Publicado em 01/09/2011
Revisado em 11/08/2020

Em 1992, a cocaína injetável foi varrida do mapa. No entanto, naquele mesmo ano, a epidemia do crack invadiu o Carandiru. Para entender o que se passou, é preciso conhecer um pouco da farmacologia da cocaína.

 

O uso de droga ilícita é como a moda: vem e passa.

Em 1989, comecei um trabalho voluntário em presídios, que dura até hoje. No Carandiru, naquela época, a moda era injetar cocaína na veia. Os presos vinham pele e osso, com os olhos ictéricos e os braços marcados pelas agulhas e os abscessos causados por elas.

Naquele ano, colhemos amostras de sangue dos 1.492 detentos registrados no programa de visitas íntimas: 17,3% dos homens eram HIV-positivos, e 60% estavam infectados pelo vírus da hepatite C.

A partir desses dados, começamos um trabalho de prevenção que constava de palestras e vídeos educativos. Lembro que o diretor-geral tentou me convencer da inutilidade da iniciativa:

— O senhor está sendo ingênuo. Quem injeta cocaína na veia é irrecuperável, não tem mais nada a perder.

Estava errado, o resultado foi surpreendente: em 1992, a cocaína injetável foi varrida do mapa, fenômeno que se espalhou pelos outros presídios e pelos becos da periferia de São Paulo. A moda do baque na veia tinha chegado ao fim.

 

Veja também: As mães do crack

 

Não havia motivo para comemoração, no entanto: naquele ano, o crack invadiu o Carandiru. Para entender o que se passou, é preciso conhecer um pouco da farmacologia da cocaína.

Quando inalada sob a forma de pó, a cocaína é absorvida através da mucosa nasal, penetra os vasos sanguíneos superficiais, cai na circulação e atinge o cérebro. O processo é relativamente lento, a euforia aumenta gradativamente, atinge o pico e diminui até desaparecer.

Injetada na veia, vai direto para o coração, depois para os pulmões, e volta para o coração de onde será bombeada para o cérebro. O efeito é muito mais rápido e passageiro. A sensação é de um baque de prazer – daí o nome “baque na veia” – experiência muito mais intensa do que a obtida por inalação.

Fumada na forma de crack, a droga chega ao cérebro mais depressa do que ao ser injetada na veia, porque não perde tempo na circulação venosa, cai direto no pulmão. Do cachimbo ao cérebro, leva seis a dez segundos. O efeito é semelhante ao baque da injeção intravenosa, porém ainda mais rápido e fugaz.

O crack substituiu o baque e se disseminou pela cadeia feito água morro abaixo. Quando um preso negava ser usuário, eu partia do princípio de que mentia. Devo ter cometido pouquíssimas injustiças.

Na segunda metade dos anos 1990, uma das facções que dominavam os presídios se sobrepôs às demais. Seus líderes rapidamente perceberam que os craqueiros criavam obstáculos para a ordem econômica que pretendiam implantar. A solução foi proibir o crack. A lei é clara: fumou na cadeia, apanha de pau; vendeu, morre.

Ao chegar, o egresso da cracolândia dorme dois ou três dias consecutivos; só acorda para as refeições. Depois desse período, passa alguns dias um pouco agitado, mas aprende a viver sem crack.

A cocaína não é tão aditiva como muitos pensam, se o usuário não tiver acesso a ela, nem aos locais em que a consumia, nem entrar em contato com companheiros sob o efeito dela, nada acontece. Ao contrário, a simples visão da droga faz disparar o coração, provoca cólicas intestinais, náuseas e desespero.

Quebrar essa sequência perversa de eventos neuroquímicos não é tão difícil: basta manter o usuário longe do crack.

Vale a pena chegar perto de uma cracolândia para entender como é primária a ideia de que o craqueiro pode decidir em sã consciência o melhor caminho para sua vida. Com o crack ao alcance da mão, ele é um farrapo automatizado que não tem outro desejo senão o de conseguir a próxima pedra para o cachimbo.

Veja a hipocrisia: não podemos interná-lo contra a vontade, mas podemos mandá-lo para a cadeia assim que roubar o primeiro celular.

Não seria mais lógico construirmos clínicas pelo País inteiro com pessoal treinado para lidar com os dependentes? Não sairia mais em conta do que arcar com os custos materiais e sociais da epidemia?

É claro que não sou ingênuo a ponto de imaginar que, ao sair desses centros de recuperação, o ex-usuário se transformaria em cidadão exemplar. Mas, pelo menos haveria uma chance. Se continuasse na sarjeta, que oportunidade teria?

E, se ao ter alta da clínica, recebesse acompanhamento ambulatorial, apoio psicológico e oferta de um trabalho decente desde que se mantivesse de cara limpa documentada por exames periódicos rigorosos, não aumentaria a probabilidade de ficar curado?

Países como a Suíça que permitiam o uso livre de drogas em espaços públicos, abandonaram a prática ao perceber que a mortalidade aumenta. Nós convivemos com as cracolândias sem poder internar seus habitantes para tratá-los, mas exigimos que a polícia os prenda quando se comportam mal. Existe estratégia mais estúpida?

Na Penitenciária Feminina em que trabalho hoje, atendo muitas ex-usuárias de crack. Quando lhes pergunto se são a favor da internação compulsória dos dependentes da cracolândia, todas respondem que sim. Nunca encontrei uma que sugerisse o contrário.

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