Desde o início da imunização, faltam dados de qualidade que permitam avaliar as condições em que a população negra vem sendo vacinada no país.
Por pelo menos um mês após o início da pandemia, o Ministério da Saúde não coletou dados relacionados à raça ou cor da pele nos casos de covid-19 no Brasil. A exigência da variável só passou a ser requisitada em meados de abril de 2020, após pressão de movimentos sociais. Depois de quase dois anos, porém, as informações continuam inconclusivas.
Com o avanço da vacinação em todo o país, o GT de Racismo e Saúde da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) buscou avaliar o preenchimento do campo raça/cor na aplicação dos imunizantes entre janeiro e junho de 2021. A percepção foi a de que a negligência nos registros ainda é um obstáculo para o monitoramento da imunização nas populações que sofrem com vulnerabilidade social – em especial, a negra.
Os poucos dados disponíveis não são de qualidade
Tomando como base as informações do SI-PNI (Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunizações), a Abrasco constatou que apenas 7 dos 27 estados brasileiros tiveram tendência positiva no preenchimento das informações étnico-raciais sobre a 1° dose, o que representa apenas 25,9% do país. Quando se trata da 2° dose, o percentual diminui quase pela metade: apenas 4 estados (14,8%) evoluíram na alimentação dos bancos de dados.
“E nós não estamos avaliando aqui a qualidade desse registro. Estamos falando somente dos que continham algum tipo de informação”, lembra Edna Maria de Araújo, membro do GT Racismo e Saúde da Abrasco e professora do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).
De forma geral, o SI-PNI tem uma taxa nacional de preenchimento da variável de 74%, o que é muito abaixo do necessário para o acompanhamento adequado do avanço da imunização entre as diferentes populações. O registro varia também entre as unidades federativas e até mesmo entre os próprios bairros, impossibilitando uma visão homogênea da situação no país.
“A presença de raça/cor em todos os documentos produzidos pelo Ministério da Saúde é uma exigência da portaria n° 344, regulamentada desde 2017. Mas nós estamos vendo que, quando há o preenchimento, as informações não são completas. O problema é que só esses dados possibilitam que nós monitoremos se está havendo progresso nas tentativas de superação das iniquidades raciais no Brasil”, alerta Edna.
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O que sabemos sobre a vacinação na população negra?
No início da imunização nacional contra a covid-19, a Agência Pública divulgou um estudo que mostrava que pessoas negras estavam sendo duas vezes menos vacinadas do que pessoas brancas. A disparidade se deu, principalmente, por conta do público-alvo da campanha à época: os idosos.
“Tomar como parâmetro de vacinação a idade das pessoas é um critério inadequado. Historicamente, a população branca tem maior expectativa de vida do que a negra. Nesse contexto, é claro que ela seria vacinada primeiro”, argumenta a professora da UEFS.
Atualmente, com a extensão da campanha de vacinação para qualquer pessoa a partir dos 5 anos, a desigualdade pode ter diminuído, mas é difícil analisar sem dados concretos. Para Edna, as expectativas são pessimistas:
“Com o monitoramento inadequado, fica complicado de acompanhar. Mas, pelo conhecimento que acumulamos a partir de pesquisas e discussões, nós sabemos que a população em situação de vulnerabilidade é sempre a primeira a sofrer os impactos negativos da pandemia”, pontua.
Ao olhar para o avanço regional da vacinação no país, por exemplo, é possível traçar um paralelo com as dificuldades que a população negra pode estar sofrendo no acesso à imunização. No Brasil, a quantidade de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas é de aproximadamente 91 milhões, sendo 75% delas residentes das regiões Norte e Nordeste, de acordo com o Mapa da Distribuição Espacial da População Negra do IBGE.
Mas é justamente nessas duas regiões que a vacinação contra a covid-19 está mais atrasada. Segundo informações reunidas pelo consórcio de imprensa, dos dez estados que menos imunizaram com as duas doses ou a dose única até agora, sete são do Norte (Amapá, Roraima, Acre, Amazonas, Tocantins, Rondônia e Pará), dois do Nordeste (Maranhão e Alagoas) e apenas um do Centro-Oeste (Mato Grosso).
Até outubro de 2021, conforme um levantamento do Metrópoles, os pretos e pardos haviam recebido apenas 23% das doses da vacina, ainda que representem mais da metade da população brasileira. ¼ dos imunizantes aplicados, porém, não tinham o registro de raça/cor, provavelmente por conta das falhas dos estados em preencherem o banco de dados nacional.
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Hipóteses
Segundo Edna, a dificuldade no alcance de uma vacinação igualitária para a população negra pode acontecer por vários motivos. Veja alguns deles:
Dificuldade de acesso
O primeiro é a dificuldade de acesso às unidades de saúde, que muitas vezes ficam distantes das periferias e das regiões às margens dos centros das cidades.
“Além disso, os postos de atendimento, em sua maioria, não funcionam em um horário que atende às necessidades da população pobre. Geralmente estão abertos no período comercial, quando essas pessoas estão nas ruas trabalhando, seja no emprego formal ou informal”, lembra a professora.
Distribuição desigual da vacina pelo país
Outro ponto, levantado por vários secretários de Saúde ao redor do país, é a distribuição desigual de imunizantes entre os estados. A avaliação é que a divisão das doses não estaria respeitando a proporcionalidade de cada população, o que seria mais um motivo para as disparidades na cobertura vacinal.
“Não dá para tratar a população brasileira como se todos fossem iguais. O governo deveria ter planejado melhor para que não houvesse, por exemplo, problemas de atraso na chegada dos imunizantes”, critica Edna.
Precarização do SUS
Ademais, ela aponta também para a intensificação do sucateamento do Sistema Único de Saúde, do qual a maioria da população negra é dependente. “O SUS é precarizado desde o seu surgimento, mas, nos últimos anos, tornou-se um alvo ainda maior para aqueles que querem privatizar esse tipo de serviço. Em meio a uma pandemia, essa situação torna-se bastante preocupante”, opina.
Desinformação e negacionismo
Por fim, há ainda os efeitos da circulação de fake news por todo o país: parte considerável da população recusando-se a tomar a primeira dose da vacina ou desistindo de retornar para a segunda.
“Quando a gente fala de desinformação, estamos falando da produção de notícias com o propósito intencional de enganar. Em um país com um percentual tão grande de analfabetos e analfabetos funcionais, especialmente entre as populações mais vulneráveis, fica fácil convencê-los com as informações mais arbitrárias possíveis”, diz a professora.
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O que fazer?
Segundo ela, para diminuir as iniquidades raciais, seja em relação à vacina ou a qualquer outra questão, é preciso, antes de tudo, conhecer a extensão do problema.
“As respostas às desigualdades em saúde só podem ser bem direcionadas quando existe uma produção de dados completa e que dialogue com a realidade que objetiva transformar. As informações de raça e cor da pele são fundamentais para que a gente possa ter um diagnóstico sobre o impacto da pandemia e da falta de vacinas sobre as populações em situação de vulnerabilidade, sobretudo, na população negra”, finaliza.
Conteúdo desenvolvido em parceria com a Afrosaúde https://afrosaude.com.br/
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