas papilares de tireoide, que jamais causarão complicações.
O “The New England Journal of Medicine”, a revista médica de maior circulação que publicou esse estudo, agora analisa o exemplo da Coreia do Sul.
O país assegura acesso à saúde para seus 50 milhões de habitantes, desde os anos 1980. O sistema é tecnologicamente intensivo: é o segundo do mundo em leitos de UTI por milhão de habitantes, o quinto em aparelhos de tomografia e o quarto em ressonâncias magnéticas.
Embora o câncer de tireoide não faça parte do programa nacional de diagnóstico precoce, vários hospitais e médicos incluíram o ultrassom de tireoide nos assim chamados checkups.
As estatísticas vitais revelaram que a incidência desse tipo de câncer aumentou lentamente até os anos 1990, para dar um salto exponencial ao redor de 2000.
Em 2011, a proporção de diagnósticos foi 15 vezes maior do que em 1993. Atualmente, 56% dos casos são de tumores com menos de 1 cm, contra 14% naquela época.
Você, leitor, poderá pensar que esses dados comprovam a eficácia do screening. Afinal, diagnóstico precoce é passo fundamental para a cura. A realidade, no entanto, é mais complexa.
Estamos vivendo uma epidemia de ultrassons de tireoide que sobrecarrega os serviços especializados, encarece o sistema de saúde e expõe as pessoas a punções, cirurgias, angústias e sofrimentos desnecessários.
O aumento dramático do número de diagnósticos não foi acompanhado de redução da mortalidade. Essa constatação, em medicina, sempre sugere exagero de diagnósticos (overdiagnosis, na literatura).
Hoje, câncer de tireoide é o tipo mais prevalente na Coreia. Foram 40 mil casos no ano de 2011, contra 300 a 400 mortes pela enfermidade.
Virtualmente, todos os pacientes receberam tratamento: dois terços pela tireoidectomia total e um terço pela parcial.
A retirada da tireoide não é uma tarde no circo. Além do trauma cirúrgico, exige reposição diária de hormônio tireoideano pelo resto da vida, cerca de 10% dos pacientes desenvolverão deficiências das paratireoides e 2% terão paralisias de corda vocal, com alterações permanentes da voz.
Nas últimas duas décadas, diversos países observaram fenômeno semelhante: aumento substancial da incidência de câncer da tireoide, sem qualquer impacto na redução da mortalidade.
De acordo com o banco de dados Cancer Incidence in Five Continents, a proporção de diagnósticos mais do que duplicou na França, Itália, República Tcheca, Israel, China, Canadá e Estados Unidos.
Estamos vivendo uma epidemia de ultrassons de tireoide que sobrecarrega os serviços especializados, encarece o sistema de saúde e expõe as pessoas a punções, cirurgias, angústias e sofrimentos desnecessários.