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LGBTQIAP+

Preconceito médico ameaça saúde LGBTQIAPN+; veja como denunciar

Publicado em 04/07/2024
Revisado em 20/09/2024

Relatos de desinformação e constrangimento durante exames ou consultas médicas são frequentes em pacientes LGBTQIAPN+; especialista explica como agir.

 

Thali Gonçalves tem 25 anos e foi pela primeira vez ao ginecologista aos 14 anos. Nessa época, ela já se identificava como pessoa não binária com vulva que se relaciona com pessoas com vulva – o que informou à médica. Thali não esperava, contudo, que ao receber essa informação a profissional descartaria a necessidade de testagem contra infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), a realização do papanicolau (exame para investigar lesões causadas pelo HPV) e ainda diria que “no seu caso” não era necessário realizar consultas ginecológicas regularmente. 

“Só aos 23 anos encontrei uma ginecologista que fizesse o pedido para que eu realizasse esses exames”, conta. “Antes, cheguei a ouvir que eu era ‘virgem’ por não ter relações sexuais heterosexuais, e que, por isso, não precisaria fazer esses testes”, completa. 

Thali não detectou nenhuma IST, mas poderia ter sido diferente, de acordo com a médica de família e comunidade Luísa Chaves. “Após qualquer tipo de contato sexual, há risco de contração de IST, por isso, é necessário realizar monitoramento. Além disso, pessoas com vulva que exerçam atividade sexuais com penetração – seja com pênis, objetos, dedos etc. – devem realizar o papanicolau regularmente como prevenção contra o câncer de colo de útero provocado pelos vírus HPV”, explica. 

Esse tipo de desinformação e constrangimento fez com que Thali evitasse durante muito tempo a ida ao ginecologista, o que, segundo a dra. Luísa, não é incomum. “Com medo de serem discriminados, pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ se afastam dos serviços médicos, mesmo que às custas do cuidado com a própria saúde”, relata. 

Após passarem por situações constrangedoras durante a realização de exames laboratoriais, por exemplo, muitos pacientes LGBTQIAPN+ acabam optando por não repetir a experiência, segundo o infectologista Pedro Campana, do Núcleo de Medicina Afetiva (NuMa). “Para investigar algumas ISTs, como clamídia ou gonorreia, muitas vezes é necessário realizar a coleta de materiais da região anal. Acontece que, devido a estigmas e preconceitos reproduzidos por médicos e enfermeiros, muitos pacientes se sentem mal durante esse processo”, aponta.

A situação é ainda mais crítica para a população trans, de acordo com o infectologista. “O preconceito e os julgamentos acabam fazendo com que homens trans, por exemplo, deixem de fazer exames fundamentais para a detecção de cânceres, como mamografia e papanicolau”, diz. Segundo ele, a sensação de desconforto já começa com o uso do pronome inadequado pelos funcionários do sistema de saúde.

Nesse sentido, o especialista destaca também a existência de uma epidemia concentrada de aids na população trans. “Trata-se da principal causa de morte dessa população, sendo que uma em cada três mulheres trans vive com HIV no Brasil. Isso está ligado às dificuldades de acesso à prevenção, monitoramento, detecção e tratamento da doença, que hoje, na maioria das vezes, é controlável”, pontua. 

Vale frisar que, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antera), a expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é de 35 anos, menos da metade da média brasileira, que é de 75,5. Essa estatística é atribuída à violência a qual essa população está exposta, mas também às dificuldades de acesso à saúde, segundo o infectologista. “De maneira geral, a expectativa de vida da população LGBTQIAPN+ é impactada pelo preconceito médico”, destaca.

O especialista enfatiza que a maioria dos profissionais de saúde no Brasil não está capacitada para atender essa parcela da população. “Isso está muito ligado a preconceitos sociais e a uma lacuna existente na educação médica em relação a esse tema”, justifica. 

        Veja também: Como fazer um atendimento médico inclusivo? – DrauzioCast #196

 

Políticas públicas insuficientes

A Política Nacional de Saúde Integral da população LGBT+ existe há quase dez anos, mas os seus objetivos ainda estão longe de serem concretizados. A Política prevê, por exemplo, a sensibilização dos profissionais de saúde a respeito dos direitos dessa comunidade, o uso do nome social dos pacientes, entre outros pontos que, na maior parte das vezes, não acontecem na prática.

Mesmo nos Centros de Testagem e Aconselhamento (CTAs) e Serviços de Assistência Especializada (SAEs), estruturas do Ministério da Saúde direcionadas ao atendimento de pacientes com HIV e outras ISTs, nem todos os profissionais são capacitados para lidar com questões de saúde sexual e diversidade de gênero, segundo o dr. Pedro. “Além disso, esses centros especializados estão concentrados nos grandes centros urbanos e, portanto, são inacessíveis para grande parte da população”, completa.

Para mudar essa realidade, de acordo com o especialista, é necessário maior investimento nos serviços de assistência especializada e na capacitação dos profissionais de saúde para o atendimento adequado da população LGBTQIAPN+. “Mas, para isso, é necessário interesse político”, destaca.

Segundo a dra. Luísa, esse investimento em capacitação deve ocorrer de forma integral no sistema de saúde e não ficar restrita a profissionais de centros especializados em ISTs. “As pessoas LGBTQIAPN+ também têm dor de garganta, ficam gripadas, têm apendicite, entre diversas outras questões, e em todos esses momentos elas devem ser atendidas por profissionais preparados, que as tratem com respeito”, pontua.

Vale destacar que nesses centros especializados e outros postos de saúde é possível obter gratuitamente a profilaxia pré-exposição (PrEP), ferramenta importante para a prevenção da infecção pelo vírus HIV. “A PrEP é indicada para pessoas que fazem uso inconsistente de preservativos, mas especialmente para grupos que estão em maior risco, como homens cisgênero homossexuais e pessoas transgênero, bem como profissionais do sexo”, explica o infectologista.

 

Como denunciar lgbtfobia no ambiente médico

Desde 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou o crime de lgbtfobia (discriminação à população LGBTQIAPN+) ao de racismo. Isso quer dizer que, ao ser discriminada por pertencer a um grupo social, a vítima pode denunciar o ofensor pelo crime de racismo. “Isso pode ocorrer, por exemplo, se a pessoa for impedida de realizar um exame ou se se recusarem a atendê-la por ser LGBTQIAPN+”, descreve Mario Solimene Filho, especialista em direito para a comunidade LGBTQIAPN+. 

Além disso, em 2023, o STF equiparou a lgbtfobia ao crime de injúria racial. “Nesse caso, trata-se de uma violência mais individualizada, a partir do uso de nomes pejorativos, por exemplo. Se isso acontecer, seja dentro do ambiente hospitalar ou não, deve ser denunciado às autoridades policiais”, explica o especialista.

De forma geral, entretanto, o primeiro passo após esse tipo de ocorrência deve ser comunicar à gerência ou ouvidoria do local. “Aí, caso o problema não seja resolvido, vale a pena buscar auxílio jurídico ou denunciar à autoridade policial”, completa.

É possível realizar a denúncia:

  • Com a abertura de um Boletim de Ocorrência online ou presencialmente;
  • Em uma delegacia especializada, como a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi);
  • Ligar 100 (Disque Direitos Humanos).

        Veja também: Serviços de saúde voltados à população trans no Brasil

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