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Pediatria

Por que as crianças precisam brincar?

Publicado em 17/01/2023
Revisado em 16/01/2023

Especialista fala sobre a importância da criança ter tempo para brincar livremente, principalmente na natureza. Os benefícios são inúmeros.

 

Quando uma criança pega um objeto qualquer e começa a criar histórias e fantasias da sua própria cabeça a partir dele, ou corre livremente pelo parquinho, ou cria um jogo junto com os seus amiguinhos, ela não está apenas brincando. Ela está explorando o mundo, se comunicando, se expressando e aprendendo uma série de habilidades importantes. Brincar é necessário. A brincadeira é parte fundamental de seu pleno desenvolvimento. 

“As crianças precisam brincar porque a brincadeira é a essência da infância”, define o dr. Daniel Becker, pediatra, sanitarista e membro do Comitê Especial de Enfrentamento à Covid-19 do Rio de Janeiro. “A linguagem é a forma como o ser humano se expressa, se conhece e interfere no mundo; é a habilidade mais elevada da racionalidade humana, do cérebro humano. A linguagem é tudo, ela define tudo o que nós fazemos, define quem nós somos. E a linguagem da infância é a brincadeira.”, continua. 

Além disso, brincar é também a forma que a natureza concebeu, ao longo da evolução, de a criança “ensaiar” para a vida adulta, ou seja, é através da brincadeira que ela adquire habilidades que serão necessárias no futuro. 

“Você vê entre os mamíferos que um leãozinho brinca de caçar; nas populações tradicionais da nossa espécie, por exemplo, entre os indígenas, as crianças brincam de fazer aquilo que os adultos fazem, brincam de construir ocas e brincam de danças, rituais. Então, essa aquisição de habilidades através do brincar é algo da natureza biológica da gente. As habilidades que a criança vai adquirir brincando são inúmeras”, afirma o médico. 

        Veja também: Brincar: é assim que se aprende | Quanto mais cedo, maior | Episódio 8

 

Já nascemos brincando?

O bebê começa a brincar praticamente desde o seu nascimento. O primeiro brinquedo da criança é o seu próprio corpo. Ela começa a olhar suas mãos, e então passa a colocá-las na boca. Depois, começa a interagir com seus cuidadores, o que naturalmente acontece por meio da brincadeira, com os objetos que serão apresentados a ela. 

“Através da brincadeira que o bebê vai se desenvolver, ele vai buscar um objeto que está longe dele, ele vai se arrastar. Ele estando de lado, vai buscar um objeto que está um pouquinho mais para lá, ele vai se virar, vai rolar. É assim que ele vai aprendendo também, vai desenvolvendo a sua mobilidade, a sua musculatura. E por aí vai. Brincando cada vez com um repertório mais amplo.”

Em seguida, vem o brincar com os brinquedos propriamente ditos, e também com objetos abertos, ou seja, que não são brinquedos – sabe quando a criança dá mais atenção para a embalagem do que para o brinquedo em si? Saiba que isso é ótimo. “É sempre melhor brincar com objetos que não tenham finalidade de brinquedo, a criança que inventa o próprio brinquedo, é ela que dá a função ao objeto”, afirma Daniel. 

A partir da imaginação da criança, uma caixa de sapato pode se transformar em um monte de coisas – um carrinho, um trem, um avião, uma casa. São infinitas as possibilidades. 

“E tem também o brincar com a arte, brincar criativo, isso começa desde muito cedo. Pode-se dizer até que o bebê brinca no útero de certa forma.”, explica o médico. 

        Veja também: Autismo e formas de brincar | Nuno Lobo Antunes

 

Habilidades desenvolvidas através do brincar

Segundo o pediatra, através das brincadeiras, a criança desenvolve diversos tipos de habilidades importantes, como:

  • Habilidades executivas: através do brincar a criança desenvolve o foco, a atenção, a capacidade de solucionar problemas, capacidade de explorar, de descobrir, de investigar e de avaliar riscos;
  • Habilidades sociais e relacionais: a brincadeira com outras crianças ensina a criança a colaborar, resolver problemas coletivamente, definir e seguir regras para o grupo, além de ensinar sobre liderança e sobre as etapas de um processo;
  • Habilidades físicas: as brincadeiras mais físicas, ao ar livre, com objetos como bolas, barquinhos ou pipias, por exemplo, ajudam no desenvolvimento do equilíbrio, coordenação e habilidades motoras da criança;
  • Habilidades cognitivas: o brincar também ajuda a criança a desenvolver sua capacidade de comunicação, de se comunicar com o outro, de colocar seu ponto de vista, de se expressar. 

 

A importância do brincar livre

O brincar livre é o nome dado ao brincar que não é supervisionado, treinado ou orientado. Ou seja, a criança é quem guia a brincadeira, explorando o mundo e inventando, criando, fantasiando. Segundo o especialista, esse é o melhor brincar do ponto de vista do desenvolvimento porque é autorregulado, a criança aprende a se regular e desenvolve as habilidades que listamos acima. 

“E o brincar livre deve ser tanto solitário, quando a criança pega suas bonecas, seus carrinhos, suas pecinhas de montar, enfim, ou os objetos da casa, e fica horas ali conversando com ela mesma, se contando histórias, inventando brincadeiras – isso é super criativo, é super potente para o desenvolvimento do cérebro – quanto coletivo: as crianças que interagem, que brincam, que jogam, que inventam jogos, que inventam regras, que discutem novas possibilidades, que discutem divergências, que vão construir algo juntas sem supervisão de adultos. Isso é uma coisa maravilhosa”, destaca.

Hoje, vivemos o chamado paradigma escolar do desenvolvimento, que é a ideia de que a criança só aprende e só se desenvolve quando treinada por um adulto. “Isso é uma ilusão completamente equivocada. Existe, claro, o aprender de um adulto, aprender sendo treinada, óbvio que isso é importante, mas também é importante o brincar livre por onde a criança vai desenvolver o seu cérebro de uma forma muito potente, em todas as habilidades, na sua criatividade, na imaginação, na curiosidade, na iniciativa própria, na autonomia”, explica o pediatra. 

Por isso, é importante não ocupar todo o tempo da criança com aulas e atividades extracurriculares (como aulas de dança, música, esportes, entre outros). Essas atividades também são muito importantes e trazem diversos benefícios, é claro, mas é preciso atenção para que isso não tome todo o tempo livre da criança. 

“Não pode uma criança virar um executivo que tem três aulas por dia, que tem que fazer uma aula extra de yoga para relaxar. Ela tem que ter o brincar livre dentro da vida dela, tem que ter momentos de relaxamento. Isso é outra coisa muito importante: além de tudo que eu listei, o tempo de brincar é o tempo de relaxamento, de antiestresse da criança. E a criança hoje vive muitos momentos de estresse. Ela precisa do brincar livre como um relaxante.”

 

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Brincar na natureza

“Se eu pedir a você que feche os olhos e imagine uma criança feliz e saudável, você vai imaginar ela na natureza, porque a natureza é um lugar onde a gente quer colocar nossas crias para que elas sejam felizes, a gente sabe intuitivamente disso”, afirma o médico. 

Da mesma forma que a brincadeira é a essência da infância do ponto de vista da linguagem, a natureza é a essência da infância do ponto de vista do território. “Nós todos, como espécie, crescemos e evoluímos dentro da natureza, nós somos parte dela, ela é parte de nós. Essa noção de pertencimento e de que nós somos a natureza devia ser mais difundida para ajudar a gente a parar de usar a natureza como uma espécie de objeto do qual se extrai recursos, se extrai consumo, o que está acabando por destruí-la.”

Quando uma criança brinca na natureza, ao ar livre, ela se sente mais estimulada a explorar, sua curiosidade e sua criatividade são aguçadas. “A natureza oferece um espaço mais vasto, mais aberto e totalmente heterogêneo, muito irregular, mas ao mesmo tempo harmônico, ao mesmo tempo belo, ao mesmo tempo agradável que a gente se sente estimulado.”

Os benefícios não param por aí: temos ainda o estímulo físico, o que ajuda no fortalecimento ósseo e muscular e melhora saúde cardiovascular da criança, sendo uma forma de combate ao sedentarismo. Além disso, o contato com a natureza fortalece a imunidade – a criança se suja e tem contato com bactérias que vão ajudar no equilíbrio de seu microbioma. Tudo isso ajuda na prevenção de doenças, como obesidade e hipertensão precoce

Esse contato pode melhorar ainda o aprendizado escolar, porque a criança ganha mais foco e, brincando com outras, tem a oportunidade de explorar juntas, de colaborar e desenvolver novas habilidades. 

“E depois disso também tem a parte emocional, a natureza acalma, traz redução da irritabilidade, da agressividade, do consumismo, afasta das telas. Traz uma certa contemplação, um certo reconhecimento da sua grandiosidade, que eu chamo de maravilhamento. É um território sagrado onde a criança deve ser levada para brincar sempre, e quanto mais livre, melhor”, diz ele. Por isso, sempre que possível, é interessante levar a criança para brincar em praças, parques e outros espaços abertos. 

 

Tempo de tela é brincadeira?

De acordo com Daniel, o tempo de tela até pode ser utilizado no brincar pedagógico, pois os aparelhos digitais são uma forma de entretenimento para as crianças. Mas não são propriamente brincadeira. “Brincadeira pressupõe uma participação ativa da criança. Ela se envolve, se engaja, pensa, raciocina, cria, colabora, explora, ela está no comando. No tablet, a realidade é outra. A realidade em 2D. E ela não está ali no comando. Ela não está, na verdade, brincando, ela está se entretendo”, explica ele. 

A solução, claro, não é proibir o uso de telas, mas sim usá-las de maneira responsável. Os aparelhos e os jogos podem ser usados no brincar pedagógico, se a escola for inteligente, responsável e utilizar a tecnologia de maneira adequada. A criança também pode passar um tempo se entretendo com telas, desde que esse tempo seja limitado.

“Todos nós queremos assistir uma série, jogar um joguinho. Está tudo certo. Mas é importante que esse tempo não seja excessivo, isso é fundamental. Que a gente consiga distribuí-lo, alternando também atividades na tela com atividades fora da tela, para que a criança não fique continuamente exposta a esses aparelhos. Eles são altamente viciantes, são feitos para isso”, afirma.

“Muitas vezes a criança que começa a ver telas, os pais têm uma trabalheira enorme para tirar. As telas hipnotizam, deixam o cérebro passivo. E quando a criança fala ‘tô entediada’ e você dá o celular para ela, você cortou a possibilidade dela acionar sua própria criatividade, sua própria iniciativa, a sua própria imaginação”, completa. 

        Veja também: Crianças, adolescentes e o excesso de telas | Coluna

 

Os prejuízos para a criança que não brinca

Para começar, a criança que não tem tempo livre para brincar, explorar, sair de casa, usar sua imaginação, criar histórias, se desenvolver, perde uma série de benefícios que já mencionamos ao longo da matéria. “Ela vai ter um monte de problemas que vão prejudicar de forma global o seu desenvolvimento”, explica o pediatra. 

Os problemas vão desde questões físicas – a criança pode ficar sedentária, ter ganho excessivo de peso, fraqueza muscular e problemas posturais de forma precoce – até questões emocionais e mentais – ela fica mais suscetível a transtornos como depressão, principalmente se houver o uso excessivo de redes sociais, já que essa associação já está bem demonstrada, segundo o médico. 

Há ainda o prejuízo cognitivo, com problemas de foco, atenção e memória, além de queda na sua criatividade, imaginação e autonomia, e ela deixa de ter esse momento de relaxamento, de redução de estresse, que acontece quando vai para a praça, para o parque, ou mesmo brincando livremente em casa. “A criança é o brincar, é quase isso. E a gente está podando, reduzindo, restringindo, diminuindo o brincar. E essa redução tem afetado profundamente a infância de forma negativa.”

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