O dr. Drauzio conta a história e a rotina de Adriana Silva, uma das maiores maratonistas brasileiras.
Mulher magra, de tênis e jeans, no embarque para Boston: só poderia ser maratonista. Às vésperas de uma corrida, o dr. Drauzio encontrou Adriana Silva, corredora bicampeã pan-americana, e seu treinador Cláudio Castilho. Nesse episódio do Outras Histórias baseado no livro Correr (2015), o médico conta como foi conhecer a recordista brasileira, saber mais sobre a sua história de vida e entender a rotina de uma atleta de tão alto nível. Ouça!
Não pode ouvir agora? Acompanhe a transcrição a seguir:
Adriana Silva é um capítulo do meu livro “Correr”.
Olá, eu sou Drauzio Varella e aqui você vai ouvir Outras Histórias.
Magrinha daquele jeito, de tênis e jeans, no portão de embarque para Boston, só podia ser maratonista — de elite, porque o rapaz forte ao lado dela parecia ser treinador. Quando me aproximei as suspeitas se confirmaram: era Adriana Aparecida da Silva, recordista brasileira e Pan-americana da Maratona feminina.
Adriana tem um olhar doce, encantador, sorriso aberto e modos de moça recatada do interior. As glórias nas pistas não derrubaram a simplicidade e a parcimônia ao falar de si. Nasceu em Cruzeiro, no meio do caminho entre São Paulo e Rio de Janeiro, em 1981. Ela e os três irmãos foram criados pela mãe, separada do marido quando a menina completou três anos. Para ajudar em casa, aos nove foi trabalhar como doméstica. O que ganhavam, mal dava para as necessidades básicas. A casa em que moravam era tão precária, que nas noites de chuva, a mãe cobria os filhos com um plástico — única maneira de protegê-los das goteiras.
Ainda pequena, por brincadeira, Adriana começou a correr na equipe Papa-Léguas, que treinava crianças da cidade. Ao completar 12 anos, foi convidada pra disputar uma corrida de cinco quilômetros, na vizinha Jacareí. Era a primeira vez que saía dos limites de Cruzeiro. Nem tênis tinha; correu com um sapato de couro. Sem entender direito o que se passava, subiu ao pódio para receber a medalha do primeiro lugar e o prêmio em dinheiro.
De volta pra cidade natal, correu ao encontro da mãe: “vamos pro supermercado” — nesse dia realizou o sonho de ver um carrinho cheio de mantimentos. Diante dele, compenetrada, prometeu: “não vai faltar mais nada pra senhora. Serei atleta profissional”. Abandonou o emprego e se dedicou de corpo e alma à Papa-Léguas. Em pouco tempo já recebia R$ 300,00 de ajuda de custo, num programa da prefeitura, além dos prêmios das corridas que vencia.
Permaneceu em Cruzeiro até completar 23 anos, quando foi a terceira colocada na São Silvestre, performance que lhe permitiu subir ao pódio e a transformou em corredora de elite. No mesmo ano, chegou em terceiro lugar também na Meia Maratona do Rio de Janeiro. Ainda em 2004, cumpriu a promessa feita a mãe: comprou-lhe uma casa com dois quartos, sala e um quintal grande, com duas laranjeiras, uma mangueira e um pé de cajú.
No ano seguinte, viveria os momentos mais incertos da carreira, consequência de um estiramento no tendão de Aquiles, que se agravou nas sucessivas provas que disputava. A cirurgia para reparar o tendão afastou-a das pistas por seis meses, período em que perdeu a verba de patrocínio. Dos três mil reais que ganhava, passou a viver com R$ 400,00.
Medicada com antidepressivo, achou que a carreira havia chegado ao fim. E talvez fosse verdade, se não tivesse conhecido Cláudio Castilho, o treinador que estava com ela à espera do avião pra Boston, quando os conheci, quatro dias antes da Maratona de 2014. Contratada pelo Clube Pinheiros em 2007, ficava 15 dias num alojamento com outros atletas e o resto do mês com a família, em Cruzeiro.
O ano de 2009 foi decisivo: Cláudio sugeriu que ela se tornasse maratonista, e se preparasse para disputar a classificação do Mundial de Atletismo, que seria realizado no mês de agosto, em Berlim. Para tanto, era preciso completar uma prova de 42 quilômetros em tempo abaixo da linha de corte: duas horas e 43 [minutos]. A oportunidade se apresentou na Maratona de Florianópolis, em abril. Foi a primeira colocada, num tempo de duas horas e 41 [minutos], que lhe garantiu o direito a disputar o Mundial e a fez chorar, como nos tempos de criança.
Em 2011, aconteceram os Jogos Pan-Americanos de Guadalajara, cidade a 1550 metros de altitude, no México, país de origem da favorita da prova, Madaí Pérez. Na fase de preparação, Adriana passou um mês em Paipa, na Colômbia, num centro de treinamento situado a 2600 metros de altitude. Na prova, largou em quarto lugar, posição que manteve até o quilômetro 12, quando passou pela terceira colocada, mais de dois minutos atrás de Madaí Pérez, que disputava a primeira colocação com a peruana Gladys Tejeda.
Ao atingir o quilômetro 35 sentiu que tinha forças para acossar as líderes. A peruana ficou pra trás. O povo nas ruas incentivava a conterrânea e gritava para a brasileira: “despacio, despacito”, ou seja, devagar, devagarinho. No quilômetro 38, Adriana foi pra cima da mexicana desgastada pelo calor e pela disputa aguerrida com a representante do Peru. Assim que assumiu a primeira posição, a torcida virou a seu favor, gritava seu nome e a aplaudia, estímulos que a ajudaram a suportar as dores cada vez mais fortes nas pernas e na região lombar, e as náuseas dos últimos cinco quilômetros.
Nos mil metros finais, o mundo escureceu por alguns segundos, apagão que já tirou de combate corredores renomados a poucos metros da chegada. Sem enxergar, orientando-se pelas vozes da torcida, resistiu no mesmo passo. Quando faltavam 500 metros, ouviu o grito do treinador: “Vai dar recorde!”.
De fato, Adriana completou a prova no tempo de duas horas, 36 minutos e 37 segundos. Quase um minuto de vantagem, em relação ao recorde Pan-Americano anterior. Chegou ao fim da prova sem noção de tempo, e só entendeu que havia quebrado a marca Pan-Americana quando voltou à Vila Olímpica e viu o Facebook. Passou a noite acordada com a medalha de ouro ao lado, e os gritos da multidão reverberando na memória da ultrapassagem decisiva. “Não tinha com quem conversar. As cinco companheiras de alojamento já dormiam”.
As portas se abriram, correu as Maratonas mais importantes do mundo, e foi a única brasileira classificada para os Jogos Olímpicos de 2012. Convites não lhe faltam: disputa duas Maratonas por ano, que exigem quatro meses de preparação. Em 2013, correu três provas, mas acha arriscado participar de mais de duas por ano, por medo de que uma contusão a afaste das pistas.
Na primeira semana de preparação, corre o total de 160 quilômetros; na segunda, 180 — distância que aumenta até chegar à distância de 215 quilômetros, quando se aproxima a data da prova. Nessa fase, às segundas, quartas e sextas corre 20 quilômetros pela manhã e 10 à tarde. Às terças e quintas, faz 12 a 15 tiros de 1000 metros pela manhã, e corre 12 quilômetros à tarde. Aos sábados faz os longos, que começam com 25 quilômetros, com o objetivo de chegar a 38 nas proximidades da competição.
Nas tardes, nos fins de semana, antes da segunda corrida do dia, vai à academia do Pinheiros pra fortalecer braços e pernas. Antes das Maratonas, passa pelo menos um mês no centro de treinamento em Paipa. No primeiro dia corre duas horas, tempo que vai aumentando gradativamente, até atingir três horas, nas quais percorre 40 quilômetros. É a fase de que mais gosta. Em Paipa não há solicitações externas; a vida é treinar e voltar pro alojamento. Dedicação total.
Retorna a cerca de 10 dias antes da prova, a tempo de disputar Meia Maratona. Se não houver alguma agendada para esse período, corre 25 quilômetros em companhia de atletas homens, com a intenção de chegar em uma hora e meia. Na semana anterior à prova, reduz a intensidade do treinamento para 90 quilômetros por semana. Corre até a véspera, mas em ritmo bem mais lento.
Apesar do desgaste dos treinos, não perde peso. Faz seis refeições por dia, mas a dieta não tem nada de especial: pão com manteiga no café da manhã; carboidrato em gel antes do treino; depois dele, bolo, iogurte e frutas, às 10h00; almoço sem restrições, ao meio-dia; outro café com leite, pão e manteiga, às 15h30, antes do treino da tarde; lanche, às 17h30; e às 20h00, jantar, variado como o almoço; antes da cama, o último lanche. Seu corpo tem apenas 6% de gordura, mas a magreza não lhe tira o porte atlético, nem a graça feminina.
No clube, recebe assistência médica completa: os controles ginecológicos mapeiam suas menstruações, que são regulares, para evitar provas que coincidam com esse período — precaução nem sempre possível. Correr menstruada, com cólica, desconcentra, prejudica a performance e duplica o sofrimento.
Os anos de carreira e as disputas internacionais não foram suficientes para livrá-la da ansiedade e do medo que antecedem à prova, nem das dores nas pernas e na coluna, que se instalam a partir do 30º quilômetro. Veio em definitivo pra São Paulo em 2007, onde morou num república com quatro atletas. Em 2014 conseguiu alugar um apartamento pra trazer a mãe, infelizmente falecida quando o sonho da filha estava para ser realizado. Em 2010 completou a Licenciatura em Educação Física, curso frequentado à noite, com grande sacrifício pessoal, para não interferir na rotina dos treinos.
No dia a dia, Adriana acorda às 7h30, treina, almoça e descansa das 14h às 15h da tarde, em casa ou numa sala do clube. Volta pra casa ao redor das 20h; dorme às 22h30. As pistas não lhe dão trégua. Ela diz:
— Não tem sábado, domingo, feriado e nem natal.
Nos dias seguintes às Olimpíadas de Londres, passou dez dias na Disneylândia, sua primeira e única viagem de lazer. Depois das Maratonas tira uma semana de férias para ficar com a família, em Cruzeiro. Em São Paulo, não namora, não vai a festas, nem sai para passear. Ela diz: “chego em casa tão cansada, tão cheia de dor, que não tenho coragem de levantar do sofá. O máximo que consigo é andar até a cama. Que homem viveria com uma mulher nessas condições?”.
Semanalmente estarei aqui para contar Outras Histórias.
A trilha sonora foi feita pela In Sonoris, e a produção é da Júpiter – Conteúdo em Movimento.
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