Doação e transplante de órgãos no Brasil | Entrevista

Apesar de muitos avanços, o país ainda sofre disparidades nas estatísticas de doação e transplantes. Veja entrevista sobre doação de órgãos no Brasil.

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Publicado em: 30 de setembro de 2011

Revisado em: 11 de agosto de 2020

Dr. Ben-Hur Ferraz Neto fala sobre a situação de doação de órgão no Brasil e como cada um pode contribuir para melhorar os números brasileiros na área.

 

Como em muitas outras áreas, o Brasil apresenta enormes disparidades nas estatísticas de doações e transplantes de órgãos. Enquanto alguns estados há anos alcançam números comparáveis aos melhores no mundo, outros chegam ao final do ano sem realizar um transplante sequer. Nesta entrevista, o presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), Dr. Ben-Hur Ferraz Neto, fala sobre a situação das doações e transplantes efetivados no País e como cada um pode contribuir para melhorar os números brasileiros na área.

 

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Drauzio — Há alguns anos estabeleceu-se que todos os brasileiros seriam doadores de órgãos e que quem não o quisesse fazer, teria de registrar essa negativa no R.G. Hoje, como se define quem é ou não doador?

Ben-Hur Ferraz Neto – A inscrição na carteira de identidade e de motorista que mostrava a opção do indivíduo e, na sua ausência, a presunção de que se tratava de um doador, não tem mais valor desde o ano 2000. Nós passamos do sistema de doação presumida para o que chamamos de doação consentida. O que vale, hoje, é o que a família resolve. Quem autoriza a doação de órgãos atualmente é a família, começando pelos parentes mais próximos: pai e mãe, filhos, marido ou esposa e assim por diante. Estamos convencidos de que, culturalmente, essa é a forma mais adequada para nós.

 

Drauzio — Ainda assim, as negativas familiares sempre foram a principal causa de nãoefetivação de transplantes.  No RBT (Registro Brasileiro de Transplantes) parcial de 2011, notamos que, em relação a 2010, houve aumento no número de recusas na maioria dos estados. Em muitos casos, esse aumento foi muito grande. No Maranhão, por exemplo, o número de negativas saltou de 33,3% em 2010 para 78,6% em 2011 até o momento. A que se deve essa mudança?

Ben-Hur Ferraz Neto – O número de negativas, à primeira vista, pode ser interpretado como algo que aumentou, mas não é verdade. O que ocorreu foi uma mudança no método de avaliação. Antes, a porcentagem de negativas familiares era dada em relação ao número de doadores. Só que alguns potenciais doadores deixavam de ser doadores no meio do caminho, como ocorre em casos de parada cardíaca, ou algumas famílias não eram encontradas para a entrevista. Assim, a porcentagem de negativas acabava caindo. Agora, o dado é em relação ao número de famílias entrevistadas, o que revela um número mais fidedigno da recusa familiar no Brasil.

 

Drauzio — Por esse novo método, não temos dados de alguns estados. Mesmo assim, pelo que se sabe, o número de negativas familiares no Brasil é considerado aceitável?

Ben-Hur Ferraz Neto – De forma geral, entre os países melhores colocados no que se refere a doações de órgãos, a cada quatro famílias, uma nega a permissão. Entre os piores, a cada quatro famílias, duas negam. Nós estimamos não estar longe disso. Pelo grau de educação e de informação do nosso povo, podemos concluir que o brasileiro aceita bem o processo de doação.

 

Drauzio — Qual é o quadro atual de transplantes efetivados no Brasil?

Ben-Hur Ferraz Neto – Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo a realizar transplantes de órgãos (6402 em 2010, sem contar células e tecidos); fica atrás apenas dos Estados Unidos. Mesmo assim, esse é um número muito pequeno, se considerado o tamanho de sua população. Além disso, infelizmente, existem discrepâncias muito grandes entre os estados. Nós deveríamos ter de 20 a 25 doadores de fígado pmp (por milhão de população), por exemplo, mas temos ao redor de oito. Só que em São Paulo, esse número chega a 16. No Ceará, alcança 18. São números bem próximos da demanda local e até acima de muitos países desenvolvidos. Por outro lado, as regiões Norte e Centro-oeste sequer têm equipes de transplante de fígado. Apesar disso, pode-se dizer que o País está no caminho certo.

 

Drauzio — O que leva a essa conclusão?

Ben-Hur Ferraz Neto – A organização do sistema, do ponto de vista de transparência e de credibilidade, amadureceu. Hoje, apesar de todos os problemas que o Brasil enfrenta, as pessoas estão convencidas de que ninguém consegue passar na frente de ninguém, nem por questões econômicas nem políticas. E não consegue, mesmo. No primeiro semestre de 2011, já registramos mais de dez doadores pmp, um recorde histórico. Em estados como Santa Catarina, São Paulo, Ceará, Rio Grande do Norte, os números têm aumentado progressivamente. São Paulo e Santa Catarina, por exemplo, têm índices muito superiores à média dos Estados Unidos e da Europa. Mas precisa haver investimento, vontade política e ações baseadas em um programa estruturado. Não adianta sair por aí fazendo o que se “acha” que vai resolver a questão.

 

Drauzio — Que medidas precisam ser tomadas para melhorar o número de doações e transplantes realizados no País?

Ben-Hur Ferraz Neto – A Saúde Pública como um todo tem que melhorar para que possamos melhorar também a captação de órgãos. Quem é o potencial doador? Na maioria das vezes, é um indivíduo que teve um AVC ou um trauma craniencefálico, que evoluiu para morte encefálica. Em ambos os casos, trata-se de um indivíduo que até aquele momento estava se sentindo bem e, por isso, será atendido nos serviços de emergência. Então, na medida em que os serviços de emergência têm problemas graves de atendimento que não superam, a possibilidade de efetivar transplantes também fica limitada, pois ficam prejudicados o processo de diagnóstico de morte encefálica e a manutenção dos potenciais doadores. É indispensável haver, além de informação, a profissionalização do sistema de captação de órgãos em parceria com os estados e uma política local de doações. Sem dúvida, esses são os três pilares para que a questão seja desenvolvida com sustentabilidade e melhora progressiva.

 

Drauzio — Ações em nível local são importantes nessa questão, portanto.

Ben-Hur Ferraz Neto – É preciso formar profissionais que possam trabalhar em todos os lugares e sobreviver dessa profissão em qualquer região do País. Precisamos evoluir dos bons números pontuais para um quadro que contemple melhor distribuição de órgãos doados e melhor acesso ao transplante no País como um todo. Não adianta um indivíduo da Região Norte precisar de um transplante de fígado e só poder fazer na Região Sudeste. Por ser um brasileiro como outro qualquer, ele tem o direito de ser transplantado em qualquer estado. Entretanto, o acesso fora do estado de origem é mais complexo.

 

Drauzio — A troca de órgãos entre estados é uma saída para ajudar a diminuir as disparidades entre as regiões?

Ben-Hur Ferraz Neto – A princípio, os órgãos captados em um determinado estado são disponibilizados para os receptores que estão na lista daquele estado. É uma forma absolutamente lógica de otimizar a qualidade. Transplantar um fígado que ficou 16 horas no gelo é pior que transplantar um que ficou oito. Além disso, esse sistema cria certo estímulo local. Na medida em que os órgãos ficam na sua própria região, existe uma tendência de que esse trabalho seja reconhecido naquela área.

Todavia, existe um sistema previamente estabelecido para a troca entre regiões. Caso um órgão seja captado em um determinado estado que não tem aquele tipo de transplante ou que não tenha, naquele momento, nenhum receptor compatível, a Secretaria de Saúde do local, por meio da sua Central de Transplantes, entra em contato com a Central Nacional, que fica em Brasília. A Central Nacional, então, redistribui esse órgão mediante alguns critérios também previamente estabelecidos. Um deles é a malha aérea disponível. Por isso, não adianta definir que um órgão de São Paulo vá para o Acre, se não há transporte que faça o trajeto em tempo viável. Depois da disponibilidade aérea, vêm os critérios de gravidade, compatibilidade, etc., o que torna o acesso ainda mais difícil.

 

Drauzio — O Ceará é um dos estados que figura entre os primeiros colocados na efetivação de transplantes de vários órgãos, apesar de o Nordeste como um todo não apresentar números tão bons. Gostaria que o senhor explicasse a experiência desse estado.

Ben-Hur Ferraz Neto – Existe a necessidade de um interesse local no desenvolvimento de qualquer tipo de novidade ou progresso. O estado do Ceará criou uma política estadual de transplantes. Não uma política de ganhar votos, mas uma política de ação. Simplesmente foi colocada, entre as prioridades, a política de transplantes, que consiste em investir na formação de um grupo para fazer o trabalho de captação de órgãos. Para tanto, foram formados profissionais e feitas contratações de pessoal. A atual coordenadora estadual do Ceará (Dra. Eliana Régia Barbosa de Almeida) é uma das pessoas que têm atividade muito forte na formação de equipes ao redor do Brasil via ABTO. O sucesso dessa política, portanto, é fruto de um trabalho contínuo que obviamente requer um investimento inicial. Hoje, a equipe transplantadora de fígado do Ceará é uma das melhores do nosso País.

 

Drauzio — Pelo RTB do primeiro trimestre de 2011, percebemos certa apreensão com o número de doações, que até aquele momento estavam abaixo das expectativas. Já no RTB do primeiro semestre, ficou evidente uma inversão quase completa desse quadro. O ritmo de doações e transplantes é flutuante de forma aleatória ou existe algo que explique esse movimento em tempo tão curto?

Ben-Hur Ferraz Neto – Existe uma sazonalidade no que diz respeito à doação, mas nesse caso específico da diferença do primeiro trimestre para o primeiro semestre de 2011, na minha avaliação, pesou outro fator importante, as eleições estaduais. Todas as Centrais de Transplante são órgãos oficiais das Secretarias de Estado da Saúde. Como houve grande mudança nos governos e, consequentemente, a substituição do secretariado, tenho conhecimento de que algumas secretarias suspenderam os investimentos até que o novo secretário tomasse pé da realidade daquele local.

Por isso, algumas secretarias que tinham na sua programação contratar mais pessoas, não o fizeram, e algumas até deixaram de renovar contratos que eram emergenciais. Isso deve ter acarretado um decréscimo inicial que obviamente foi percebido pelos secretários então empossados e a tendência de queda foi revertida. Mas eu mesmo testemunhei, como presidente da ABTO, no primeiro trimestre de 2011, uma forte preocupação por parte de alguns coordenadores de transplante a respeito das políticas que estavam sendo freadas pelos novos secretários.

 

Drauzio — O impacto de questões políticas no quadro de transplantes, então, é imediato.

Ben-Hur Ferraz Neto – É rápido porque são questões que podem impedir ou não a manutenção de profissionais que trabalham naquela atividade. Bastar cortar o cargo para cortar a ação. Como já dissemos, no Brasil, a doação de órgãos está crescendo, mas se caem os números em São Paulo, Santa Catarina e Ceará, a influência será muito grande, pois esses três estados são os maiores captadores de órgãos do país. Portanto, se tivermos problemas em algumas cidades desses estados – e tivemos –, isso deve ter repercutido nos resultados do começo do ano.

 

Drauzio — Que medidas fora do âmbito político podem ser tomadas para melhorar as estatísticas de doações no Brasil?

Ben-Hur Ferraz Neto – O melhor a fazer é cada um conversar com seus familiares em um momento traqnuilo, sem dor, fora de um contexto de tristeza, sobre a vontade de ser um doador. Como os potenciais doadores são aqueles que no dia anterior ou alguns dias antes de morrer estavam ótimos, conhecer a vontade dessa pessoa pode ser fundamental para a aceitação ou recusa da doação. Se a vontade da pessoa que morreu for desconhecida e aquela família nunca discutiu o assunto, claro que aquela hora de dor é o pior momento para falar sobre este assunto, e a probabilidade de uma negativa será sempre maior. Então, se as pessoas quiserem que seus órgãos sejam doados, a melhor forma de fazê-lo é conversar com seus familiares a respeito de sua vontade e intenção.

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