A avaliação dos olhos das crianças deve ser repetida aos três anos de idade e mais tarde durante o processo de alfabetização.
É antológico o caso da menina que foi levada ao oftalmologista pela primeira vez a conselho da professora durante a alfabetização. Dias depois, ela voltou à escola exibindo um par de óculos que o médico havia receitado. Na saída, foi correndo encontrar a mãe para contar-lhe a grande descoberta do dia: as letras escritas na lousa tinham contornos nítidos, não eram borradas como sempre as tinha enxergado. Para surpresa de todos que imaginavam que demoraria a adaptar-se a nova situação, nunca mais deixou de usar os óculos que conferiam luz e cor ao mundo antes embaçado e esmaecido.
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Crianças que nascem nas maternidades geralmente são examinadas por médicos neonatologistas, mas nem sempre por oftalmologistas. Por isso, é fundamental que no primeiro ano de vida, de preferência até os seis meses, sejam encaminhadas para avaliação oftalmológica. O diagnóstico precoce de grande maioria dos problemas visuais é garantia quase certa de evolução favorável. Detectados tardiamente, porém, exigem tratamentos complexos aos quais elas nem sempre respondem bem, ou podem ser irreversíveis.
Essa avaliação deve ser repetida aos três anos de idade e mais tarde durante o processo de alfabetização.
ESTRUTURA DO OLHO
Drauzio – Em linguagem simples, você poderia explicar como é constituído o olho?
Rosana Cunha – O globo ocular está dentro de uma cavidade óssea chamada órbita, recoberta por tecido gorduroso que funciona como almofada para atenuar o impacto provocado por certos tipos de traumas.
Ele é constituído por três túnicas (camadas). A túnica externa é a camada protetora da qual fazem parte a córnea e a esclera. A média é uma camada vascular que compreende a íris, a coroide e o corpo ciliar. A camada interna, ou nervosa, é formada pela retina.
A córnea é uma estrutura transparente, a mais superficial de todas. Ela atua como uma lente com grande poder de refração para focalizar os objetos, a fim de que se forme uma imagem nítida na retina. Quando se faz um transplante de córnea, retira-se apenas o botão central, isto é, uma pequena circunferência, a mesma sobre a qual se fixam as lentes de contato, e a substituímos pela córnea saudável do doador.
Conhecida também como branco do olho, a esclera é a camada onde se inserem os músculos oculares (seis em cada olho) responsáveis pelos movimentos do globo ocular.
Atrás da córnea está a íris, a parte colorida do olho. Bem no centro dela, há um orifício – a pupila ou menina dos olhos – com função de diafragma encarregado de controlar a intensidade da luz que entra pelo olho, contraindo quando ela é muito forte, ou dilatando nos ambientes mais escuros.
O músculo ciliar, que faz a pupila contrair ou relaxar, também é responsável pela acomodação do cristalino, outra lente com alto poder de refração e focalização, através da qual os raios luminosos convergem sobre a retina. A associação desse músculo com a pupila e o cristalino torna possível focalizar um objeto próximo e, depois, outro distante numa fração de milésimos de segundos. A propósito, é o músculo ciliar que, apesar de intensamente estimulado, vai ficando cansado com o passar do tempo. Por isso, muitas pessoas quando chegam aos 40/45 anos não conseguem mais enxergar de perto e precisam de óculos para leitura.
Drauzio – O músculo ciliar se comporta de maneira diferente dos outros músculos. Se uma pessoa mais velha levantar pesos adequados a suas condições físicas e faixa de idade, o bíceps cresce, reage. Com o músculo ciliar, parece que os exercícios são inúteis.
Rosana Cunha – Ele se comporta assim também por causa do cristalino que, com o envelhecimento, vai perdendo a elasticidade e não consegue mais ajustar o olho a distâncias próximas.
Drauzio – Retomando a descrição das estruturas do olho, depois do cristalino vem…
Rosana Cunha – Depois do cristalino, vem o humor vítreo, uma estrutura com aspecto gelatinoso, transparente como a córnea e o cristalino para permitir que a imagem alcance a retina na túnica posterior.
A retina é composta por uma camada de células nervosas, fotorreceptoras, chamadas cones (asseguram a visão de detalhes) e bastonetes. No centro da retina, fica a mácula para onde convergem os raios de luz. Transformados em impulsos eletroquímicos, eles são enviados pelo nervo óptico ao cérebro para que decodifique e interprete a imagem captada.
Drauzio – O olho é o único órgão por meio do qual o cérebro se comunica com o exterior de forma mais ou menos direta. Com os outros sentidos, audição e olfato, por exemplo, isso não acontece.
Rosana Cunha – Outra particularidade dele é que, fazendo incidir uma fonte de luz através da pupila, é possível examinar o fundo de olho. Esse é o único recurso que se tem para visualizar os vasos da retina e é um instrumento importante para o diagnóstico de doenças sistêmicas, como hipertensão arterial, diabetes, tumores intracranianos, problemas vasculares, etc.
VISÃO DO RECÉM-NASCIDO
Drauzio – Quais são os defeitos visuais mais comuns nas crianças?
Rosana Cunha – A hipermetopia é o distúrbio mais frequente na população em geral e, em particular, no recém-nascido. Caracteriza-se pela diminuição do diâmetro ântero-posterior do globo ocular. Como consequência, toda criança nasce hipermétrope, porque a imagem se forma atrás e não na retina onde deveria ser focalizada.
Na miopia, acontece exatamente o contrário. O segmento ântero-posterior do globo ocular é maior, e a imagem se forma antes da retina. Nos dois casos, o erro de refração da luz e focalização da imagem pode ser causado por alterações na córnea e no cristalino.
Drauzio – Você disse que todas as crianças nascem hipermétropes. Como evolui a hipermetropia à medida que elas vão crescendo?
Rosana Cunha – A extensão do diâmetro ântero-posterior do globo ocular é de 23 mm no adulto, e de 16 mm no recém-nascido. À medida que a criança cresce, o olho vai aumentando de tamanho, o que poderia justificar uma tendência à miopização. No entanto, nem todas as crianças ficam míopes, porque existem mecanismos compensatórios; um deles é o achatamento da curvatura da córnea.
Drauzio – Como enxerga o bebê recém-nascido?
Rosana Cunha – Com certeza, ele enxerga, só que as estruturas transparentes do olho – córnea, cristalino e humor vítreo – estão meio embaçadas por causa do edema característico dos primeiros dias de vida. Além disso, a integração do nervo ótico com o cérebro, ou seja, as vias ópticas que levam a imagem para o cérebro, ainda é imatura.
Drauzio – Isso que dizer que o bebê vê uma imagem borrada da mãe.
Rosana Cunha – Vê a mãe borrada. Na verdade, nos primeiros dias, o recém-nascido enxerga num raio próximo, de mais ou menos trinta a cinquenta centímetros, porque a capacidade de focalização está comprometida pela imaturidade do cristalino e do músculo ciliar. O desenvolvimento da visão, no entanto, é rapidíssimo. Com três meses de vida, ele consegue enxergar o que está a dois, três metros de distância e, com um ano e meio, a acuidade visual está quase completa, quase igual à do adulto.
Drauzio – Então, imediatamente após o nascimento, a criança só enxerga o que está a uma distância muito pequena e mesmo assim a imagem é embaçada.
Rosana Cunha – Mas para ela o que interessa naquele momento? Interessa o rosto e o peito da mãe. Nessa fase, ainda não controla o movimento dos olhos, porque não desenvolveu a capacidade de integração entre o olho e o cérebro nem a coordenação que mantém os dois olhos alinhados. Os movimentos oculares são rápidos e descoordenados (movimentos sacádicos). Com um mês de vida, porém, começa a apresentar um reflexo de fixação e a partir do segundo, terceiro mês, consegue convergir e focalizar a imagem registrada em cada um dos olhos para convertê-la numa imagem única.
Drauzio – Todo recém-nascido deve fazer um exame oftalmológico?
Rosana Cunha – Na maternidade, a criança é vista por um neonatologista que examina o globo ocular. Esse exame é muito importante para o diagnóstico de leucocoria (leukos = branco, koria = pupila), isto é, de um reflexo branco na pupila, sinal de alteração no cristalino (crianças podem nascer com catarata ou desenvolvê-la nos primeiros meses de vida), para o diagnóstico de retinoblastoma (tumor na retina), ou de um comprometimento na retina que é comum nos bebês prematuros. Esse reflexo esbranquiçado impede a passagem da luz. Se a luz não passa, as vias óticas para o centro da visão no cérebro não se desenvolvem e atrofiam.
Com três meses, a criança atravessa um período crítico e deve passar por nova avaliação oftalmológica para assegurar que o globo ocular está íntegro, que não existe opacidade na córnea ou no cristalino, nem alteração na retina.
O desenvolvimento do mecanismo da visão é mais retardado nos prematuros. Além de demorar um pouco mais para enxergar, eles são mais suscetíveis a desenvolver estrabismo. Quando nascem pesando menos de 1.500 gramas, ou antes de completar 35 semanas de gestação, podem ter descolamento de retina e outras sequelas visuais graves provocados não só pela antecipação do parto, mas pelo oxigênio que recebem na incubadora.
CATARATA CONGÊNITA
Drauzio – Você disse que a criança pode nascer com catarata, um obstáculo que impede o desenvolvimento normal da visão. Experimentos realizados com gatos recém-nascidos que tiveram uma das pálpebras suturadas e assim permaneceram durante trinta dias mostraram, quando foi retirado o curativo, que eles tinham perdido totalmente a visão daquele olho.
Rosana Cunha – Estavam cegos. A sutura da pálpebra tinha impedido a integração do globo ocular com as vias óticas e provocado atrofia de uma conexão do corpo geniculado lateral situado na porção inferior do tálamo, o que resultava em alterações permanentes nos centros visuais.
Drauzio – A criança que perde a visão de um olho por causa da catarata congênita nem sequer imagina que poderia enxergar de forma diferente…
Rosana Cunha – Muitas vezes, nem os pais percebem o que está acontecendo com a criança. O problema é que, se ela não for tratada precocemente, no máximo, até os nove meses de vida, sua acuidade visual será baixíssima nesse olho; na verdade, só enxergará vultos, mais nada.
Drauzio – Essa é uma prova indiscutível da interação da genética com o meio ambiente. Se deixarmos um recém-nascido no escuro, sem estimulação visual, ele perderá a capacidade de enxergar definitivamente.
Rosana Cunha – Você tocou numa palavra muito importante: estimulação. Mesmo que a criança com catarata congênita unilateral passe por uma cirurgia tecnicamente perfeita em tempo hábil, o prognóstico pode ser desfavorável, se o olho operado não receber o estímulo necessário. Por isso, depois da retirada do cristalino, ela precisa usar lente de contato ou óculos e tamponar o olho com que enxerga melhor para desenvolver as vias óticas e a acuidade visual do olho comprometido.
Como o implante de lentes intraoculares é desaconselhado para crianças abaixo de um ano por causa da inflamação que é frequente no pós-operatório, o que mais se faz é colocar uma lente de contato. Embora também se possa recorrer ao uso de óculos, o desconforto que provocam é maior, por causa da necessidade de colocar uma lente de 25 graus no olho operado e sem grau nenhum no olho saudável.
Drauzio – Resumindo: é preciso tamponar o olho de melhor visão para estimular o desenvolvimento da acuidade visual do olho que tinha a catarata.
Rosana Cunha – A oclusão do olho com melhor visão também é procedimento terapêutico adotado nos casos de estrabismo, desordem que se caracteriza pela perda do paralelismo entre os dois olhos. O desvio pode ser convergente (para dentro), divergente (para fora) ou vertical (para cima ou para baixo). Nesses casos, a criança focaliza apenas um olho e deixa de estimular o olho desviado. No começo, ela enxerga duplo, mas, aos poucos, vai perdendo a visão daquele olho.
AVALIAÇÃO OFTALMOLÓGICA
Drauzio – Você disse que toda a criança deve passar por avaliação oftalmológica nos primeiros seis meses de vida. O sistema público de saúde garante as condições para que esse exame seja realizado?
Rosana Cunha – Infelizmente, nem os pediatras nem os próprios oftalmologistas têm consciência da importância da avaliação oftalmológica nos primeiros meses de vida da criança. Quase não se pensa nas doenças congênitas, que exigem diagnóstico e tratamento precoces para evitar más notícias no futuro.
De modo geral, está arraigada na população a ideia de que a criança deve ser levada ao oftalmologista depois de alfabetizada, porque terá de ler as letrinhas projetadas à sua frente, ou quando há queda no rendimento escolar. Fazemos parte da Sociedade Brasileira de Oftalmologia Pediátrica e a luta tem sido grande para convencer os colegas da necessidade de dar atenção aos problemas visuais das crianças precocemente.
Drauzio – Como vocês avaliam a acuidade visual de uma criancinha de seis meses que não sabe falar?
Rosana Cunha – Existe um procedimento mais ou menos padronizado. O oftalmologista começa o exame mostrando objetos pequenos e observa a reação das crianças. No meu consultório, tenho uma gaveta cheia de brinquedinhos coloridos que não emitem som para evitar falsas interpretações. Tampo, então, um olho da criança de cada vez e mostro-lhe um desses objetos para avaliar a qualidade da fixação, isto é, se olha para o que foi posto na sua frente ou se não dá sinal de tê-lo notado. Caso isso aconteça, o estabelecido é que sejam utilizados objetos progressivamente maiores e mais coloridos e, por fim, um foco de luz para detectar se, pelo menos, consegue enxergar centralmente os raios luminosos.
A seguir, desloca-se o objeto de um lado para o outro para observar sua capacidade de refixação, isto é, de acompanhar o movimento e rapidamente fixar a imagem outra vez. Sempre existe um modo para avaliar qualitativamente a acuidade visual de uma criança.
Se por acaso houver suspeita de que a visão não é boa, é necessário aplicar testes quantitativos. Um deles se chama “avaliação do olhar preferencial” e consiste em exibir simultaneamente cartões totalmente cinza de um lado e com listras, que vão diminuindo de tamanho do outro para avaliar até que ponto a criança enxerga. Uma neurofisiologista americana provou que todo o mamífero prefere olhar para o padrão listrado a olhar para o cinza. Ela descobriu, também, que diminuindo o tamanho das listras progressivamente, é possível quantificar a acuidade visual, ou seja, é possível dizer que uma criança enxergou até a listra 20/200, enquanto a outra parou no 08/200, por exemplo.
Drauzio – Esse é um exame confiável?
Rosana Cunha – É bem confiável. A criança arregala o olho e dá sinal de que sabe exatamente onde está a listra.
Drauzio – Na verdade, é uma bateria de exercícios…
Rosana Cunha – Nessa faixa de idade, a avaliação oftalmológica inclui, ainda, o teste do reflexo para analisar o alinhamento dos globos oculares. Geralmente, usamos dois focos de luz: um mais perto e outro mais distante para atrair a atenção da criança. Se os dois olhos estiverem alinhados, o reflexo da luz mais próximo incidirá sobre o mesmo ponto nos dois olhos, na pupila. Caso contrário, indica que um deles está desviado para dentro ou para fora. Os testes de Hirschberg e uma variação chamada teste de Krimsky, em geral aplicados em crianças por volta de nove meses, um ano, também são importantes para o diagnóstico de estrabismo e baseiam-se no estudo da localização da imagem luminosa.
Portanto, a avaliação realizada aos seis meses possibilita definir a acuidade de cada olho separadamente e os movimentos oculares indicativos ou não de estrabismo, mas não basta. É muito importante fazer um exame que requer a dilatação da pupila a fim de visualizar a retina, o posicionamento dos vasos, a transparência ou não do cristalino e as condições do nervo ótico. Com a pupila dilatada, pode-se também calcular o grau do erro de refração e determinar a tendência da criança para miopia, astigmatismo ou hipermetropia.
Drauzio – Fazendo esse exame já dá para prever se a criança vai se míope no futuro, por exemplo?
Rosana Cunha – Dá. Às vezes, a avaliação oftalmológica realizada aos seis meses mostra que a criança já tem meio grau de miopia. Como o globo ocular aumenta de tamanho com o desenvolvimento, provavelmente, será mantida a tendência a esse erro de refração.
Drauzio – Depois da avaliação realizada aos seis meses, quando a criança deve voltar ao oftalmologista?
Rosana Cunha – A recomendação é retornar aos três anos para um exame mais refinado. Não importa que não saiba ler, pois nessa fase já consegue verbalizar o que vê e é capaz de reconhecer os símbolos (casinha, maçã, bola, quadrado, etc.) que vão progressivamente diminuindo de tamanho. É capaz também de informar a visão de cada um dos olhos. Essa é a ocasião de repetir o exame para diagnóstico de estrabismo, uma vez que a incidência do estrabismo do tipo convergente acomodativo associado aos graus de hipermetropia é maior nessa idade.
Aos cinco, seis anos, durante o período de alfabetização, a criança deve voltar ao oftalmologista para repetir os exames e avaliar a acuidade visual.
HIPERMETROPIA
Drauzio – Quais são os erros de refração mais comuns na infância?
Rosana Cunha – Depende da faixa etária. Nos primeiros cinco, seis anos de vida, a hipermetropia (visão pior de perto e melhor de longe) é mais frequente e o grau vai aumentando até os doze anos. Depois se estabiliza e tende a diminuir no adulto jovem. Pessoa que usou óculos na infância para corrigir esse erro de refração, costuma não precisar mais deles na idade adulta. Considera-se normal na infância até três graus de hipermetropia, se o estrabismo não estiver associado ao erro de refração. Se estiver, os óculos representam uma das opções de tratamento. Assim, diferentemente do adulto, nem toda a criança hipermétrope que não é estrábica, precisa de óculos. No entanto, não há como desconsiderar alguns sintomas. Se os olhos lacrimejam quando vê televisão, queixa-se de dor de cabeça, perde o interesse pelos deveres de casa muito depressa, anda desatenta, os óculos poderão representar um recurso efetivo para reverter o quadro.
Drauzio – É raro a criança ter consciência de que está enxergando mal. Às vezes, mesmo cega de um olho, acha que tem visão normal, porque nunca enxergou de outro jeito.
Rosana Cunha – É verdade. Criança com hipermetropia de três, quatro, cinco graus tem um poder de focalização muito maior do que o do adulto. Ela consegue ler ou enxergar a figura do livro que os pais lhe mostram. Na escola, porém, é dispersiva, não para quieta na carteira porque o esforço que faz para focalizar a imagem é extremamente cansativo. O problema é que a criança não fala que parou de fazer os deveres por causa da confusão visual, da imagem dupla. Não fala nem quando um olho enxerga bem menos do que o outro. Por isso, antes de encaminhá-la ao psicólogo, é importante excluir as causas orgânicas do problema.
Já examinei crianças maiores, com seis, sete graus de hipermetropia, que achavam normal enxergar daquele jeito. Outro dia, atendi um menino de sete anos que havia sido encaminhado pela professora para avaliação visual. Aliás, as escolas têm ajudado muito nesse sentido. Feito o exame, ficou constatado que ele enxergava muito mal com o olho esquerdo. A mãe surpresa perguntou-lhe por que nunca tinha mencionado tal dificuldade. Sua resposta foi contundente: “Mãe, não é que eu enxergo pior com o olho esquerdo. Minha mão direita não é mais forte do que a mão esquerda? Então, eu também enxergo melhor com o olho direito”.
Drauzio – Esses casos são muito frequentes na clínica?
Rosana Cunha – Eles ficaram menos frequentes desde que o lazer está mais dentro do que fora de casa. Os pais percebem que há algo de errado, quando a criança se aproxima muito da televisão ou da tela do computador, por exemplo.
Drauzio – Assistir à televisão prejudica os olhos?
Rosana Cunha – É um mito pensar que a televisão faz mal para os olhos. Não faz. No entanto, o fato de a criança aproximar-se muito da TV é um sinal de alerta aos pais, que devem levá-la para avaliação oftalmológica e auditiva. Ela pode chegar mais perto porque enxerga ou ouve mal.
Drauzio – Muitos pais acham que ficar muito tempo diante do computador também faz mal para os olhos.
Rosana Cunha – Não faz mal nenhum também. Nem o computador, nem a televisão, nem o micro-ondas estragam os olhos. O que faz mal é a criança hipermétrope ficar horas e horas diante do computador ou da tela de videogame sem usar a correção ótica adequada, porque ela pisca menos, o olho fica mais seco e é maior o esforço de convergência realizado para focalizar a imagem, o que pode provocar dor e cansaço visuaLl.
ÓCULOS
Drauzio – O que se faz quando se detecta um erro de refração aos seis meses de idade?
Rosana Cunha – A solução é receitar óculos. Isso não quer dizer que se deva prescrevê-los para uma criança de seis meses, um ano, com um grau de miopia, até porque esse grau permite uma visão focalizada a seis metros de distância, o que é mais do que o suficiente naquele momento. Mas, se tiver mais de cinco graus de miopia num olho só, ou qualquer outro erro de refração (hipermetropia ou astigmatismo) assimétrico, maior do que quatro ou cinco graus, precisa de óculos para focalizar a imagem e desenvolver o mecanismo da visão naquele olho. Se não o fizer, sua acuidade visual estará comprometida na vida adulta.
Drauzio – Muitas vezes, os pais hesitam diante da necessidade de a criança pequena usar óculos.
Rosana Cunha – Por isso, nem levam a criança ao oftalmologista. Não se pode esquecer de que atualmente existem óculos especiais para as crianças, com armações em forma de capacete e lentes que não quebram.
ESTRABISMO
Drauzio – Há uma série de lendas e mitos sobre o estrabismo. Um deles é que toda a criança nasce estrábica e que o desvio desaparece espontaneamente com o crescimento.
Rosana Cunha – Esse é um engano terrível. Toda semana, me deparo com pais tristes, às vezes enfurecidos, porque ouviram que é normal as crianças pequenas serem estrábicas. Na verdade, quando nascem, elas não coordenam os movimentos de fixação e refixação, mas, a partir dos três meses de idade, essa descoordenação deve ter sido superada. Caso contrário, o diagnóstico tem de ser confirmado e o tratamento instituído. No entanto, não se pode confundir falso estrabismo, ou pseudoestrabismo, com o estrabismo verdadeiro.
Drauzio – Qual é a diferença?
Rosana Cunha – O falso estrabismo é provocado por uma condição anatômica. A base do nariz é mais larga e a pele forma uma prega que recobre parte da esclera, dando a impressão errada de que o olho está desviado. O teste do reflexo para avaliar se o foco de luz está centralizado nas duas pupilas é fundamental para confirmar o diagnóstico. Por isso, se a mãe tem alguma dúvida, deve agir rápido e levar logo a criança ao oftalmologista.
Drauzio – Você disse que depois do terceiro mês de vida, a falta de coordenação no movimento dos olhos não é normal. O que devem fazer os pais nessa situação?
Rosana Cunha – Até os três meses, a falta de controle dos movimentos é normal. A partir dessa idade, se o problema persistir, os pais devem levar a criança ao oftalmologista para diagnóstico e tratamento adequado, que pressupõe o uso de óculos, exercícios ortóticos ou cirurgia, pois não existe regressão espontânea de estrabismo.
Drauzio – Quais são as principais características do estrabismo?
Rosana Cunha – Entende-se por estrabismo o não alinhamento dos dois globos oculares. Ele pode ser classificado em convergente (esotropia), divergente (exotropia) e vertical (hipertropia). É convergente, quando um olho fixa a imagem e o outro vira para dentro, e divergente, quando se desloca para fora. Nos dois casos, cada um dos olhos focaliza imagens diferentes e a pessoa tem o que chamamos de diplopia, ou visão dupla.
Na criança, a diplopia só ocorre no início da desordem, porque depois o cérebro desenvolve o mecanismo da supressão: a imagem do olho desviado vai-se tornando mais fraca e menor até desaparecer por completo. Isso acontece também nos casos de estrabismos verticais, que são mais raros, todavia, quando um olho está mais alto do que o outro.
Exceção feita ao estrabismo alternante, isto é, quando a criança ora fixa um olho, ora fixa o outro, se a alteração do paralelismo ocular não for tratada a tempo, ela acaba perdendo a visão do olho desviado. Quando se diz tratar a tempo, significa que se deve corrigir a desvio no máximo, até os seis, sete anos de idade. Essa é a única maneira de recuperar a visão do olho que foi desativado para eliminar a recepção de uma imagem dupla pelo cérebro.
Drauzio – Como é o tratamento do estrabismo?
Rosana Cunha – A primeira medida é colocar um tampão no olho que enxerga bem para que a visão do outro se desenvolva. Quanto mais precoce for feito o diagnóstico e iniciado o tratamento, mais rápida será a recuperação. Bebezinho com estrabismo, que fixa um olho só, entre três e seis meses de oclusão ocular, consegue alternância de fixação. Já as crianças de três anos costumam demorar de um a dois anos e aquelas com seis, sete anos, podem não recuperar totalmente a visão, porque o desuso comprometeu as vias óticas que levam os impulsos nervosos até o córtex cerebral, onde se processa a visão, e a ambliopia está instalada definitivamente.
Drauzio – Você poderia explicar o que é ambliopia?
Rosana Cunha – Também conhecida como olho preguiçoso, a ambliopia é a perda parcial ou total da visão de um olho íntegro, sem lesão (são raros os casos em que afeta os dois olhos), porque alguma coisa impediu o desenvolvimento natural das vias ópticas durante a infância. As principais causas da ambliopia são estrabismo, catarata e opacidade dos meios transparentes.
ESTIMULAÇÃO
Drauzio – O que os pais podem fazer para que o desenvolvimento da capacidade visual da criança seja pleno?
Rosana Cunha – Crianças com visão normal não necessitam de estímulo extra. O mundo, por si só, oferece o estímulo necessário para o desenvolvimento visual pleno. É só pensar, por exemplo, na televisão colorida que emite vários “flashes” de luz ininterruptamente.
A estimulação visual, entretanto, é indicada para as crianças que nasceram com problemas sérios de visão ou os adquiriram na primeira infância. Esse trabalho deve ser feito por especialistas.
Drauzio – Exercitar os músculos existentes no globo ocular não melhora em nada a acuidade visual das crianças?
Rosana Cunha – Antigamente, os exercícios oculares eram mais indicados. Hoje se sabe que eles podem ser úteis nos casos de estrabismo divergente, especialmente quando é divergente para perto. São exercícios de convergência, aplicados por oftalmologista ou ortoptista.
Drauzio – Pergunto isso porque nas décadas de 1960, 1970, defendia-se que mostrar objetos coloridos para as crianças ajudava a criar um universo visual mais rico.
Rosana Cunha – No mundo de hoje, isso não é mais necessário, haja vista a abundância de estímulos visuais a que a criança está permanentemente exposta.
SINAIS DE ALERTA
Drauzio – Que sintomas indicam que a criança deve ser levada ao oftalmologista?
Rosana Cunha – Crianças que se aproximam muito do aparelho para assistir à televisão, coçam os olhos que estão constantemente vermelhos e piscam muito devem passar por avaliação oftalmológica para afastar as possíveis causas orgânicas desses sintomas. Às vezes, piscam demasiadamente e coçam os olhos para aliviar um pouco a confusão visual e o olho vermelho é consequência do excesso de irrigação sanguínea gerada pelo esforço de acomodação.
Qualquer suspeita de desvio do globo ocular também é motivo suficiente para levar a criança ao oftalmologista. O estrabismo nem sempre é mecânico, ou seja, nem sempre ocorre em virtude de os eixos oculares não serem paralelos. Ele pode ser sensorial e ter como causa tumores cerebrais que provocam hipertensão craniana ou tumores da retina, por exemplo. Para dar uma ideia, o desvio ocular é um dos primeiros sinais do retinoblastoma. Só quando o tumor evolui para pior, a retina fica branca e o olho brilha como os do gato no escuro.
Drauzio – A visão é um sentido sofisticado e bastante complexo.A imagem que chega invertida à retina é levada pelo nervo ótico ao cérebro que a decodifica e a devolve para a consciência numa fração mínima de tempo.
Rosana Cunha – Qualquer alteração pode desmobilizar o mecanismo da visão da criança. Por isso, ela deve ser avaliada por um oftalmologista desde o nascimento.