O primeiro transplante de coração de porco ocorreu nos EUA em 2020 e seu resultado chamou a atenção do mundo científico. Leia no artigo do dr. Drauzio.
Em janeiro de 2020, o coração de um porco foi transplantado para um americano de 57 anos. Bateu no peito do receptor durante oito longas semanas antes de parar, não por falha própria, mas como consequência de uma infecção por citomegalovírus, agente oportunista que se aproveita da imunossupressão associada aos transplantes.
Realizado na Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, foi o primeiro transplante em que um ser humano recebeu um órgão doado por um animal (xenotransplante).
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O resultado chamou a atenção do mundo científico, porque órgãos ou células de outra espécie, quando transferidos para seres humanos, são reconhecidos como estranhos e começam a ser rejeitados em minutos. Na comparação, oito semanas são uma eternidade.
Duas semanas atrás, a revista “Nature” analisou os avanços no campo dos xenotransplantes.
Meses depois desse xenotransplante cardíaco, dois grupos independentes fizeram os primeiros xenotransplantes renais. Rins de porcos foram transplantados em três pacientes que se encontravam na UTI em morte cerebral legalmente documentada. Os rins recebidos produziram urina por dois ou três dias, sem exibir sinais de rejeição.
Nos meses de junho e julho, foram realizados dois xenotransplantes com coração de porco em pacientes com morte cerebral.
Esses casos foram precedidos por centenas de transplantes de órgãos de porcos em babuínos, muitos dos quais sobreviveram anos depois de receber fígados, corações, rins ou células beta do pâncreas, produtoras da insulina que falta a quem sofre de diabetes.
Nos anos 1960, pesquisadores experimentaram usar babuínos e chimpanzés como doadores de órgãos para seres humanos, com algum sucesso, mas as dificuldades para criá-los foi limitante. Os porcos, ao contrário, são produzidos em larga escala pela agropecuária. Além de ter órgãos com dimensões e anatomias próximas da nossa, podem ser criados em condições controladas e submetidos a testes mais demorados para estudos genéticos e pesquisa de agentes infecciosos, possibilidade que os doadores humanos não dispõem em virtude da urgência em transplantar o órgão antes que se torne inviável.
Os transplantes de órgãos e células de porco puderam avançar a partir do início dos anos 1990, quando David Cooper, cirurgião do Massachussets General Hospital, em Boston, descobriu que a rejeição ocorria principalmente quando o sistema imunológico reconhecia na superfície das células do órgão recebido, uma molécula de açúcar: a alfa-Gal. Silenciar por manipulação o gene responsável pela produção dessa molécula, fazia com que primatas não humanos tolerassem o órgão transplantado por muito mais tempo.
O surgimento da técnica CRISPR-Cas9 nos anos 2010 tornou possível modificar genes com mais facilidade, não apenas o que codifica alfa-Gal, mas os que codificam outras moléculas envolvidas no mecanismo de rejeição. Porcos transgênicos com múltiplas alterações genéticas estão sendo desenvolvidos em várias companhias de biotecnologia, nos Estados Unidos e na Europa.
O animal que doou o coração para o primeiro transplante na Universidade de Maryland, por exemplo, foi submetido previamente a dez manipulações: quatro de seus genes foram modificados e seis genes humanos introduzidos em seu genoma para induzir tolerância imunológica, evitar inflamação e a coagulação do sangue no interior do coração transplantado.
A aprovação de xenotransplantes em seres humanos depende das agências reguladoras internacionais (FDA e Agência Europeia). Os obstáculos são a exigência de estudos com grandes números de animais. Não parece muito lógico, porque a resposta imunológica em outras espécies é diferente da nossa. Drogas que impeçam a rejeição num primata não humano podem não agir em humanos.
Xenotransplantes para receptores em morte cerebral ajudam a colher dados, mas envolvem limitações para manter os pacientes vivos por mais de alguns dias.
Área muito promissora é a de xenotransplantes de células pancreáticas produtoras de insulina, porque requerem alterações genéticas mais simples. Experiências com babuínos diabéticos mostram que os animais podem sobreviver pelo menos dois anos sem receber insulina.
Transplantes de células e órgãos de porcos transgênicos para seres humanos deixaram de parecer ficção científica.