Eletroconvulsoterapia e a nota do Ministério da Saúde | Coluna

Maior problema da nota emitida pelo Ministério é selecionar a eletroconvulsoterapia como grande exemplo de aparato terapêutico para tratar saúde mental.

Ilustração digital com perfil de cabeça com eletrodos.

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Publicado em: 12 de fevereiro de 2019

Revisado em: 11 de agosto de 2020

Maior problema da nota técnica emitida pelo Ministério é selecionar a eletroconvulsoterapia como grande exemplo de aparato terapêutico para tratar saúde mental.

 

Na segunda semana de fevereiro de 2019, o Ministério da Saúde publicou a nota técnica 11/2019 com algumas intenções para a área de saúde mental (na qual se inclui o tratamento da dependência química). Choveram matérias que quase invariavelmente davam destaque, com grande alarde, à maior abertura para o uso da eletroconvulsoterapia (ECT), conhecida popularmente como “terapia de choque”. A questão é que o maior problema da nota não é a terapia em si, mas sim o posto em que ela é colocada dentro do texto.

Podemos dizer que a cultura pop contribuiu para a estigmatização dessa terapia, mas o retrato de pacientes amarrados e estrebuchando enquanto recebem choques na cabeça contra sua vontade tem base real. No nazismo alemão, em salas de tortura e em instituições imundas esquecidas pelo poder público e por familiares, como a retratada nos livros “Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex, ou “Bicho de sete cabeças”, de Austregésilo Carrano, o método era de fato utilizado indiscriminadamente e pouco ou nada de benéfico restava aos pacientes das sessões horripilantes. Nos manicômios, o benefício era colhido pela administração, que tinha muito mais facilidade para lidar com pacientes aéreos, atordoados, catatônicos e, com o tempo, desprovidos de tudo o que os faria humanos.

 

Veja também: Entrevista com especialista sobre eletroconvulsoterapia

 

A ideia de induzir convulsões para tratar transtornos mentais é antiga, data do século 16, quando experimentos medicinais ainda eram feitos por alquimistas. O uso de eletricidade data do fim dos anos 1930. Já na década de 1940, sua aplicação era comum nas alas psiquiátricas de hospitais dos Estados Unidos e Inglaterra. As indicações, porém, eram pouco definidas e o resultado era incerto. Havia quem melhorasse, havia quem piorasse.

Somente a partir dos anos 1950 iniciaram-se as primeiras pesquisas com estudos randomizados e comparação com outras modalidades de tratamento. O método científico nos trouxe mais conhecimento, mas mesmo hoje não é possível explicar exatamente como a ECT funciona. Temos alguma ideia de que a indução de convulsões altera o sistema nervoso central, mas as estruturas afetadas são muitas e complexas. Há muitos estudos sobre o tema e os achados ainda são variados. Há registros de benefícios, enquanto outros concluem que, diante de riscos como piora no longo prazo e disfunções da memória, não é possível sustentar a validade absoluta da técnica.

Em geral, as recomendações são de reconhecimento da eficácia em casos bem específicos, ressaltando sempre que mais estudos são necessários para compreender diversos pontos da prática, como faz esta revisão sobre o tema. Aparentemente, para um pequeno grupo de quadros clínicos ela pode ser a única alternativa. De forma geral, os grupos que podem se beneficiar estão nos extremos dos transtornos mentais. São casos de depressão grave e transtorno bipolar com episódios importantes de mania, por exemplo. Pessoas nessas condições têm sua qualidade de vida muito afetada, e após peregrinar por diferentes medicamentos e terapias, não raro passam a vislumbrar o suicídio como uma saída.

A psiquiatria é a especialidade médica que mais se aproxima do não exato. Ela não é conhecida pela precisão dos diagnósticos nem pelos tratamentos que funcionam de forma abrangente e previsível pela própria natureza da sua área de atuação. Consequentemente, sua ação é limitada quando se trata de evitar a morte. Para o paciente de um transtorno mental grave, a morte está ao seu alcance. Durante uma crise, quando estiver sozinho na desesperança, ninguém conseguirá impedir que atentem contra si mesmo. Esse atentado é a medida do seu sofrimento. Com a segurança que temos hoje, e tendo em vista que – reforço – sua indicação é bastante específica, não há motivo para, baseados em preconceitos, não dispormos de uma terapia que pode ser a última alternativa para alguns pacientes.

 

O grande porém

 

Precisamos, contudo, ficar atentos à forma como a terapia é mencionada na nota: “Quando se trata de oferta de tratamento efetivo aos pacientes com transtornos mentais, há que se buscar oferecer no SUS a disponibilização do melhor aparato terapêutico para a população. Como exemplo, há a Eletroconvulsoterapia (ECT)”. Por que, entre tantas ferramentas terapêuticas, escolher essa para citar? Ela está longe de ser o melhor exemplo de “melhor aparato terapêutico” para a saúde mental.

O método é indicado para um grupo muito restrito de pacientes, e apenas após o quadro se mostrar refratário a outras abordagens. Uma técnica com esse grau de limitação foi selecionada para constar da nota? O SUS precisa, antes, aprimorar seu atendimento primário, a começar pelo diagnóstico, que muitas vezes passa batido por outras especialidades. Precisa oferecer amplamente os tratamentos de primeira linha, que incluem medicamentos modernos e psicoterapia, ainda limitados na maioria das unidades do sistema público. É preocupante que entre todo o arsenal necessário ao cuidado psiquiátrico, a pasta tenha selecionado a ECT e não a promoção de terapias como a familiar (essencial em muitos casos, como nos de dependência química e anorexia) e a ocupacional, por exemplo. Nem que fosse para “sair bem na fita”, seria um direcionamento muito mais pela via do cuidado.

Uma hipótese é que a terapia de eletroconvulsão casa melhor com os caminhos que as políticas públicas parecem tomar atualmente, pendendo para formas mais “invasivas” de lidar com problemas. A mesma nota faz questão de salientar, por exemplo, que “não há qualquer impedimento legal para a internação de pacientes menores de idade em Enfermarias Psiquiátricas de Hospitais Gerais ou de Hospitais Psiquiátricos”. Entre tantas aberturas legais que poderiam ser destacadas, essa é uma escolha singular, ainda mais quando pontua que “a melhor prática indica a necessidade de que tais internações ocorram em Enfermarias Especializadas em Infância e Adolescência. No entanto, exceções à regra podem ocorrer, sempre em benefício dos pacientes”. Ou seja, se menores de idade forem internados em instituições não especializadas nesta faixa, a prática já estará respaldada pela nota.

O eletrochoque cria um cenário muito mais coeso com a internação psiquiátrica e a abstinência para dependentes químicos (também mencionada na nota). Reforçar a dupla medicamentos-psicoterapia, porém, faria muito mais sentido no enfrentamento de doenças mentais em termos de saúde pública, pela qual o ministério deve zelar.

* O Ministério da Saúde retirou a nota do ar após a repercussão de seu conteúdo, mas ela pode ser acessada aqui.

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