A maioria das causas de morte materna é evitável. No Brasil, houve um aumento relevante no número de casos de mortalidade materna durante a pandemia de covid-19.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) define a morte materna como a morte de uma mulher durante a gravidez ou dentro de um período de até 42 dias após o fim da gestação, por qualquer causa relacionada ou agravada pela gravidez ou por medidas tomadas em relação a ela, mas não devido a causas acidentais ou incidentais.
Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS/OMS), todos os dias morrem mais de 800 mulheres por conta de complicações relacionadas à gravidez ou ao parto no mundo inteiro. A organização afirma que a grande maioria dessas mortes acontece em países em desenvolvimento e poderia ter sido evitada.
A OMS estabeleceu como meta reduzir a taxa global de mortalidade materna para 70 mortes a cada 100 mil nascidos até 2030. Hoje, esse número é de 223 mortes para cada 100 mil nascidos vivos. No Brasil, em 2021, esse índice foi de 117 mortes, impulsionado principalmente pela pandemia de covid-19, conforme veremos mais à frente.
Causas diretas e indiretas de mortalidade materna
Quando falamos em mortalidade materna, existem causas diretas e indiretas. No Brasil, historicamente, as principais causas de morte materna são as diretas, como hipertensão, hemorragias, infecções pós-parto e complicações de abortamentos inseguros.
Já as causas indiretas incluem as doenças infecciosas (principalmente as que causam comprometimento pulmonar como covid-19 e gripe), cardiopatias, HIV e outras doenças do aparelho respiratório, além de doenças cardiovasculares.
“Convém lembrar que nos países desenvolvidos onde a mortalidade materna é baixa, houve redução drástica das causas diretas de morte materna, consideradas altamente preveníveis, e há predomínio das causas indiretas, ao contrário do que ocorre no Brasil”, explica Marcos Nakamura, ginecologista e obstetra e presidente da Comissão Nacional Especializada em Mortalidade Materna da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).
Esse é o panorama habitual: causas diretas superando causas indiretas. Porém, segundo Fernanda Spadotto Baptista, ginecologista e obstetra e diretora do Ambulatório de Alto Risco da Clínica Obstétrica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), houve uma mudança nesse aspecto devido à pandemia.
“Em 2019, antes da pandemia, em torno de 65% das mortes maternas eram por causas diretas, o que se repetia em anos anteriores. Em 2020 e 2021 isso mudou, uma vez que houve um aumento de mortes maternas por covid-19. Por exemplo, em 2020 essa porcentagem [de mortes por causa direta] caiu para 53%, caindo ainda mais em 2021, em que aproximadamente metade das mortes maternas foram devido à covid-19 (1.518 mortes de um total de 3.025 mortes diretas e indiretas)”, explica.
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Desafios no combate à morte materna
Os especialistas explicam que as mortes maternas estão relacionadas às demoras no processo de atendimento. Existem três níveis de demora, e a dra. Fernanda esclarece pontos importantes sobre cada um deles:
- Demora da própria gestante e familiares em procurar o serviço de saúde
“Nesta fase, as condições econômicas – falta de acesso a serviços básicos de saúde, distância até o serviço mais próximo, falta de recursos para ir até o serviço de saúde – e também socioculturais – falta de acesso a serviços de educação em saúde, planejamento reprodutivo, informações e atendimento pré-natal, etc. – são as determinantes.”
- Demora para chegar ao serviço de saúde
“Nesta fase começam a aparecer os nossos ‘calcanhares de Aquiles’ no Brasil. Por ser um país continental, com algumas dificuldades de acesso, temos situações em que uma gestante crítica pode ficar até 4, 6 horas em transporte da sua cidade de origem até um serviço de atendimento terciário. Soma-se a isso o despreparo da equipe de saúde no atendimento e no reconhecimento da situação de criticidade nessa primeira ponta de atendimento, atrasando ainda mais o início do cuidado.”
- Demora em receber cuidados e tratamento adequado dentro do hospital
“Neste ponto temos, sem sombra de dúvida, as dificuldades de implantação dos protocolos de atendimento de emergência às principais causas de morte materna (hipertensão, hemorragia, infecção), com ampla necessidade de investimento em capacitação dos profissionais de saúde.”
“No Brasil, um estudo multicêntrico mostrou que há predomínio da terceira demora nas mortes presente em ⅔ dos casos, enquanto a segunda demora ocorre em 45% dos óbitos e a primeira em 30%. Portanto, os desafios são muitos – desde educação para reconhecimento de seu próprio problema de saúde até falta de estrutura dos locais que atendem partos, passando por melhor organização do sistema de saúde para que a grávida tenha atendimento adequado ao seu nível de complexidade desde o pré-natal até o parto. Evidentemente, a morte materna atinge a parcela mais pobre e vulnerável da população; frequentemente mulheres negras e com baixo nível de educação”, afirma o dr. Marcos.
O impacto da pandemia
A pandemia de covid-19 teve um impacto muito grande no cenário brasileiro de mortalidade materna. De acordo com o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), a razão de morte materna – número de mortes relacionadas à gravidez, parto e puerpério em relação aos nascidos vivos – aumentou 94% no Brasil durante a pandemia de covid-19. Em 2019, esse índice era de 55,31 a cada 100 mil nascidos vivos. Em 2020, subiu para 71,97 e em 2021, esse índice passou para 117,4 mortes a cada 100 mil nascidos vivos. Os dados são do Ministério da Saúde e foram mapeados pelo Observatório Obstétrico Brasileiro (OOBr).
Os números estão muito distantes do esperado: o compromisso do país feito por meio dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), das Nações Unidas, é reduzir a taxa de mortalidade materna para 30 mortes a cada 100 mil nascidos vivos.
“Em 2021, voltamos a razões de morte materna que não víamos desde a década de 1990, com mais de 100 mortes em 100 mil nascidos vivos. Em 2022, muito provavelmente os números já serão menores (ainda não estão fechados pelo Ministério da Saúde), retornando a níveis próximos aos de 2019. Ainda assim, esse número é elevado em comparação ao de outros países, mesmo da América Latina. Importante ressaltar que o que ocorreu na pandemia serviu para revelar graves problemas na atenção obstétrica, como insuficiência de leitos de unidade intensiva obstétrica e dificuldades de transferência para leitos de maior complexidade nos casos graves”, destaca o ginecologista da Febrasgo.
“Para reforçar a fragilidade do atendimento à gestante crítica, o Observatório Obstétrico mostra que uma em cada cinco gestantes que morreram de covid-19 no Brasil não teve acesso à Unidade de Terapia Intensiva (UTI); e uma em cada três gestantes não teve acesso à ventilação mecânica – sendo a insuficiência respiratória a principal causa de morte entre essas pacientes”, completa a médica do HC.
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Mortalidade materna tardia
A morte materna é aquela que acontece até 42 dias após o término da gestação, por causas obstétricas diretas ou indiretas. Mas existe também a chamada mortalidade materna tardia, que é a morte, pelas mesmas causas, que ocorre após 42 dias do término da gestação até um ano depois.
Segundo o dr. Marcos, apesar de não entrar nos números oficiais de morte materna, a morte materna tardia vem sendo cada vez mais valorizada nos países desenvolvidos.
“Em geral, [nos casos de morte materna tardia] predominam as causas indiretas, como doenças cardíacas, pulmonares e câncer, que por vezes apresentaram piora na gestação, mas por conta do suporte de unidades intensivas, a morte ocorre após os 42 dias. Também pode ainda ser consequência de uma direta, como uma hemorragia cerebral decorrente de eclâmpsia, mas que [a paciente] permanece internada por longo período até a morte. Há, no entanto, algumas causas peculiares do período pós-parto, como a cardiomiopatia periparto e o suicídio, o que denota importância de atenção à saúde mental das mulheres no puerpério, período suscetível a depressão pós-parto e exacerbação de doenças mentais prévias.”
Como reduzir a mortalidade materna no Brasil
“Primeiramente, para reduzir a mortalidade materna, é preciso encarar cada morte materna como uma tragédia e como uma negligência da sociedade em evitar essa morte, por não colocar a atenção à saúde das mulheres como prioridade”, afirma o dr. Marcos.
“A maioria da mortes que ocorre no Brasil é de causa direta, ou seja por causas obstétricas (hipertensão, hemorragia, infecção e aborto) que são largamente evitáveis. Enquanto algumas dependem de mudanças legislativas com debate na sociedade, como no caso do aborto, outras dependem de maior acesso e atenção qualificada no pré-natal e parto, como a hipertensão. Importante que no pré-natal haja identificação de mulheres de risco com encaminhamento para unidades secundárias ou terciárias, conforme caso, e assegurar a profilaxia para pré-eclâmpsia, com cálcio e aspirina, quando apropriado”, completa ele.
Além disso, o especialista diz que é preciso rever normas de funcionamento de estabelecimentos obstétricos para garantir quantidade de profissionais qualificados 24 horas, laboratório em tempo oportuno e disponibilidade imediata de sangue quando houver necessidade.
“E também é necessário organizar a rede de atenção obstétrica regionalizada, garantindo a vinculação entre o pré-natal e a maternidade de referência, dando prioridade de recursos para maternidades que atendam mais de 2000 partos/ano e com número suficiente de leitos de UTI obstétrica, que tenham intensivistas e obstetras trabalhando em conjunto. Além disso, protocolos clínicos e treinamento para os profissionais que atendem nos hospitais e maternidades é de fundamental importância.”
Para a dra. Fernanda, os principais pontos de atenção para reduzir o número de mortes maternas são acesso a planejamento familiar, educação em saúde e melhoria da qualidade de assistência pré-natal. “O nosso primeiro grande desafio é garantir o direito reprodutivo de toda mulher com acesso a orientações de qualidade em planejamento familiar. Temos a incrível taxa de 5% de mortes de mulheres em idade fértil decorrentes de um aborto inseguro. Precisamos urgentemente garantir acesso a informações sobre contracepção e também acesso aos meios contraceptivos.”
“Embora tenhamos uma cobertura de aproximadamente 98% de pré-natal entre as gestantes no país, o início nem sempre se dá no primeiro trimestre e nem sempre temos a quantidade suficiente de consultas (pelo menos seis). Ainda, em relação à assistência pré-natal, temos uma fragilidade no treinamento dos profissionais de saúde para que eles reconheçam as gestantes de alto risco, que totalizam 15% a 20% de todas as gestações, atrasando ainda mais a linha de cuidados com essas mulheres. As ferramentas de treinamentos digitais podem ser uma boa estratégia para isso, mas ainda assim, os estados e municípios devem se adequar para garantir acesso a essa vaga de pré-natal de alto risco, outro tópico a ser trabalhado”, explica.
Também é importante garantir o acesso a serviços de saúde adequado às mulheres no seu intervalo interpartal (período entre as gestações), não apenas para dar acesso à contracepção, mas também atendimento clínico para tratar de agravos ocorridos no ciclo gestacional, como doenças cardiovasculares e endócrinas, por exemplo, minimizando, assim, possíveis riscos em gestações futuras, destaca a médica.
“[Outro ponto é a] análise crítica dos dados e indicadores de saúde, incluindo a discriminação de cada região, com propostas e estratégias diferenciadas a fim de garantir o acesso dessas mulheres tanto à assistência pré-natal quanto à alimentação, condições de trabalho e principalmente, matriciamento [rede de referenciamento] eficaz para a gestação de alto risco”, afirma ela.
A dra. Fernanda destaca ainda o treinamento de profissionais por meio de plataformas digitais, como acontece no Projeto Tele UTI Obstétrica, do HCFMUSP, que promove a interação à distância entre médicos obstetras e intensivistas no tratamento de gestantes críticas. Atualmente, são 11 hospitais participantes, nos quais a razão de morte materna teve redução de 36% após um ano de implantação do projeto.
A especialista recomenda o material Saúde materna e covid-19: Panorama, lições aprendidas e recomendações para políticas públicas (UNFPA/OOBr), que apresenta sugestões de implementação de políticas públicas e tomadas de decisões no combate à morte materna.
O Grupo de Trabalho para a Redução da Mortalidade Materna (GTR), mecanismo interinstitucional formado por várias agências como OPAS, UNFPA e Unicef, também elaborou um documento com 9 passos para reduzir a mortalidade materna, que destaca itens como a importância de criar políticas públicas voltadas para a saúde materna e a melhora da qualidade na atenção à saúde materna.
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