Outras Histórias #38 | A arte de envelhecer

O fim da juventudade não é sinônimo do fim da vida. Neste episódio do Outras Histórias, dr. Drauzio reflete sobre o valor do envelhecimento.

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Publicado em: 13 de novembro de 2021

Revisado em: 12 de novembro de 2021

Exaltar a juventude como a melhor fase da vida é ignorar que o envelhecer abre espaço para várias novas experiências.

 

 

 

Eu achei que estava bem na foto. Magro, olhar vivo, rindo com os amigos na praia. Quase não havia cabelos brancos entre os poucos que sobreviviam. Comparado ao homem de hoje, era a fotografia de um jovem, mas eu tinha 50 anos naquela época — idade em que me considerava bem distante da juventude.

Se me for dado o privilégio de chegar aos 90 em pleno domínio da razão, é possível que uma imagem de agora me cause impressão semelhante: o envelhecimento é sombra que nos acompanha desde a concepção; o feto de seis meses é muito mais velho do que o embrião de cinco dias. Lidar com a inexorabilidade desse processo exige uma habilidade na qual somos inigualáveis: a adaptação.

Não há animal capaz de criar soluções diante da adversidade como nós, de sobreviver em nichos ecológicos que vão do calor tropical às geleiras do Ártico. Da mesma forma que ensaiamos os primeiros passos por imitação, temos que aprender a ser adolescentes, adultos e a ficar cada vez mais velhos.

A adolescência é um fenômeno moderno. Nossos ancestrais passavam da infância à vida adulta sem estágios intermediários. Nas comunidades agrárias, o menino de sete anos trabalhava na roça e as meninas cuidavam dos afazeres domésticos antes de chegarem a essa idade.

A figura do adolescente que mora com os pais até os 30 anos, sem abrir mão do direito de reclamar da comida à mesa e da camisa mal passada, surgiu nas sociedades industrializadas, depois da Segunda Guerra Mundial. Bem mais cedo, nossos avós já tinham filhos pra criar.

A exaltação da juventude como um período áureo da existência humana é um mito das sociedades ocidentais. Confinar aos jovens a publicidade dos bens de consumo, exaltar a estética, os costumes e os padrões de comportamento característicos dessa faixa-etária têm o efeito perverso de insinuar que o declínio começa assim que essa fase se aproxima do final.

A ideia de envelhecer aflige mulheres e homens modernos, muito mais do que afligia os nossos antepassados. Sócrates tomou cicuta aos 70 anos; Cícero foi assassinado aos 63; Matusalém sabe-se lá quantos anos teve, mas seus contemporâneos gregos, romanos ou judeus viviam em média 30 anos.

No início do século XX, a expectativa de vida ao nascer nos países da Europa mais desenvolvida não passava dos 40 anos. A mortalidade infantil era altíssima; epidemias de peste negra, varíola, malária, febre amarela, gripe e tuberculose dizimavam populações inteiras.

Nossos ancestrais viveram num mundo devastado por guerras, enfermidades infecciosas, escravidão, dores sem analgesia e a onipresença da mais temível de todas as criaturas: a morte. Que sentido haveria em pensar na velhice, quando a probabilidade de morrer jovem era tão alta? Seria como hoje nos preocuparmo-nos com a vida aos 100 anos de idade, que pouquíssimos conhecerão.

Os que estão vivos agora, têm boa chance de passar dos 80. Se assim for, é preciso sabedoria pra aceitar que nossos atributos se modificam com o passar dos anos, que nenhuma cirurgia devolverá, aos 60, o rosto que tínhamos aos 18, mas que envelhecer não é sinônimo de decadência física para aqueles que se movimentam, não fumam, comem com parcimônia, exercitam a cognição e continuam atentos às transformações do mundo.

Considerar a vida um vale de lágrimas, no qual submergirmos de corpo e alma ao deixar a juventude, é torná-la experiência medíocre. Julgar, aos 80 anos, que os melhores foram aqueles dos 15 aos 25 é não levar em conta que a memória é editora autoritária, capaz de suprimir por conta própria as experiências traumáticas e relegar ao esquecimento as inseguras, medos, desilusões afetivas, riscos desnecessários e as burradas que fizemos nessa época.

Nada mais ofensivo para o velho do que dizer que ele tem cabeça de jovem — é considerá-lo mais inadequado do que o rapaz de 20 anos que se comporta como criança de 10.

Ainda que maldigamos o envelhecimento, é ele que nos traz a aceitação das ambiguidades, das diferenças, do contraditório e abre espaço pra uma diversidade de experiências com as quais nem sonhávamos anteriormente.

 

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