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Neurologia

Tocar instrumentos musicais fortalece o cérebro e traz benefícios em todas as idades

Tocar um instrumento é um desafio cognitivo que amplia conexões neurais e promove resiliência cerebral com efeitos para toda a vida.

 

Conseguir tocar uma música ou até mesmo fazer um som com algum instrumento já é motivo de grande satisfação. Melhor ainda é saber que essa prática traz benefícios comprovados para a saúde.

Diversos estudos indicam que tocar instrumentos ou participar de atividades de canto estimula o cérebro, fortalecendo conexões que aprimoram seu funcionamento e ajudando a protegê-lo contra danos futuros. E quanto antes esse contato vier, melhor. 

“Fazer o cérebro ser capaz de produzir alguma atividade que, no final, gere essa completude a qual podemos chamar de música, não é apenas o dedilhar, ler a partitura, produzir um som, até mesmo com a voz, mas é você fazer tudo isso junto. É um desafio cognitivo de alto valor”, afirma André Frazão Helene, coordenador do Laboratório de Ciências da Cognição do Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). “E tem uma coisa muito bonita nisso tudo, que é essa organização de tal maneira que se crie uma sincronicidade total entre essas ações”, acrescenta.

A execução musical envolve múltiplas áreas cerebrais: os córtex motor primário e secundário, responsáveis pelo controle dos movimentos; os córtex auditivos primário e secundário, ligados à percepção sonora; e os gânglios da base, que automatizam ações motoras. Além disso, o encéfalo, centro do sistema nervoso, reconhece o prazer associado ao aprendizado, liberando sensações positivas no cérebro.



Reserva cognitiva

“Quando a gente treina o cérebro com o exercício de tocar um instrumento, por exemplo, uma parte importante do que a gente está oferecendo para ele é um desafio, que ele responde como aprendizado. Essa é a forma como o cérebro se conecta, ou seja, como esses neurônios vão estar conectados. Um cérebro treinado, ou desafiado o tempo inteiro, vai possuir uma alta conectividade e isso cria vias alternativas de soluções. Essa conectividade ampla é fundamental para que você tenha uma resiliência no sistema, que é conhecida como ‘reserva cognitiva’”, explica André.

Essa reserva é a capacidade do cérebro de compensar os efeitos do envelhecimento e de doenças como Alzheimer e Parkinson, preservando funções cognitivas mesmo diante de alterações estruturais. Não se trata de uma estrutura física, mas um conceito que descreve a habilidade do cérebro de se adaptar e encontrar rotas alternativas para executar tarefas quando áreas específicas são comprometidas. Quanto maior a reserva, maior a capacidade de manter a independência e a qualidade de vida em casos de doenças ou envelhecimento, pois o cérebro vai utilizar outras redes neurais para compensar as áreas danificadas.

“Um cérebro hiperconectado permite muito mais resiliência, pois tem muito mais formas de resolver problemas do que apenas a solução mais simples. Aprender música, em qualquer época da vida, é um desafio interessante do ponto de vista puramente neurofisiológico, no qual o cérebro conectado te dá uma robustez protetiva para o sistema ao longo do processo de envelhecimento saudável, por exemplo”, complementa o especialista. 

        Veja também: Envelhecimento e memória: como evitar o declínio cognitivo?

 

Terceira idade

O conceito de reserva cognitiva também se aplica a quem decide aprender um instrumento mais tarde, mesmo que esse processo seja cada vez mais difícil. Pesquisas reforçam que a prática musical pode beneficiar idosos, mesmo quando o aprendizado é mais desafiador ou com pessoas que passam por tratamentos específicos, como é o caso do estudo da Universidade de Tohoku, no Japão, que apontou que intervenções musicais podem melhorar diferentes funções cognitivas em pessoas com comprometimento cognitivo leve e demência.

“Todos vamos envelhecer e ter uma piora cognitiva, mas em pessoas que tocam um instrumento e continuam treinando, essa queda de qualidade vai ser menor. Não é que não vai acontecer, mas a ação de tocar algo pode proteger, mantendo a memória ativa”, explica Júlio Leonardo Barbosa Pereira, neurocirurgião e diretor de tecnologia de informação da Associação Paulista de Medicina (APM). “É comprovado também que a música é uma auxiliar no estresse diário e em casos de ansiedade e depressão, além da solidão”, enfatiza.



Memória presente

O impacto da música também se estende à memória. “Toda vez que se toca uma nota, acordes, ritmos, ou até mesmo a letra de uma canção, isso fortalece a memória tanto no curto quanto a longo prazo, além de beneficiar a memória executiva”, diz o dr. Júlio. A chamada “memória executiva” é uma função que reúne um conjunto de habilidades cognitivas que permitem o controle e a gestão de outras funções, emoções e comportamentos, como memória de trabalho (armazenamento de informações temporárias para realização de tarefas), flexibilidade cognitiva (adaptação a novas situações), controle inibitório (ignorar distrações), planejamento e tomada de decisão.

 

Infância é um momento-chave

Especialistas destacam a infância como período privilegiado para a iniciação musical e os efeitos podem ser medidos a curto, médio e longo prazo. Um estudo publicado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) mostrou que crianças de 9 a 10 anos que praticam instrumentos regularmente apresentam melhor desempenho em testes de memória operacional. Ou seja, o contato com um instrumento pode começar cedo, ainda nos primeiros anos, com brinquedos que estimulem sons, por exemplo. Respostas mais estruturadas costumam surgir a partir dos 3 ou 4 anos, mas reforçando que o aprendizado deve ser lúdico, sem rigidez excessiva, respeitando o tempo de estímulo de cada criança.

“Cada fase para aprender a tocar um instrumento vai ter um impacto diferente em diversas áreas. Na infância, o impacto é muito grande na linguagem, além de melhorar a coordenação motora consideravelmente. Tocar ainda ajuda nas partes disciplinares e na paciência, que é uma fase da vida que o sistema límbico (conjunto de estruturas cerebrais relacionadas à regulação de emoções, comportamentos, motivação e memória) está sendo todo formado”, observa o dr. Julio. 

O ato de tocar um instrumento na infância envolve ainda outras estruturas cerebrais: amígdala (processamento e expressão de emoções), hipocampo (crucial para a formação de novas memórias), tálamo (retransmite informações sensoriais para o córtex cerebral), giro cingulado (regulação da atenção), e gânglios da base que, apesar de não integrarem o sistema límbico tradicional, mantêm estreita relação com ele e atuam no controle motor, no aprendizado e na recompensa.

        Veja também: Como estimular o cérebro no dia a dia?



Persistência

A dificuldade de aprender música, especialmente na idade adulta, é comum. Para André, o segredo está em manter a persistência e ajustar as expectativas. “Muitas vezes, o processo de aprendizado que você espera que seja vai acontecer totalmente diferente do que é. E você não sabe disso até o dia que é exposto a ele. E isso é uma barreira complicada, muitos desistem aqui. E como transpor essa barreira? Acredito que, ao observar outras pessoas aprendendo, por exemplo, podemos enxergar que o processo de aprendizagem de tocar um instrumento é um conjunto de falhas enormes por um tempo longuíssimo, mas que no final produz algum resultado”, conclui.

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