Precisamos falar sobre hipercolesterolemia familiar

Pouco conhecida pela população e pelos médicos, a HF não permite que o colesterol baixe apenas com mudanças no estilo de vida.


Tarima Nistal postou em Cardiovascular

Ilustração digital de artéria quase fechada por placas de gordura.

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Publicado em: 18 de setembro de 2015

Revisado em: 22 de outubro de 2021

Pouco conhecida, a hipercolesterolemia familiar não tem cura e pode levar à morte. Doença que provoca colesterol alto exige o uso contínuo de medicamentos. 

 

“Minha história começa com um infarto aos 28 anos”, revela André Luis Batista Pereira, 40 anos, com um constante sorriso que esconde a convivência com uma doença perigosa, instável e que mata mais do que se imagina. Esse evento tão precoce fez com que os médicos desconfiassem que seus altos níveis de colesterol não eram devidos apenas ao estilo de vida, mas sim consequência de uma doença pouco conhecida pela classe médica e pela população, a hipercolesterolemia familiar (HF).

Basicamente, o nome difícil significa colesterol alto devido a causas genéticas. Nesses casos, apenas a mudança de estilo de vida não é suficiente para baixar os níveis de colesterol. Alimentação saudável, prática de exercícios físicos e todas as outras medidas que são recomendadas pelos órgãos de saúde, como parar de fumar e de beber em excesso, não são o bastante. Quem sofre de HF tem de saber que vai precisar usar medicamentos continuamente e que tem uma doença incurável. “É um casamento sem divórcio. Eu nasci com ela, vivo com ela. Só desejo não morrer por causa dela”, diz André, que hoje é fundador e diretor da Associação Hipercolesterolemia Familiar.

“Quando infartei, tinha duas artérias 80% obstruídas e uma 100%, por conta do LDL (o chamado colesterol ruim) que estava em 409 mg/dl — dependendo do indivíduo, a taxa máxima recomendada pelos médicos é de 70 a 130 mg/dl. Depois disso, foram feitos exames de investigação em minha família. Detectaram que minhas duas irmãs — uma com 20 e poucos anos e outra com apenas 16 anos e bem magra — também tinham níveis altíssimos de LDL. E foi aí que minha mãe lembrou que o meu pai havia morrido de infarto fulminante e colesterol alto aos 48 anos.”

Antes do infarto, André já fazia exames com regularidade e sabia que seus índices de colesterol costumavam oscilar. Quando estavam altos, ele era tratado com o uso de estatinas, como qualquer outro paciente com níveis altos de LDL, por curtos períodos. O problema é que, mesmo sendo examinado constantemente, nenhum médico havia perguntado o histórico de sua família e muito menos desconfiado de HF.

Além da mudança na alimentação, ele passou a praticar exercícios físicos e a tomar nove remédios, a maioria em dose máxima. E ainda tem que aguentar os efeitos colaterais da medicação. “Um desses remédios causa vermelhidão e ardência na pele. Sabe o Hellboy [personagem de história em quadrinhos]? Eu fico como ele!”, conta.

“Aí você começa a tomar a medicação, e tem uma hora que pensa que já tomou remédio demais. E relaxa, né? Infelizmente, foi isso o que eu fiz.” Aos 38 anos, dez anos após a cirurgia em função do primeiro infarto, André sofreu o segundo ataque cardíaco. Ele estava em uma sala de reunião, tratando do corte de funcionários em seu trabalho, uma situação bastante estressante. Ao chegar ao hospital, a médica avisou: “Você está tendo o segundo infarto, vai passar pelo segundo cateterismo. Não vai escapar vivo do terceiro”.

É comum que o paciente com HF abandone o tratamento e os medicamentos. O tratamento de fato requer muito esforço, e às vezes oferece resultados pouco recompensadores. Seguir o tratamento à risca não garante necessariamente que o LDL baixe. Na época do primeiro infarto, o LDL de André era de 409 mg/dl; hoje, é de 435 mg/dl. Ainda assim, André pode se considerar um homem de sorte. Marcelo Bertolami, cardiologista e diretor científico do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, em São Paulo, alerta que, mundialmente, metade das pessoas que infartaram (independentemente de terem ou não HF) não teve nenhum sintoma antes do episódio. E pior: desses, 50%  não tiveram uma segunda chance e morreram.

 

Diagnóstico

 

Talvez André, seu pai e tantas outras pessoas pudessem ter evitado o infarto se a HF tivesse sido diagnosticada rapidamente e tratada da maneira correta. Entretanto, a realidade não é assim: a HF é doença silenciosa, que não causa nenhum sintoma (em casos raros, pode haver acúmulo de gordura nos pés e na região dos olhos) e atinge uma em cada 200 pessoas.

É preciso entender que o estilo de vida não é o único responsável pelo aumento da taxa de colesterol. “Gordo, magro, sedentário, qualquer um pode ter colesterol elevado. Tenho um paciente esportista, que frequenta academia e acabou de ter infarto do miocárdio aos 30 anos de idade. A herança genética é um fator muito importante”, diz o doutor Francisco Fonseca, presidente da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (SOCESP). Por isso é essencial que os médicos estejam preparados para saber reconhecer um caso de HF.

Para detectar a hipercolesterolemia familiar, as medidas são muito simples. Bastam uma investigação bem-feita do histórico familiar e exame de sangue que meça os níveis de colesterol ruim. No entanto, a falta de informação sobre a doença dificulta o diagnóstico e, portanto, o tratamento (estima-se que apenas 1% dos casos seja diagnosticado). Poucos médicos sabem que se trata da doença genética de maior incidência no mundo, segundo o dr. Bertolami.

O colesterol alto, associado à hipertensão, é um dos fatores de risco que mais aumentam os índices de mortalidade por doença isquêmica do coração e AVC. “Para se ter uma ideia, nos EUA, em duas décadas, o número de casos de doenças coronarianas diminuiu em 50%. Metade dessa taxa se deveu à redução do colesterol e da hipertensão”, explica o doutor Fonseca,  E isso é muito importante porque, de acordo com dados da SOCESP, em dez anos o estado de São Paulo não conseguiu reduzir as taxas de AVC, infarto e insuficiência cardíaca.

 

Tratamento

 

“Médico e paciente têm que ser parceiros. Infelizmente, acredito que isso não aconteça com frequência na rede pública. Existem profissionais que não estão bem preparados, que têm pouco tempo para as consultas e que muitas vezes não conseguem prescrever medicamentos, porque estão em falta”, explica Fonseca. “Além disso, a maioria das escolas médicas não se programou para ter docentes capazes de treinar adequadamente seus alunos e residentes para que tenham uma boa formação sobre a doença. Por exemplo, está na Diretriz Brasileira de hipercolesterolemia familiar que crianças com histórico de doença coronariana prematura na família têm que fazer o exame para medir o colesterol ruim aos 2 anos. Crianças sem histórico familiar devem fazer [o exame] aos dez anos. Mas isso não é seguido.”

André, como paciente, reforça: “Muitas vezes, faltam conhecimento e sensibilidade em alguns profissionais da saúde. Porque se os médicos fossem um pouco mais sensíveis, um pouco mais atenciosos e escutassem o paciente, eles acabariam evitando muitas complicações.”

Foi pensando nesses pacientes, na classe médica e na população leiga que foi criada a Associação HF, da qual André é fundador e diretor. Fundada em maio de 2014, a associação oferece apoio psicológico para os pacientes que precisam encarar resultados não tão animadores do tratamento e também alerta para o fato de que o colesterol alto não é apenas fruto de uma vida desregrada nem ocorre apenas em pessoas acima do peso.

Pergunto para André se hoje em dia ele tem medo que algo lhe aconteça, mesmo adotando medidas como medicação adequada, alimentação regrada e prática de exercícios físicos. Ele responde: “Você quer saber se eu tenho medo de morrer? Tenho muito medo. Acabei me tornando uma pessoa medrosa. [A morte] vai chegar, mas espero que ela seja por qualquer outra causa que não a doença”.

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