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Drauzio

Em busca da sabedoria perdida | Artigo

Publicado em 20/04/2011
Revisado em 11/08/2020

Encontros têm procurado catalogar e discutir as “grandes questões” filosóficas, religiosas, científicas, tecnológicas, políticas, econômicas, ecológicas. Veja artigo do dr. Drauzio sobre questões do novo milênio.

 

Ao homem sábio nada é desconhecido
Antístenes (c. 440 – c. 360 a.C.)

Com o início do novo milênio, uma série de iniciativas nascidas no século passado vêm ganhando espaço sob a forma de inúmeros fóruns, congressos e simpósios que se multiplicam pela superfície calejada do planeta.

Ainda que com enfoques diversos, esses encontros têm procurado catalogar e discutir as “grandes questões” filosóficas, religiosas, científicas, tecnológicas, políticas, econômicas, ecológicas — a lista pode ser tão grande quanto se queira — que ainda seguem “desafiando a inteligência humana”, expressão cujo anacronismo tão bem revela a particular weltanschauung sobre a qual se funda a nossa época.

Entre todas essas questões – que até recentemente eram encaradas como problemas complexos cujas soluções, embora difíceis, cedo ou tarde seriam obtidas, mas que hoje são vistas como crises profundas e paralisantes, como obstáculos francamente intransponíveis – duas, a meu ver, destacam-se de maneira especial.

Em primeiro lugar, o nosso mundo parece viver uma crise cultural generalizada (ou “global”), que afeta todas as ramificações do saber humano e que se caracteriza por uma sensação absurdamente aguda de déjà vu, de caducidade extrema dos produtos culturais sejam eles quais forem — o novo já sendo velho antes mesmo de vir a existir — sensação que é paradoxalmente acompanhada de uma demanda, nunca antes vista, por “novidades” de qualquer tipo.

E essa demanda devoradora e cega, sempre insaciável, tem um espectro de interesse que se estende da notícia mais banal sobre a comercialização de uma “nova” “engenhoca” eletrônica, passando por trágicas informações a respeito de uma “nova” guerra ou de um “novo desastre ecológico”, até incluir aquelas notícias mais “nobres”, como o advento de uma “nova” ordem econômica, de uma “nova” teoria científica, de uma “nova” proposta estética, enfim, de um talvez não tão admirável “novo” mundo….

Interessantemente, essa busca desenfreada por “novidades” acompanha-se de uma outra, simultaneamente causa e consequência da primeira, que se traduz na necessidade do desenvolvimento de meios tecnológicos cada vez mais poderosos e eficazes, capazes de colocar à disposição dos “famintos” consumidores a imensa quantidade de informação que é continuamente gerada por um número sempre crescente de produtores.

 

Veja também: A arte de envelhecer

 

Aliás, no estágio atual de evolução dessas tecnologias não parece haver mais sentido na manutenção de uma distinção nítida entre produtores/emissores de informação, de um lado, e consumidores/receptores, de outro, uma vez que as referidas tecnologias – a internet se coloca como um bom exemplo — prestam-se tanto à geração de “novidades” quanto à sua fruição.

Com efeito, nos dias que correm, ao menos em princípio, todo indivíduo que tiver acesso a esses meios tecnológicos poderá se tornar (feliz ou infelizmente…) tanto autor/ator quanto espectador desse imenso show business informacional.

Além dessa primeira crise, de natureza predominantemente cultural, merece ser igualmente destacada uma outra, desta feita de natureza axiológica e moral, que se traduz, fundamentalmente, por um sentimento, talvez jamais experimentado com tanta intensidade, de desilusão e de descrença, de instabilidade até mesmo daqueles valores  reputados os mais intocáveis; um sentimento, enfim, de perda do sentido/significado da vida.

Evidentemente, a consequência da ação combinada dessas duas crises é o desabamento inexorável de qualquer conjunto de certezas mais ou menos sólidas capazes de servir de alicerce, de esconderijo ou até mesmo de um derradeiro muro contra o qual o homem contemporâneo pudesse apoiar as costas e se resguardar, ainda que timidamente, da enxurrada de informações natimortas, de novidades abortadas que o cercam, que o solapam e que por fim o devoram.

Faminto de certezas, absolutamente sem pele, os sentidos todos expostos, imerso num estado malsão de contínua excitação, caminha inquieto e assustado o homem sem qualidades que povoa esta nossa época já tão abarrotada de artefatos inúteis, de gestos exagerados, de registros de um passado cada vez menos remoto…

Uma época em que ruínas recém-pintadas se agridem mutuamente numa ânsia insana de perenidade, em que inúmeros são os comentadores mas raros os trabalhos que merecem comentários, em que há tanto conhecimento e tão pouca sabedoria, em que a História é insuportavelmente presente, a consciência obnubiladamente lúcida e a memória inutilmente pletórica.

E assim, face às atrocidades diuturnamente veiculadas pelos meios de comunicação de massa – do velho jornal à contemporânea internet – o homem contemporâneo já não tem como elidir certas suspeitas quanto à legitimidade da auto-imagem fundamentalmente positiva que conseguira, com muito custo, preservar até então…

E o que era antes vagamente pressentido em brevíssimos instantes de lucidez, em “satoris-relâmpagos”, em fugazes embates diários com uma realidade densa e voluntariosa, durante os quais, ao se observar agindo e reagindo, era esse homem compelido a se confrontar com aspectos arcaicos e sobretudo escuros de sua própria natureza, todo esse lixo hediondo que ele lograra ocultar, ainda que à custa de muito sofrimento neurótico, nas profundezas de seu ser, encontra-se, nos dias que correm, absolutamente exposto, passando a ocupar, na sua consciência vigilante, o espaço que lhe cabe por direito…

Assim, não lhe é mais permitido, a esse Homo não  somente sapiens mas também terribilis, persistir se acreditando essencialmente bom e solidário, altruísta e angelical, quando tantas evidências midiáticas estão a lhe exibir, de maneira ostensiva e irrefutável, a sua metade horrenda e negra, suja e monstruosa, irrompendo dos abismos insondáveis de seu inconsciente filogenético com o vigor característico das forças da natureza.

Evidentemente, um momento tão difícil como esse em que desabrocha na consciência uma nova percepção da ordem (ou da desordem) essencial das coisas, em que se reformula radicalmente a própria imagem já tão rígida e familiar, é terreno mais do que propício ao aparecimento dos inevitáveis apregoadores de soluções miraculosas e indolores, dos vendedores de “saídas” limpas e bem-comportadas, “politicamente corretas”, visualmente comedidas, tanto mais ilusoriamente perfeitas quanto mais filosoficamente superficiais.

Por outro lado, um tal momento delicado se presta também à proliferação de coléricas e verborrágicas sibilas – corolário inevitável e simétrico dos “propagandistas-arautos das boas-maneiras” mencionados no parágrafo anterior – que se comprazem em vaticinar, a partir de um novo púlpito eletrônico, castigos iminentes aos aterrorizados “tele-pecadores” do novo milênio que não se converterem ou que, uma vez convertidos, apostasiarem.

E, fato importante de ser assinalado, muito embora tenham estilos diferentes, uma análise mais acurada desses dois grupos – o das “coléricas sibilas” e o dos “propagandistas politicamente corretos” — não poderá deixar de detectar um importante traço comum a aproximá-los: ambos parecem padecer de uma incurável impotência lúdica que se traduz pela sua aparência sisuda, pela sua incapacidade absoluta para o humor, para o riso, enfim, para a percepção do lado engraçado e, talvez, mais interessante da existência. Desse modo, como resposta reflexa à sede insaciável de “novidades” e à exacerbada carência de certezas de que padece boa parte da humanidade, assistimos a uma multiplicação  impressionante de seitas pseudo-místicas, de “novas” religiões (sobretudo de simulacros de um cristianismo reformado), a um vigoroso reavivamento de tendências fundamentalistas nas fileiras – cada vez mais cerradas e sectárias – dos três grandes monoteísmos.

Além disso, também fazendo parte dessa resposta reflexa, testemunhamos a cada dia a proliferação de métodos “alternativos” de terapia psicológica, ora fundados em princípios pretensamente científicos e impregnados de um positivismo ingênuo já há muito abandonado pela ciência, ora baseados em pressupostos “esotéricos” que, lamentavelmente, não mais possuem o frescor que exibiam há vinte ou trinta anos, tendo, ao contrário, passado a aparentar um aspecto caricatural e amanhecido, cristalizados que foram num ideário new age já calvo e enrugado.

Frente a essa situação, creio ser mais do que urgente que se proceda a uma reflexão vigorosa, corajosa, certamente racional – embora essencialmente não racionalista – uma reflexão que saiba indagar da possibilidade de uma opção consistente a todos esses ingênuos caminhos “alternativos”, de um movimento (ou de um não movimento) que possa se contrapor, de maneira lúcida, a esse lamentável estado de agitação cega e gregária que acomete um grande número de seres humanos, que jamais se cansam de buscar certezas, ainda que pueris, tranquilidade espiritual, ainda que ilusória, arremedos de nirvana, ainda que caricatos.

Pessoalmente, não vejo outra possibilidade para o equacionamento desse impasse senão o forjamento de uma visão de mundo muito mais abrangente e integrada do que aquela que nos foi legada pelo trabalho, sem dúvida eficiente, mas não raro mal dirigido, de legiões e legiões de microespecialistas – alguns dos quais, no dizer espirituoso de um grande pensador, chegam a saber “quase tudo a respeito de quase nada” – que já há mais de dois séculos vêm produzindo uma quantidade incalculável de informação, tanto menos compreensível quanto mais abundante.

Evidentemente, o trabalho de constituição dessa nova maneira de ver as coisas somente poderá ser realizado por indivíduos que, além de uma penetrante inteligência, sejam também dotados, por um lado, de um discernimento ímpar – que lhes permita separar, em meio ao lixo cultural que desfigura a nossa época, as informações de qualidade que realmente importam – e, por outro, de uma personalidade forte – capaz de resistir e responder ao criticismo intransigente dos defensores do establishment.

Mais ainda, será preciso que tais indivíduos, além dessas qualidades, saibam também reunir em si mesmos os saberes nodais de um bom número de disciplinas provenientes de campos do conhecimento bastante diversos – mas, por isso mesmo, mutuamente  enriquecedores – como a Matemática e a Arte, a Psicologia e a Física, a Mitologia e a Biologia, estágio que jamais poderá ser alcançado sem um longo — e às vezes penoso — processo de estudo e reflexão, constituindo, portanto, um caminho somente aberto aos verdadeiros amantes da sabedoria. Talvez seja pedir muito…

Ainda assim, um tanto paradoxalmente, os homens desesperançados do terceiro milênio aguardamos ansiosos o ressurgimento mais do que premente dos verdadeiros filósofos.

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