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Psiquiatria

Trauma vicário: quando o profissional revive o trauma de seus pacientes

profissional de saúde vivencia trauma vicário e se senta no chão, com mão na cabeça
Publicado em 15/11/2023
Revisado em 17/11/2023

Profissionais que entram diariamente em contato com o sofrimento humano podem acabar sendo afetados pelas dores vividas por quem eles atendem. Conheça o trauma vicário.

 

Desde os 20 anos, Virginia Coser tinha o sonho de ser psicanalista. A formação veio aos 34, mas, depois de um tempo atendendo, começou a notar sérios problemas de memória. Muitas vezes, o paciente falava algo e, minutos depois, ela perguntava a mesma coisa, porque tinha se esquecido completamente da informação. Virginia buscou um neurologista com medo que fosse demência ou até Alzheimer precoce. Mas o problema era outro — ela havia desenvolvido o trauma vicário.

Com a ajuda do especialista, Virginia percebeu que as falhas na memória só aconteciam durante os atendimentos, em especial nos de pacientes com traumas profundos, semelhantes aos que ela havia vivenciado na infância. Na prática, o cérebro da psicanalista entendia que aqueles relatos estavam acontecendo com ela, e não com outra pessoa. 

 

O que é o trauma vicário?

Os traumas em geral são fenômenos que envolvem o corpo e a mente. Quando uma pessoa se sente ameaçada, o sistema límbico do cérebro gera o impulso de lutar ou fugir. Se o processamento não é feito da forma correta, a vítima paralisa. E aí, o trauma está instalado.

“Para essas pessoas, o passado nunca é passado. Um indivíduo que sofreu, por exemplo, um acidente de carro, pode ter medo de pegar a estrada para viajar, porque vem à mente o acontecimento passado como se fosse o presente”, explica a psicóloga Ana Lúcia Castello, presidente da Associação Brasileira de EMDR. O EMDR é uma das abordagens terapêuticas reconhecidas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para o tratamento de traumas, em que memórias dolorosas são “desbloqueadas” através de estimulação bilateral do cérebro.

No caso do trauma vicário, que acomete profissionais envolvidos no cuidado, a vítima não pode lutar nem fugir, já que ela é a responsável pelo atendimento. Dessa forma, fica exposta à dor. 

 

Quem pode ter trauma vicário?

A definição de trauma vicário está ligada à profissão. Aconteceu com Virginia, psicanalista, mas também poderia atingir médicos, enfermeiros, bombeiros, policiais, assistentes sociais, entre outros. Ou seja, é uma condição que afeta quem cuida de pessoas em grande sofrimento.

De acordo com a psiquiatra dra. Andréa Feijó, professora afiliada do Departamento de Psiquiatria e coordenadora do Programa de Atendimento e Pesquisa em Violência da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), os trabalhadores mais jovens, menos experientes ou que estão repetidamente expostos a mesma situação perturbadora são mais sujeitos a desenvolver o trauma vicário.

“Existem algumas características associadas a um risco menor: são as pessoas mais resilientes, que possuem uma capacidade emocional ampliada para lidar com situações de estresse. Isso tem a ver com maior preparo no treinamento profissional, mais tempo de experiência, um ambiente de trabalho mais organizado e uma cultura organizacional mais saudável, que ofereça apoio e respaldo”, destaca a psiquiatra.

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Sintomas: de flashbacks a hipervigilância

Virginia pouco havia ouvido falar sobre o trauma vicário, nem imaginava que aquilo poderia acontecer com ela.

“Os casos que eu atendo são pesados. Estão relacionados a abuso sexual, violência física e traumas familiares. Como eu já tinha alguma experiência, eu me sentia preparada para ter essa escuta sem me deixar afetar”, relata a psicanalista.

No entanto, não foi bem assim. Além das falhas de memória, Virginia também experienciou outros sintomas: estresse, insônia, exaustão, irritabilidade e uma sensação completa de desesperança em relação à humanidade.

De acordo com a dra. Andréa, queixas como essa são comuns entre quem passa pelo trauma vicário. Memórias intrusivas e pesadelos também são frequentes, muitas vezes, dando a sensação de que a pessoa pode ter um flashback a qualquer momento.

Fisicamente, isso tem reflexos no organismo: toda vez que a memória vem à mente, o paciente pode ter taquicardia, suor exagerado, dificuldade para pegar no sono e até uma crise aguda de ansiedade. É como se o corpo estivesse em constante estado de alerta na tentativa de se proteger.

Os impactos afetam não apenas o exercício da profissão, mas a vida como um todo. A pessoa enfrenta problemas para se concentrar e manter as tarefas que estava habituada a fazer, além de deixar de lado coisas que dão prazer e satisfação.

 

Como é o tratamento?

Apesar de sintomas bastante incômodos, chegar ao diagnóstico não é fácil. Na visão de Virginia, faltam informações sobre o trauma vicário na grade curricular dos cursos, deixando de lado a demanda dos profissionais afetados.

“O caminho é muito estreito para quem busca ajuda. Quem deveria estar preparado para ajudar somos nós, psicoterapeutas, mas, infelizmente, as instituições de ensino não focam no trauma vicário. Você tem que bater de porta em porta pedindo indicações”, opina a especialista.

A psicoterapeuta que a acompanhava, com mais de 30 anos de experiência, não tinha o conhecimento necessário para ajudá-la após o diagnóstico. Virginia, então, buscou outro profissional e manteve as orientações do neurologista.

O tratamento costuma envolver medicação, como antidepressivos, e psicoterapia, principalmente as linhas focadas na superação de traumas.

“Com isso, eu fui criando formas de preparação antes das consultas. Existe uma janela de tolerância da qual você não pode ir além para o seu próprio cuidado e também do paciente. Eu não ultrapasso essa janela, então consigo trazer o meu corpo e a minha mente para o momento presente, que é seguro, e não para uma situação de dor e trauma lá do meu passado”, explica Virginia.

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Voltar ou não voltar para o trabalho?

No entanto, até conseguir desenvolver essas estratégias, a psicanalista se preocupava sobre talvez ter que desistir da profissão.

“A minha maior dificuldade foi achar que eu não poderia voltar a atender. Eu achei que ia ser sempre daquele jeito, que eu iria sofrer o resto da vida com isso. Depois, eu vi que não: com o tratamento adequado, você consegue lidar com esses gatilhos sem mergulhar dentro do trauma vicário”, afirma Virginia.

Mas essa não é a realidade para todos. Pode acontecer de a pessoa ficar afastada por um tempo e conseguir voltar para o seu posto de trabalho; mas também pode ocorrer de ela migrar para uma função administrativa ou, ainda, não voltar.

“Eu já atendi pacientes que desistiram, porque não se identificaram mais com a profissão. Mas estão felizes em outras áreas. Então, eu acho importante dizer que quem passa por isso deve ter paciência para experimentar o processo terapêutico de recuperação para depois decidirem se realmente vão manter a profissão. Não tomar uma decisão imediata pelo medo ou por toda a ansiedade que o trauma causa. Espere um pouco, comece o tratamento e depois decida”, recomenda a psicanalista.

E lembre-se: não há vergonha nenhuma em procurar ajuda. Não é porque você escolheu aquela profissão que precisa ser capaz de lidar com todas as situações que aparecem. Procurar apoio psicológico é uma forma de se fortalecer emocionalmente, seja no trabalho ou fora dele.

 

Hábitos de autoproteção contra o trauma vicário

Além do acompanhamento com um profissional especializado, existem outras formas de evitar o surgimento ou o agravamento do trauma vicário. A Rede Solidária da Associação Brasileira de EMDR, por exemplo, oferece cursos gratuitos de capacitação para profissionais que trabalham com o cuidado de pessoas em sofrimento. O treinamento é realizado de uma a duas vezes por ano.

“Quando eu atendo, eu tenho uma escuta empática. E se eu não tiver uma preparação para isso, eu posso desenvolver o trauma vicário”, destaca a presidente da Associação. A dra. Ana Lúcia Castello acredita que seria importante que hospitais, clínicas, polícias e corpos de bombeiros disponibilizassem psicoterapeutas apenas para o atendimento dos seus funcionários. “É o que a gente chama no trabalho humanitário de ‘cuidado do cuidador’”, diz.

No dia a dia, hábitos facilmente implementados na rotina também podem ajudar na prevenção, como:

  • Evitar assistir ou reviver o trauma, quando possível;
  • Buscar ambientes organizacionais mais acolhedores, quando possível;
  • Evitar o consumo exagerado de bebidas alcoólicas e outras substâncias;
  • Estar junto de entes queridos, como amigos e familiares;
  • Manter uma rotina de horários definida;
  • Alimentar-se adequadamente;
  • Praticar exercícios físicos com regularidade;
  • E ter momentos de lazer.

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