close em mãos de mulher algemada
Publicado em 20/02/2019
Revisado em 21/10/2021

Travestis encaram preconceito fora e dentro das cadeias masculinas, mas muitas preferem a prisão à crueldade que enfrentam nas ruas.

 

Tenho interesse pelo universo das travestis, desde que entrei numa cadeia pela primeira vez. Como conseguem sobreviver e impor respeito em celas superlotadas de homens machistas e violentos?

No antigo Carandiru, em 1989, realizei um inquérito epidemiológico para avaliar a prevalência do HIV.

Testamos os 1492 inscritos no Programa de Visitas Íntimas, que lhes possibilitava receber as companheiras no fim de semana, direito adquirido havia pouco tempo.

 

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A intenção era a de avaliar a gravidade da epidemia na população carcerária, que se infectava com seringas e agulhas compartilhadas no uso de cocaína injetada na veia – em voga naquele tempo –, e de demonstrar o tamanho da irresponsabilidade do Estado, ao admitir dentro das muralhas mais de mil mulheres, todas as semanas, para manter relações sexuais sem lhes dar informações sobre contracepção, infecções sexualmente transmissíveis nem preservativos para se protegerem.

Os testes revelaram que 17,3% dos participantes do programa eram HIV-positivos e que 60% estavam infectados pelo vírus da hepatite C que pode levar à cirrose e ao câncer de fígado, com o passar dos anos.

Extrapolados esses números para os quase 8 mil encarcerados no presídio, ficava evidente que cerca de 1.200 carregavam o vírus da aids nas secreções sexuais. Os resultados foram publicados em revista científica internacional.

A despeito da romaria aos gabinetes das autoridades penitenciárias do Estado, na tentativa de convencê-las a adotar medidas preventivas para evitar a disseminação da epidemia, ainda se passariam alguns anos para que conseguíssemos distribuir preservativos nas prisões paulistas.

No mesmo estudo, testamos separadamente 82 travestis que cumpriam pena no último andar do Pavilhão Cinco, espaço reservado a elas: 78% eram HIV-positivas. Das que cumpriam pena havia mais de seis anos, 100% eram portadoras do vírus.

Apanhar do pai, dos irmãos e dos moleques na rua por causa dos modos femininos, eram acontecimentos rotineiros na infância de todas. Abandonar a casa dos pais para viver por conta própria, mal chegada a adolescência, também.

Nunca soube de um estudo em que a totalidade de um subgrupo estivesse infectada.

Entre as travestis testadas, identificamos uma que nos 12 meses anteriores ao exame, tivera mais de mil parceiros na cadeia, com os quais praticara sexo anal receptivo – a mais arriscada das práticas – e se mantinha HIV-negativa.

Na manhã do dia 2 de outubro de 1992, dei uma aula sobre a transmissão do HIV para as travestis reunidas no palco do que tinha sobrado de um antigo cinema, no Pavilhão Seis, incendiado numa rebelião anterior.

Quando terminei a apresentação, perguntei se havia alguma dúvida. Uma travesti magrinha, de cabelos oxigenados, que passara o tempo todo com as pernas cruzadas a meu lado, lixando as unhas, levantou a mão:

— Doutor, a gente agradece a sua boa vontade, mas todas nós estamos cansadas de saber como pega ou não pega o vírus, o que nós precisamos é de camisinha. Sem ela, o que adianta falar?

Nuca esqueci desse dia, por causa da lição que recebi e porque horas mais tarde começariam a rebelião do Pavilhão Nove e o maior massacre da história das prisões brasileiras.

No mês passado, recebi um convite do dr. Guilherme Rodrigues, diretor de uma das quatro prisões que formam o Cadeião de Pinheiros, um dos Centros de Detenção Provisória da capital, para fazer uma palestra para as 198 travestis detidas naquela Unidade.

Falamos sobre prevenção às infecções sexualmente transmissíveis e sobre a condição das travestis na sociedade brasileira. Vinham das periferias mais pobres de São Paulo e de outras cidades do estado. Apanhar do pai, dos irmãos e dos moleques na rua por causa dos modos femininos, eram acontecimentos rotineiros na infância de todas. Abandonar a casa dos pais para viver por conta própria, mal chegada a adolescência, também.

O preconceito contra as travestis é tão arraigado, que basta colocarem os pés na rua para serem consideradas marginais. “Travesti é assim: se ainda não fez, vai fazer”, disse um delegado certa vez.

Ninguém as defende da arbitrariedade policial nem das agressões dos celerados que as espancam pelo simples fato de existirem. Muitas se suicidam ou perdem a vida nas mãos desses psicopatas com transtornos sexuais.

No fim da conversa, queixaram-se da superlotação das celas naqueles dias de calor infernal e da falta de acesso aos hormônios para manter as formas femininas.

Quando perguntei onde sentiam mais segurança e eram mais respeitadas, na cadeia ou na rua, responderam: “Na cadeia”. Nenhuma discordou.

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