Obsessão do Sr. Elias – Outras Histórias #57

Nos últimos dias de vida, a paciente do dr. Drauzio não queria desperdiçar nenhum minuto com o ex-marido, o sr. Elias. Ouça neste episódio.

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Publicado em: 5 de julho de 2022

Revisado em: 3 de agosto de 2022

Por causa da obsessão do ex-marido, nem à beira da morte a mulher aceitou ver o sr. Elias.

 

 

 

Em seu livro Por um Fio, o dr. Drauzio conta que, certo dia, chegou um homem pedindo para ver a ex-mulher, internada já em estado terminal. Quando questionada se autorizaria a entrada do homem, que se chamava Elias, ela negou. E pediu 15 minutos com o dr. Drauzio para contar sua história.

No início do namoro, o sr. Elias era um tremendo cavalheiro, sempre tratando-a com muita consideração e respeito. Até que teve a primeira crise de ciúmes. A obsessão do marido, pouco a pouco, influenciou a mulher a mudar seu jeito, sua personalidade e até o seu estilo de roupas. Cansada de tanta possessividade, ela resolveu dar um fim naquele casamento. Ouça neste episódio.

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Eu vou contar uma história que tá no meu livro Por um Fio.

Um dia fui procurado por um senhor de idade no consultório, que entrou com uma bengala e disse: “Olha, a minha ex-mulher está internada no hospital e eu soube que ela está muito grave. Nós estamos separados há muitos anos, mas eu não queria morrer sem vê-la pela última vez. O senhor pode pedir pra ela se ela não quer me receber.” Eu disse: “É claro, eu pergunto pra ela”.

Aí contei a história pra minha paciente e eu disse: “Olha, ele quer saber se pode lhe fazer uma visita”. Ela disse: “Não, doutor, eu não quero”. “Tá bem, eu aviso ele então”. Aí ela disse: “O senhor tem 15 minutos?”. Falei: “Tenho”. “Então, o senhor vai ouvir essa história de por que eu não quero que ele venha aqui.”

“O Elias foi meu segundo namorado. Ele tinha 30 anos quando eu o conheci, eram dez anos mais que eu. Ele fazia questão de repetir todos os dias, em particular ou na frente dos outros, que nunca vira mulher tão encantadora. Na terceira vez em que saímos, ganhei um anel de ouro. Pra comemorar 30 dias de namoro, um colar de pérolas verdadeiras. Passados três meses, estava na sala de casa me pedindo em noivado pros meus pais. Nunca imaginei que um homem pudesse tratar uma mulher com tanta consideração.”

“Coitado, havia chegado ao Brasil aos 18 anos, sozinho, depois de perder a mãe viúva na Síria. Dizia que eu devia ser um anjo, enviado por ela, pra iluminar o caminho do filho. Fiquei apaixonada. Era uma princesa ao lado daquele homem amoroso, incapaz de um gesto rude. Casamos em seis meses. Quando voltamos da lua de mel, fomos ao aniversário da esposa de um patrício dele, um rapaz simpático, com sotaque forte, que contava muitos casos engraçados. Eu, brincalhona desde criança, ri muito naquela noite, mas não fui a única, todo mundo se divertiu, menos o Elias, que passou a festa emburrado e fez questão de irmos embora cedo, contra a minha vontade. No caminho, perguntei a razão do mau humor. Foi o começo do inferno. Ele ficou transtornado, aos berros, disse que eu não sabia me comportar, que jogava a cabeça pra trás quando ria só pra provocar os homens, que meu vestido era curto, mais decotado do que devia e por aí afora. Fiquei chocada porque, até aquela noite, ele tinha sido um cavalheiro impecável. Acordei de manhã com os olhos inchados de chorar. Quando me viu, ele ajoelhou aos meus pés, jurou ter armado aquela cena porque estava enlouquecido de paixão por mim porque eu era maravilhosa e encantava os homens à minha volta. Não que fosse culpada, admitia, mas por ser ingênua, não tinha noção da sensualidade que emanava do meu corpo. No fim, pediu apenas pra que eu prestasse atenção, fosse mais reservada na frente dos homens, pra que não levassem a mal minha espontaneidade. À noite, chegou com dois pingentes de ouro, lindos.”

“Naquele tempo, éramos educadas pra ser discretas e acomodadas. Na minha inexperiência, achei que ele talvez tivesse razão. Se algo em mim despertava cobiça nos homens, precisava mesmo tomar cuidado. Não tinha a menor intenção de magoar meu marido, estava apaixonada, solicitei até que ele me alertasse ao notar algum comportamento desavisado da minha parte.”

“Elias tomou o pedido ao pé da letra e, lentamente, aumentou a pressão pra mudar minha personalidade. No início, implicava com o decote de um vestido, com a espontaneidade de uma reação em público, com o fato de eu falar com o garçom. Com o tempo, eu trocava de roupa três ou quatro vezes antes de sair até encontrar uma do gosto dele. Nos restaurantes, quando não havia mesa disponível num local que me deixasse de frente pra parede, nem entrávamos. Ir à padaria ou à quitanda ficou por conta da diarista, a menos que eu estivesse disposta a enfrentar duas horas de discussão.”

“Contando assim, o senhor vai achar que eu era submissa demais. Talvez fosse. Mas no casamento as restrições não são impostas de um dia para o outro, acumulam-se na rotina diária sem que a gente se dê conta. As brigas, entremeadas de declarações de amor, pedidos de perdão, presentes apaixonados.”

“Nos momentos de reconciliação, ele dizia, com ternura, não pretender destruir em mim a sensualidade nem a vaidade feminina, desejava apenas que essas qualidades fossem reservadas exclusivamente para o homem que me amava acima de todas as coisas. Por isso, comprava vestidos vermelhos, minissaias e blusas decotadas capazes de fazer corar uma prostituta. Na hora de sair, ele me queria vestida de freira, sentada de costas para os homens. Na volta, ao fechar a porta, implorava pra que eu soltasse os cabelos, vestisse aquelas roupas escandalosas e dançasse pra ele no meio da sala.”

“Fiquei completamente perdida quatro anos de casamento. No quinto, começou a tomar corpo em mim a ideia de que a paixão existente entre nós havia se transformado. Estávamos doentes. Ele, por ter se deixado levar por aquela loucura. Eu, por me submeter a ela. Quando isso ficou claro, quis voltar pra casa dos meus pais, mesmo contra a vontade deles. Não admitiam a hipótese de ter uma filha desquitada. Mas Elias ficou alucinado. Ameaçou cortar os pulsos, dar um tiro no peito, suplicou perdão, jurou pôr fim àquela obsessão possessiva e fez mil promessas, nunca cumpridas. Essas idas e vindas continuaram até a situação chegar ao limite. Achei que nunca me libertaria daquela opressão angustiante e acabaria louca. Foi a sorte. O instinto de sobrevivência falou mais alto. Se ele se opunha à separação, só me restava a alternativa de fugir.”

“Numa segunda-feira, com a ajuda de uma prima, finalmente, criei coragem. Esperei Elias sair pra trabalhar, juntei algumas roupas na mala e fui embora antes de receber o primeiro telefonema do dia, dado religiosamente assim que ele pisava na loja. Enquanto esperava o elevador, o telefone tocou sem parar. Tomei um ônibus para o Rio Grande do Norte, onde o marido dessa prima tinha parentes que se dispuseram a me receber em segredo. Lá, três anos depois, conheci o Isidoro.”

“Doutor, não sei quantos dias ainda estarei por aqui, mas serão poucos. Procuro fingir que não percebo pra não entristecer ainda mais o Isidoro. Quero aproveitar todo o tempo ao lado desse homem, que só me fez bem. Não quero desperdiçar nem um minuto com alguém capaz de me trazer lembranças desagradáveis nesta hora.”

Quando cheguei ao consultório, o sr. Elias me aguardava, com o rosto abatido. Levei-o até a minha sala. “Não tenho boas notícias, ela não quer vê-lo. Disse isso com tanta convicção que, se eu fosse o senhor, não insistiria.” Ele pôs a cabeça entre as mãos e chorou sem emitir nenhum som. Desviei o olhar pra baixo em respeito à sua dor. Quando conseguiu se controlar, tirou um lenço amassado do bolso do paletó, enxugou as lágrimas, pediu desculpas e foi embora, apoiado na bengala.

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